Para melhorar o tráfego na Av. Rangel Pestana (1948)

Imponente viaduto de concreto transporá o leito da ferrovia

Terá a largura da artéria e 220 metros de comprimento, sendo de suave elevação – Apresentar-se-á num bloco de grande suntuosidade, sem causar a menor dificuldade de ordem técnica

O sr. Pedro de Andrade Lemos, chefe dos Serviços de Eletrificação dos Subúrbios de S. Paulo projetou uma forma de solução para o tradicional problema do Brás, as porteiras da avenida Rangel Pestana.

Na tarde de ontem o prefeito Paulo Lauro reuniu em seu gabinete os representantes da imprensa da Capital a fim de demonstrar a maneira de resolver o grave problema de trânsito e a ligação entre o Brás e o centro da cidade de S. Paulo. Exibindo mapas e fotografias da “maquette” do projeto que mandara realizar, esclareceu que será ele prontamente enviado à Câmara Municipal, como medida preliminar para a sua execução.

UM VIADUTO DE CONCRETO

Não quis os sr. Paulo Lauro que S. Paulo assistisse mais uma passagem de aniversário sem que tivesse sido encontrada uma fórmula definitiva para esse tão velho e grave problema. Dessa forma apressou a elaboração do projeto, agora concluído. S. Paulo, cidade de viadutos e das largas e novas avenidas, terá em breve mais um grande viaduto de concreto, que, com rampas em suave elevação, transporá o leito de ferrovia, em toda a largura atual da avenida Rangel Pestana.

Nada menos que 220 metros terá a nova realização arquitetônica, e com a largura de 30 metros e um alinhamento a outro. O Viaduto “Adhemar de Barros”, pois esse será o seu nome de batismo, terá três vãos livres, sendo um central, de 22 metros de largura e seis de altura, abrangendo todo o espaço presentemente utilizado pela Estrada Santos-Jundiaí, e dois vãos de 17 metros de largura por 8 de altura, para o trânsito das ruas laterais e paralelas ao leito da estrada.

NENHUMA DIFICULDADE DE ORDEM TÉCNICA

Em seguida o governador da cidade passou a examinar a questão de problemas de ordem técnica que por ventura deveriam surgir. Explicou pormenorizadamente à reportagem, que a forma de solução para o problema não apresenta senão vantagens: não dificultará nem impedirá o sistema de redes de força elétrica dos trens e bondes; não modificará o atual sistema de transportes naquela artéria, pois os veículos poderão transpor com facilidade as rampas suaves, sem interrupção do tráfego; nenhum problema surgirá no que diz respeito ao sistema de águas pluviais e esgotos, e isso em virtude de poder ser o viaduto aterrado nas duas terças partes iniciais, a leste e oeste, dado o seu declive de 7,5 por cento, apenas; seus três vãos livres de abertura mínima de utilização exigem estrutura simples e permitir a construção das dependências laterais em alvenaria de tijolos e colunas de concreto, independentes do sistema do conjunto.

MAIS SUNTUOSIDADE E BELEZA AO LOCAL

Prosseguindo na sua exposição, disse o sr. Paulo Lauro que o Viaduto “Adhemar de Barros”, além da sua grande utilidade, concorrerá para dar maior suntuosidade e beleza ao local, pois, com as desapropriações das faixas laterais, poderá ser visto em conjunto e em toda a sua grandeza, como acontece com o Viaduto do Chá. Os terrações das dependências laterais do viaduto constituirão um excelente mirante sobre a zona baixa da cidade.

Falando das vantagens da utilização do Viaduto “Adhemar de Barros”, salientou o prefeito da Capital que as faixas laterais de 30 metros, ocupando terrenos a serem desapropriados, viriam a facilitar o acesso de veículos à Estação Roosevelt, assim como o retorno de veículos dentro das leis do trânsito dirigido. A largura do viaduto, igual à da Avenida Rangel Pestana, não apresentaria congestionamento, dando livre transposição aos veículos e pedestres.

Além de todas as suas vantagens, acrescentou o sr. Paulo Lauro, há a possibilidade da instalação de um posto de Radio Patrulha e Assistência Pública na parte inferior, para atender às necessidades da zona além-ferrovia, de uma agência de Correios e Telégrafos, agência de informação dos sistemas de transportes estadual e urbano, e instalações sanitárias, amplas e higiênicas.

Diário da Noite, São Paulo, 24 de janeiro de 1948.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

A Mãe Preta e o Quarto Centeário

Mãe Preta

Por Quirino da Silva

Agora que se aproximam os festejos do quarto centenário da fundação da cidade, agora que nos preparamos para tudo mostrar ao estrangeiro, acerca das nossas atividades, enfim, tudo que no período de quatro séculos fizemos, ao estrangeiro que por aqui passar, aquele que antes chamávamos de viajante, e hoje, retorcidamente, se tornou turista. A esses, gostaríamos também, se possível, dizer-lhes do nosso reconhecimento a uma das magníficas figuras quem, a princípio, muito contra-gosto se ligaram à nossa história – desde o momento em que o colonizador sentiu a necessidade de para cá canalizar o braço negro, a fim de que o plantio tivesse mesmo incremento; para que o homem branco pudesse dar conta da árdua tarefa que se propôs, de aproveitar a terra – a terra: “em tal maneira é graciosa, que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo…” Como muito bem disse o senhor Pero Vaz Caminha, aquele que fez o registro civil do Brasil.

Trata-se simplesmente da mãe preta, a mãe de todos os filhos: aquela que, carinhosamente, foi mãe dos seus próprios filhos (quando tinha tempo) e mãe, muito mãe, dos filhos que não eram dela.

Mãe Preta, Lucílio de Albuquerque, 1912. Museu de Arte da Bahia, Salvador.

Sejamos brasileiros: não deixemos que os nossos sentimentos de raiz desapareçam neste instante em que pretendemos render homenagem àqueles que à força de inteligencia, de talento e trabalho, muito fizeram e fazem por este Estado.

Chegamos, é verdade, a um ponto bem elevado: chegamos até a nos ombrear com os povos mais civilizados. Há já muito que declaramos, em carta magna, prescindir do braço escravo negro; há muito, é bem verdade, que as naus portuguesas também não mais aproam nas praias africanas; há muito que, dos sombrios e infectos porões dos navios negreiros não saem a se perder na amplidão dos mares os queixumes, os silenciosos e doridos queixumes da queles que ajudaram a fazer à nossa riqueza.

Mãe Preta, Júlio Guerra, 1955. Largo do Paissandú, São Paulo.

Sejamos brasileiros: lembremo-mos que a mãe preta compartilhou sempre das nossas horas amargas, das nossas horas alegres. Homenageemos pois, a mãe preta, porque nela está simbolizada a bondade, a fidelidade, a amizade de uma raça que muito nos ajudou e ajuda.

Ergamos, se possível, um monumento à mãe preta.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de fevereiro de 1952.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Quando São Paulo chegará a ser assim?

O assumpto que tem merecido da imprensa os mais zelosos commentarios tem sido, de um anno para cá, aquelle que se refere á solução do problema de transito na cidade. Com o repentino augmento dos vehiculos em poucos mezes tivemos a opportunidade de assistir a um phenomeno imprevisto: o atravancamento do centro da cidade, que desde logo assumiu proporções asssutadoras e é hoje a chronica dôr de cabeça da nossa Inspectoria de Vehiculos. Longe, porém, de nos entristecermos com o problema, devemos nos alegrar, pois elle é o advento de uma éra de engrandecimento.

Os aspectos nova-yorkinos que ha dez annos nos deixavam perplexos – hoje não mais conseguem emocionar os nossos sentidos. Temol-os por aqui, já em formação promissora, aquelles phantasticos congestionamentos, e tanto esperamos, que já conhamos equalal-os um dia…

A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1926
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

O fim do mundo… (1926)

Na rua Augusta um bonde espatifou um automovel, por causa dos “nove pontos”…

O lamentavel estado do auto n. 2.258

Positivamente, si continuarmos como vamos, dentro em pouco, em S. Paulo, não mais existirá um homem vivo, mas em compensação, nem um automovel em perfeito estado. Todos os dias temos a registrar mortes e desastres gravissimos, quando não, por lastima, o escangalhar de um carro de luxo, que foi de encontro a um bonde ou a um pedestre sonso, que não sabe o seu lugar e pouca dá pela integridade de um auto de alto preço…

Agora, tambem os bondes deram para espatifar os automoveis. Ante-hontem, foi na rua do Gazometro, e hontem, na rua Augusta.

Por volta das 20 1/2 horas, rebocando a Chevrolet n. 3.317, descia o caminhão Ford n. 2.258, aquella via publica, guiado pelo motorista Nicolino Nogueira. Porque trazia os pharóes do reboque apagados, numa esquina, foi intimado a parar pelo “grillo” Americo Moura. A explicação foi immeditamente dada; os pharóes do reboque se achavam apagados porque o carro estava quebrado, e o Ford que o puxava tinha as suas luzes sufficientemente claras, para evitar qualquer desastre.

Essas explicações todas estavam sendo dadas, quando, subindo a rua Augusta, em desabalada carreira, surgiu o bonde 1.112, da linha “Augusta”, que avançou para o miseravel Ford, atirando com elle e mais o seu reboque, para o meio do passeio, completamente em pedaços.

Foi tão violento o choque, que o estribo do bonde saltou a uma distancia de dez metros!

Felizmente o “chauffeur” e o “grillo”, vendo a velocidade do bonde e sabendo que não podiam salvar os dois vehiculos, trataram de saltar rapidamente para o lado, nada mais soffrendo que um formidavel susto.

O desastrado motorneiro foi preso em flagrante.

A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 17 de dezembro de 1926
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Já pensou em um bairro onde a avenida principal é assim? Ele existe.

Fica na Zona Norte. Tem um córrego imundo, ratos que mordem até crianças, uma pedreira que está sempre ameaçando acabar com as casas, quando explode. E não tem escola. É Vila Iara.

A Vila Iara é um bairro que se localiza na Zona Norte da cidade, entre a Freguesia do Ó e Pirituba/Perus, e apesar de já existir há 40 anos e contar com mais de vinte mil habitantes, não possui as mínimas condições de saneamento básico. Nem escola Vila Iara tem. A avenida principal não é pavimentada e os buracos causam inúmeros problemas ao trânsito da região.

A avenida principal não é pavimentada

Um dos moradores mais antigos de Vila Iara é Paulo Fillinto da Silva, que mora na rua São Urbano, conhecedor profundo dos problemas do bairro e que diz:

Em primeiro lugar, nós estamos pleiteando a instalação de uma escola. Essa é uma velha aspiração, desde 1973 estamos pedindo e até agora nenhuma providência foi tomada, por parte das autoridades, para sanar esse sério problema. A escola mais próxima que temos fica na Vila Morro Grande já na Freguesia do Ó, e é distante dois quilômetros daqui. Além disso, nesta escola não existem vagas e muitas crianças em idade escolar ficam sem poder estudar. No ano passado meu filho de sete anos não estudou por falta de vaga. A diretora da escola alega que as classes estão superlotadas

A escola mais próxima está a dois quilômetros e nunca tem vaga

Paulo afirma que todo ano é o mesmo problema. E outro grave problema: o córrego Iara.

Temos aqui o córrego Iara que é uma imundície. Como nós não temos rede de esgotos e nem fossa, pois os terrenos da região estão num baixada, então só nos resta jogar os detritos no córrego. Já enviamos vários abaixo-assinados pedindo a canalização do córrego sem termos sucesso. Em decorrência disto, insetos de todas as espécies surgem e ameaçam os moradores, sendo frequentes baratas, ratos, moscas e principalmente ratazanas, que invadem as casas e destroem roupas, alimentos, objetos domésticos e até atacam as pessoas, principalmente crianças pequenas.

Paulo Fillinto da Silva, morador antigo de Vila Iara, afirma que dentre os principais problemas está o da falta de uma escola no bairro e o córrego Iara no qual são despejados os esgotos, o que ocasiona a presença de insetos de todas as espécies, e também ratos enormes.

Talita dos Santos diz que sua casa tem buracos de rato e que foi obrigada a tapá-los com cimento.

Tem rato tão grande que come até patinhos novos. Uma vez meu irmão puxou o pato e o rato veio junto, agarrado nele.

Maria Carmen Ferreira acentua que sendo o nível da rua mais alto que o das casas, qualquer chuva mais forte faz com que as águas invadam as residências, estragando os móveis e o sinteko do chão.

Maria Carmen Ferreira diz que qualquer chuva mais forte faz com que as águas invadam as residências, estragando os móveis e causando sérios transtornos às pessoas.

Outra moradora, Marilene Oliveira Silva, mostra a frágil pinguela que os moradores construíram para poderem atravessas o córrego e diz que muitas pessoas já escorregaram e caíram dentro dele, machucando-se seriamente. Diz ela:

O córrego já tirou uma boa parte do meu quintal, pois com as inundações ocorre a erosão e a terra desbarranca. No inverno o mau cheiro piora, porque chove menos e as águas ficam mais paradas, com uma cor negra.

Marilene Oliveira da Silva ressalta a inexistência de uma ponte sobre o córrego e diz que muitas pessoas já escorregaram e caíram da pinguela frágil que os moradores construíram.

A Pedreira Morro Grande S. A. detona quatro vezes por dia e essas explosões causam abalo nas casas. 90% delas apresentam rachaduras nas paredes e abalos nas estruturas. Maria Carmen foi obrigada a fazer escoramento em sua casa, pois ela estava correndo perigo de desabar.

A TUSA é a única empresa particular que serve o bairro e mantém poucos ônibus nas linhas Morro Grande-Lapa e Morro Grande-Hospital das Clínicas. O pessoal tem que esperar até uma hora pelos ônibus e são obrigados a pegá-los no ponto inicial, uma vez que eles vão superlotados e não param nos pontos de percurso.

A coleta do lixo é feita duas ou três vezes por semana e isto somente quando o tempo está bom, pois em dias de chuva eles não passam nas ruas. A avenida Eliseo Teixeira Leite, principal via de acesso ao bairro, que foi a primeira estrada de São Paulo, é de terra, toda esburacada, apresentando muitas dificuldades para o trânsito de veículos.

José Bernardes da Silva, jornaleiro há quatro anos na Vila Iara, cita inúmeros problemas, entre eles a falta de orelhões:

[…] tem somente um e ele vive constantemente quebrado, quando funciona, formam-se longas filas para telefonar.

José Bernardes da Silva trabalha como jornaleiro há quatro anos na Vila Iara e diz que faltam orelhões e o único que existe está sempre quebrado.
Comparação: Vila Iara em 1958 e 2021. Fontes: Geoportal Memória e Google Maps

Diário da Noite, São Paulo, Sábado, 17 de fevereiro de 1979.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Sete famílias moram sob o Viaduto Santa Ifigenia (1946)

UM CADAVER SÔBRE A MESA – SOB A CHUVA, O SOL E O FRIO, MOÇOS E VELHOS VIVEM NA MAIOR DAS MISERIAS – DE PERNAMBUCO A SÃO PAULO A PÉ

Aspecto do local em que vivem as sete familias. Os cacarecos, amontoados desordenadamente pelo chão, e os homens sentados aqui e acolá, oferecem um quadro que entristece e comove. Ao sabor dos caprichos do destino, êstes infelizes sofrem as maiores amarguras e desgraças, mas a dor que os irmana tornou-os apaticos e indiferentes, pouco se importando com isto ou aquilo, com a vida ou com a morte.

Quem se dirigir à ala esquerda do Viaduto de Santa Ifigenia, partindo da Praça do Correio assistirá a um espetaculo que, não fôra a realidade cruciante das suas cenas, nos faria duvidas da propria verdade. Sete familias vivem, ali, as suas amarguras diarias, abandonando-se já a sí mesmas, aos vai-e-vens do destino, esperando de “alguem” ou de “alguma coisa” melhores fados. Já não se importam com a vida, e muito menos com a morte. Tudo lhes é indiferente. Entre o choro das crianças, com fome e com frio, os adultos evidenciam a apatia que deles se apoderou. Tudo é dor, é miseria, é desgraça.

O reporter chegou, atravessou todos aqueles cacarecos que atravancam os baixos do Viaduto Santa Efigenia, que se encontrava naquele momento deserto, e dirigiu-se para um deposito da Prefeitura que ali existe. Avistava-se, de longe, seis velas ardendo sobre uma mesa, e figuras humanas ao seu redor. Muitas crianças rastejavam sobre aquele chão imundo. Aproximamo-nos, e vasculhamos com os olhos o recinto. O cadaver de uma criancinha estava sobre a mesa. Não tinha caixão, e apenas um pano azul, em cujos bordos colocaram alguns pedaços de renda barata, cobria o corpo. Ninguem chorava. Indagamos o que acontecera.
– “Esse é o Antonio Carlos, respondeu-nos uma preta gorda. Tem apenas cinco meses. Estava com tosse comprida, e com a chuva dessa noite morreu. Sua mãe chama-se Neusa, veio de Sorocaba há seis meses. Ficou durante um mês no Albergue Noturno, de onde a enxotaram quando teve a criança. Desde aquela época vivem aqui, sob a “ponte”. O senhor precisa ver, moço, quanto sacrificio foi preciso para trazer o cadaver do pobrezinho aqui pro deposito. O fiscal não queria, sob pretexto algum, que ele ficasse aqui. Durante muito tempo esteve aí jogado no chão. Mas um reporter que esteve aqui fez com que o fiscal mudasse de opinião. Mas ninguem sabe onde é que o menino deve ser enterrado, e nem dinheiro para comprar um caixãozinho para ele nós temos. Estamos angariando auxilio para que, ao menos, ele não seja enterrado assim”.
As palavras da preta velha saiam cansadas, mas com indiferença. A dor tornara-se, entre eles, uma coisa comum e de todos os instantes.

“UM DIA VEIO UM HOMEM”

Indagamos do nome da nossa interlocutora.
– “Maria Cecilia dos Santos. Vem de Porto Feliz, há algum tempo. Moravamos, meu marido e meus filhos […] na rua Diogo de Faria, lá na Vila Mariana. Mas um dia, faz já alguns meses, veio um homem e disse que nós teriamos que mudar. Naquele local ia ser construida uma fabrica. Desde então começou nosso martirio. Procuramos durante muito tempo uma casa, um quarto para morar. Mas a resposta era sempre a mesma: “Com crianças é impossivel, não aceitamos”. Tivemos que vir pra cá, porque nem no Albergue Noturno não se aceitam crianças. E aqui já estamos há varios meses, sujeitos ao frio, ao sol e à chuva, comendo o que Deus nos dá e como os homens querem. Nós vamos ficandi aqui até que nos mandem embora ou então até morrer. Eu só peço a Deus que tenha dó das minhas crianças”.

OS FILHOS SEMPRE OS FILHOS

Irene Maria dos Santos veio de Itajubá no Estado de Minas, há 10 anos, a fim de empregar-se em São Paulo. Trabalhava numa casa de “granfinos”. Mas teve um filho. Isto há três anos. A patrôa disse-lhe que com a criança ela não podia ficar ali, despedindo-a. Deu ao pequeno Wilson, esse é o nome do seu garoto mais velho, a uma comadre, e procurou outro emprego. Há um ano, porem dera à luz mais um bebê. E novamente foi despedida. Seu ultimo recurso foi dirigir-se ao Viaduto. Haveria de arranjar um lugarzinho para si e para o seu David. E assim aconteceu: há seis meses que habita os baixos do Viaduto Santa Ifigenia, irmanada pela dor ás demais familias que ali moram.
– “Que é que eu posso fazer? Quero trabalhar e não posso. O pais dos meninos não liga nem para eles e nem para mim. Eu tenho que ficar aqui até que alguma coisa venha mudar tudo, para melhor ou para pior. A vida é assim mesmo, seu reporter – hoje a gente está aqui, amanhã ali. Nesta vida ou na outra, pouco importa”.

Vitalina Alves dos Santos tambem veio de Minas. De Lambari.
– “Disseram-me que a vida aqui em São Paulo era facil. Que aqui tudo eram bom. E há seis meses que estou na cidade. Há seis meses que estamos, meus filhos e eu, passando fome e miseria. Morando debaixo desse viaduto. Pedi emprego inumeros lugares. Mas ninguem quer empregadas com filhos. A minha filha que tem agora 3 anos, fui obrigada a dar ao meu compadre. Este que está aqui comigo é o Washington Luiz, e tem um ano. De vez em quando arranjo algum servicinho para ganhar algum dinheiro. Mas mandam logo a gente embora, porque não pode dormir no emprego: e dormir na casa do patrão com filhos eles não querem. A gente tem que ir vivendo desse jeito mesmo. Outro remedio não tem”.

“EU VOU VOLTAR PARA O INTERIOR”

Maria Aparecida Ribeiro é jovem ainda. Tem apenas 24 anos. Separou-se do marido, que mora em Piracicaba, e há dois meses que vive sob o viaduto. Dorme com seus dois filhinhos – Salvagete e Maria Eunice, com 6 e 2 anos de idade, num velho e rasgado colchão, que está colocado sobre uns caixões.
– “Trabalhar eu não posso, por causa das crianças. Vou passando como Deus quer. Alguns me dão alguma coisa para comer, outros alguns farrapos para vestir. Mas eu vou voltar para o interior. Lá eu nunca vi familia morar assim na rua, tomando sol, chuva, frio e vento, além de passar fome. Lá os homens possuem melhor coração. Todos ajudam a gente, e tambem se pode trabalhar mesmo com filhos. Aqui ninguem quer saber de crianças – parece que têm medo dos meninos”.

DE PERNAMBUCO A S. PAULO ANDANDO

Um homem moreno, de fisionomia decidida, mas fisicamente abatido, magro, tossindo secamente, estava, com as mãos na cabeça, sentado num caixão. Aproximamo-nos, e ele calmamente levantou-se, oferecendo-nos o lugar. Puxamos conversa. Ele falava pausadamente, mas falava bem. O seu linguajar era nordestino.
– José Correia é o meu nome. Minha mulher chama-se Maria José, assim como aquela menina que está sobre o seu colo e que tem um ano e meio de idade. Esta é minha filha tambem e chama-se Djanira e está com oito anos – diz ele apontando para uma garotinha magra e de olhos muito vivos. Nós somos de Brejeiras, que fica no Estado de Pernambuco. Saimos de lá há 28 dias e viemos a pé. Uma vez ou outra conseguiamos alguma “carona” numa carroça ou caminhão. Mas a maior parte do percurso foi feita andando. E as meninas andavam tambem. Soubemos, lá em Pernambuco, onde eu trabalhava na roça, que em São Paulo se vivia bem. A vida lá no nordeste está dificilima. Resolvemos vir para cá. Chegamos ontem. Procurei inutilmente um quarto ou qualquer outro alojamento no qual pudesse abrigar os meus. Foi impossivel encontrar. Tivemos que vir para cá. E aqui estamos sujeitos ao sol, à chuva e ao frio. Não temos dinheiro e procurei trabalho, ontem, mas nada consegui. Vou tentar novamente. Sei que é dificil. Mas ja estamos aqui e tenho que enfrentar a vida. Ou então morrer e deixar perecer os meus de fome.

UM QUADRO IMPRESSIONANTE

Para se imaginar a tristeza daquele quadro e daquelas vida, bastava observar as fisionomias de todos esses infelizes. Mas tudo o que ali estava reunido traduzia miseria. Os cacarecos esparramados pelo chão, velhas canastras, roupas sujas amontoadas em grandes trouxas, farrapos estendidos pelo chão a guisa de cama, tudo era pauperrimo Duas pedras e, sobre elas, atravessadas duas varetas de ferro serviam de fogão. Quatro deles existiam ali. Três estavam apagados e um fumegava. Olhamos o primeiro: uma espuma suja e gordurosa sobrenadavam a um liquido imundo e de côr de terra. Dentro se podia divisar alguns pés de porco, que ali deviam estar desde ontem. A panela era uma lata velha de banha. Esse seria o almoço e o jantar de toda uma familia. No segundo estavam uns restos de arroz e, ao lado, numa outra lata, pedaços de pasteis e de mortadela podre, que deveriam ser requentados e iriam servir de repasto a uma velha e duas crianças. No terceiro havia somente café – um café ralo e mal cheiroso. No ultimo, um pouquinho de feijão estava sendo requentado. Feijão e nada mais. Sobre uma tábua, proxima ao fogão, uns tomates podres iriam servir para a salada.
Isso é o que aquela gente come. Mulheres e crianças. Moços e velhos. Ali nos baixos do Viaduto Santa Ifigenia no coração de São Paulo.

Diário da Noite, 14 de março de 1946

* A grafia original do texto foi mantida, preservando-se quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira