O Caso das Máscaras de Chumbo

No dia 20 de agosto de 1966, no Morro do Vintém, região próxima a Niterói, os corpos de dois homens em estado de decomposição foram encontrados. As circunstâncias bizarras que permeiam os últimos dias de vida de Miguel José Viana e Manuel Pereira da Cruz, bem como o local onde seus corpos foram encontrados e as investigações acerca de sua morte, eternizaram o Caso das Máscaras de Chumbo como um dos maiores mistérios da história do Brasil no século XX.

A seguir, apresento-lhes um texto composto por uma coletânea de reportagens e fotografias que abordaram o caso à época dos acontecimentos.

Miguel e Manuel

A asma tomou conta do corpo do menino Miguel José Viana quando ele ainda cursava o primário. A doença, que lhe proibia qualquer esforço físico, fê-lo arredio, distante dos colegas quando fora da sala de aulas. Sempre que tentava juntar-se aos outros meninos, nas brincadeiras do recreio, o esforço lhe provocava uma nova crise asmática. Seu divertimento era a leitura das revistas de histórias em quadrinhos, cujos heróis começaram a povoar a sua infância, isto até os doze anos. Quando ainda não havia completado os catorze, o pai surpreendeu em seu quarto, numa das gavetas da pequena escrivaninha, vários envelopes selados: é que o filho de há muito passara a receber lições por correspondência de uma “escola de eletrônica” de São Paulo. Lições que eram pagas com o produto das revistas que, depois de lidas, o menino Miguel ia vender, por metade do preço, na calçada da igreja principal de Campos. Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Foi anos depois, quando estagiava numa empresa de aparelhos elétricos e eletrônicos, no Rio, que Miguel conheceu Manuel Pereira da Cruz. A amizade foi rápida — e seria duradoura. Com o transcorrer dos anos, ambos se tornaram profissionais conceituados, em Campos, e sua importância cresceu quando a cidade começou a retransmitir os programas de televisão das emissoras do Rio. Ampliava-se, assim, o campo de atividades dos dois técnicos. Quando se casaram, as respectivas mulheres se tornaram também amigas íntimas. Era como se a família de um fosse o prolongamento da família do outro.

Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana

Harmonia absoluta, entendimento completo. Apenas uma ou outra divergência, quando Miguel mostrava-se inclinado a converter-se ao espiritismo, de que seu pai era crente fervoroso e obstinado. Além de “seu” Amaro, seu pai, Miguel passou a sofrer, nos últimos anos, a influência de um outro kardecista, Hélcio Correia Gomes, que dentro em pouco se fazia íntimo dos dois. A ascendência do espírita Hélcio sobre seu marido começou a preocupar não apenas D. Elza, mas também D. Neli, mulher de Manuel Pereira da Cruz. Reclamavam ambas, particularmente, contra o fato de Hélcio entrar a qualquer hora na casa dos amigos, mesmo quando estes ali não se encontravam.

Muitas vezes, Miguel, Manuel e Hélcio demoravam-se conversando horas seguidas, e já então, como D. Elza certa vez surpreendera, a conversa não era mais apenas sobre problemas de eletrônica, mas sobre assuntos espíritas. Por várias vezes, nessas conversas, fôra feita referência, por Hélcio e Miguel, ao “planeta de muitos sóis”; e noutra ocasião, Miguel disse ao pai:

Estou certo de que a Terra não é o único planeta habitado. Muitos outros planetas também o são. Atualmente venho fazendo estudos a respeito e estou cada vez mais convicto de que as possibilidades de o homem chegar a um outro mundo habitado são muito maiores e mais fáceis do que se imagina.

Miguel José Viana

As longas conversas dos três — que sentiam a hostilidade de D. Elza e D. Neli — já não se realizavam na casa de Miguel ou Manuel, mas no jipe dos dois técnicos, estacionado em frente à residência de Miguel. E a confabulação noturna muitas vezes varava a noite, até o nascer do sol. Instintivamente, D. Elza e D. Neli começaram a perceber que o plano ou projeto, o que quer que fosse que Miguel, Manuel e Hélcio traziam na cabeça, estava prestes a se consumar.

A explosão de Atafona

Em 13 de junho de 1966, uma forte explosão, na residência de Manuel, aumentou ainda mais a inquietação das duas mulheres. A formidável explosão, acompanhada de intensa luminosidade, registrada na praia de Atafona foi ouvida num raio de dez quilômetros. E tal foi o seu impacto que chegou a sacudir o prédio da Prefeitura de São João da Barra, cinco quilômetros além.

Sabe-se, mais, que, poucos dias antes da explosão em Atafona, a bela Isabel, irmã de Miguel José Viana, deste ouviu a mesma frase que ouviria dois meses depois, poucos dias antes dos acontecimentos no Morro do Vintém. A frase é esta:

Muito em breve vou cumprir uma missão muito importante. Mas é segredo que não posso revelar a ninguém.

Miguel José Viana

Sim, alguma coisa estava prestes a acontecer. Alguma coisa da maior seriedade. É o que mostravam a fisionomia grave de Miguel e Manuel, a presença já agora arredia de Hélcio e, também, as misteriosas experiências que horas seguidas, dias seguidos prendiam Miguel e Manuel no pequeno laboratório improvisado na casa do primeiro. Enquanto isso, faziam-se mais assíduas as visitas de Manuel Pereira ao Centro Espírita Bom Jesus, em Campos. E na sua estante, os livros sobre eletrônica já se misturavam às obras de Allan Kardec e Chico Xavier.

Foi na sexta-feira, 12 de agosto, que Fernando José, vizinho e velho amigo de Miguel e Manuel, surpreendeu-os, na oficina instalada na casa do último, martelando um cano de chumbo. Curioso, perguntou de que se tratava. A princípio, os dois técnicos guardaram silêncio. Mas, ante a insistência do vizinho, lhe dão uma resposta um tanto nebulosa:

Estamos criando qualquer coisa que evitará o fim do mundo, em 1968, quando do grande ciclone que arrasará grande parte do nosso planeta.

E nada mais disseram. Naquela noite mesma, quando D. Neli foi à oficina, encontrou Miguel e Manuel provando diante de um espelho alguma coisa que se assemelhava a máscaras de chumbo.

Ida a São Paulo

A partir de então, os acontecimentos se precipitam. Na terça-feira, dia 16, Manuel acorda D. Neli, metade da noite, e lhe informa da viagem que fará a São Paulo, no dia seguinte, em companhia de Miguel. E lhe pede que conte o dinheiro — dois milhões e trezentos mil cruzeiros — e o acomode num pequeno saco de plástico, destinado à compra em São Paulo de um Volkswagen.

Precisamos, eu e Miguel, de um carro para melhor atender aos fregueses. Vamos comprá-lo em São Paulo.

No dia seguinte, 17, os dois seguem para a rodoviária, no centro de Campos, onde tomarão o ônibus das 9 horas. Lá já se encontra Hélcio Gomes, que chegara minutos antes. Nem Miguel nem Manuel levam qualquer bagagem, fato que deixou intrigada D. Neli. E é sem bagagem que ambos chegam a Niterói, na tarde daquele mesmo dia.

O roteiro de Miguel e Manuel em Niterói, no dia 17, já foi o seguinte:

Às 15 horas, ambos estiveram na Casa Brasília, um armarinho da Rua Coronel Gomes Machado, onde adquiriram duas capas impermeáveis, para chuva, e pelas quais pagaram Cr$ 18.000. Às 15h30m, entram na loja de ferragens de Ernane Carvalho Filho, conhecido de Manuel, e ao qual informam da viagem a S. Paulo — não mais para comprar o “fusca”, mas material para aparelhos de televisão, que não é encontrado no Rio. Quando Ernane tenta prolongar a conversa com os dois técnicos, Manuel despede-se, rápido:

Até outra vez, meu caro. Estamos com pressa.

Manuel Pereira da Cruz

Às 16h30m, os dois entram no Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, e são atendidos por Lourdes, a bela adolescente filha do dono da casa, a quem pedem uma garrafa de água mineral, bem gelada. Nenhum dos dois bebe da garrafa, ali no bar, levando-a consigo e prometendo devolver depois o casco. “Os dois pareciam muito nervosos”, dirá mais tarde aos policiais a jovem Lourdes.

São exatamente 16h35min quando Miguel e Manuel deixam o Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, em Niterói. Não seriam mais vistos, a não ser três dias depois, quando seus corpos foram encontrados bem no alto do Morro do Vintém, conforme a denúncia anônima que o Comissário Oscar recebeu pelo telefone na tarde chuvosa do dia 20 de agosto.

Corpos encontrados

Era uma tarde de sábado, 20 de agosto. Na pequena sala dos detetives do 2.° Distrito Policial, em Niterói, o cigarro esquecido no canto da boca, os pés estendidos sobre a escrivaninha, o Comissário Oscar, velho e experimentado policial, Durante todo o dia, o plantão se arrastara monótono, e assim prometia continuar noite adentro, quando, de repente, o telefone tocou. Sem pressa, o comissário recolheu os pés, jogou a ponta de cigarro no chão, amassando-a com o pé, e atendeu:

— Segundo Distrito.
— Da delegacia, não é? Pois tenho uma informação a dar. Dois homens foram assassinados no Morro do Vintém, bem lá no alto. Um deles é um famoso jogador de futebol.
— Mas, onde exatamente? Qual jogador? Alô? Quem está falando? Alô!…

Como resposta, o comissário ouviu o ruído característico do telefone que acabara de ser desligado. Durante meia hora, aguardou inutilmente que o aparelho voltasse a tilintar. Como o aparelho não voltou a tocar, decidiu ir até o local indicado pelo informante anônimo. Aos policiais que o acompanhavam disse apenas que se tratava de uma diligência de rotina no alto do Morro do Vintém. Mas galgar o morro era proeza que o comissário viu logo ser-lhe impossível. A subida é íngreme. A solução era apelar para o corpo de bombeiros.

Morro do Vintém, Niterói.
Morro do Vintém, Niterói.

Quando os bombeiros alcançaram o cume do morro — “bem lá no alto”, após uma caminhada de mais de uma hora, conforme a indicação telefônica (e também de um policial que fora informado por garotos que empinavam pipa na região e avistaram os rapazes) — encontraram, de fato, os corpos de dois homens que os primeiros indícios (começo de putrefação) mostravam terem sido mortos havia já várias horas. Os mortos estavam bem vestidos, trajando ternos, sapatos de sola de borracha, gravatas, e sobre ligeiramente cobertos pelo mato, e nenhum deles apresentava qualquer sinal de violência. Sobre eles, também estavam as duas capas impermeáveis, adquiridas dias antes na Casa Brasília. A princípio, evidenciou-se que não se tratava de um latrocínio, pois os mortos traziam consigo, intactos, além de razoável soma em dinheiro, os seus pertences: óculos, alianças de ouro e relógios de pulso. No entanto, o dinheiro encontrado não chegava a 10% da quantia com que os dois rapazes deixaram Campos. E o maior mistério, um detalhe insólito: junto aos corpos, ao lado de uma garrafa de água mineral Magnesiana, e um pacote com duas pequenas toalhas., achavam-se duas máscaras de chumbo grotescamente modeladas.

Os corpos no momento em que a perícia chegou ao local

Também foi encontrado no local um lenço comum, branco, com as iniciais A.M.S. bordadas. Um outro problema, descobrir seu dono. Fósforos, cigarros, escova de dente e um jornal do dia, também foram encontrados no local.

Recolhidas nos bolsos interiores de suas vestes, as carteiras deram a identidade dos mortos: Miguel José Viana, de 34 anos; e Manuel Pereira da Cruz, de 32 anos.

Bombeiros verificando os corpos

Além das máscaras, foram encontrados com os cadáveres do Morro do Vintém algumas estranhas anotações, inclusive equações que à primeira vista, ao entendimento leigo, pareciam símbolos cabalísticos. Uma dessas anotações dizia:

Às 16h30m — estar no local determinado.
Às 18h30m — ingerir cápsulas. Após efeito, proteger metade do rosto com máscaras.
Aguardar sinal marcado.

Noutro pedaço de papel, vinha escrito:

Domingo, uma cápsula após a refeição.
Segunda-feira, uma cápsula ao amanhecer, em jejum.
Terça-feira, uma cápsula após a refeição.
Quarta-feira, uma cápsula ao deitar.

As anotações misteriosas

Um terceiro papel trazia escrito este lembrete: “Comprar tubo de linha de 500 metros.” Encontrou-se, ainda, ao lado do corpo de Miguel, uma grande folha de papel prata-azul, idêntico aos usados nas embalagens de chocolate; e também tabelas comparativas de valores de equações eletrônicas. Uma delas era esta:

(Tal equação foi, mais tarde, identificada por um matemático como a expressão básica da Lei de Ohm, representando a energia movida por uma resistência).

Uma segunda fórmula, encontrada no mesmo local, vinha assim expressa:

É obvio que se trata de uma agenda com instruções para os rapazes. O “ingerir cápsula” chegou a confundir os entendidos, que acreditavam ter Miguel e Manuel tomado algum remédio, que poderia ter causado suas mortes, tendo para isso levado a garrafa de água mineral. Mais um mistério para ser resolvido: a letra em que foi escrita esta pequena agenda não pertence nem a um nem a outro dos dote rapazes mortos. Teria sido um terceiro personagem o autor deste bilhete?

As máscaras estavam lá. Típicas para proteção dos olhos contra luz intensa. Talvez calor exagerado ou mesmo radiação. As capas impermeáveis, absolutamente desnecessárias naquele dia. Todos os requisitos para um bom caso policial.

As Máscaras de Chumbo

Reconstituindo-se os passos dos dois, verificou-se que eles deixaram Campos às 9h da manhã, chegaram à rodoviária de Niterói às 14h30min, compararam as capas às 14h45min e a água mineral às 15h15min. Cinco minutos depois, iniciavam a subida do morro, para estar lá em cima às 16h30min. Se não pararam no caminho, seguindo sempre em frente, eles chegaram na clareira da morte sem um minuto de atraso, uma vez que a subida, para quem já conhece o lugar, leva exatamente 1h10min. Tudo cronometrado como numa experiência de eletrônica.

Corpos sendo retirados do Morro do Vintém

Seguindo esta hipótese, a morte dos dois deve ter ocorrido por volta das 18h30min, do dia 17. O bilhete mandava ingerir as cápsulas a essa hora. E, após o efeito, proteger o rosto com as máscaras de chumbo – e aguardar o sinal marcado. As máscaras , que poderiam ter sido levadas no bolso do paletó, estavam caídas ao lado direito dos corpos. Logo, ou o efeito matou os dois, ou eles morreram na hora do sinal, porque as máscaras já se encontravam em suas mãos, fora dos bolsos.

Máscaras, anotações e recibos

A investigação

Inicialmente, a polícia acreditou que a vinda deles a Niterói se devesse a um encontro com um terceiro personagem. No entanto, faltou base nas investigações. Um latrocínio explicaria alguns detalhes, mas deixaria muitos outros sem explicação. Dois milhões e pouco estavam envolvidos no caso e haviam desaparecido. Bilhetes, máscaras e fórmulas secretas teriam sido deixados no local para confundir a Polícia.

Investigações no local em que os corpos foram encontrados

Mas, como os cadáveres não apresentavam sinais de agressão e a “causa mortis” ainda era desconhecida, foi afastada esta possibilidade, voltando-se então para homicídio. O suposto encontro com um terceiro personagem, a viagem interrompida para São Paulo, a pressa com que Manuel e Miguel subiram ao morro, como se estivessem em cima da hora, reforçam esta possibilidade. Mas como teriam sido mortos? Uma experiência, no ramo da eletrônica, mal sucedida? Seriam eles induzidos a tomar alguma substância que lhes foi letal? O certo é que os cadáveres apresentavam uma cor rosada e não se constatou carbonização, o que certamente teria acontecido se tivessem levado uma descarga elétrica violenta.

Quatro outras hipóteses foram levantadas, dentro de um quadro de homicídio. Uma delas era o contrabando. Os dois teriam sido liquidados por elementos de uma ou de outra organização. Aquele morro é sabidamente um reduto de contrabandistas, e os dois sempre mostraram interesse em peças estrangeiras, difíceis de ser encontradas.

Logo após a descoberta dos corpos, Dr. Venâncio Bittencourt, delegado-titular do 2º Distrito afirmou:

Todo crime praticado por homens fatalmente será elucidado por outros homens. Além do mais, nem se sabe ainda se foi mesmo crime. Pode ter sido um pacto de morte. Logo veremos.

Dr. Venâncio Bittencourt
Dr. José Venâncio Bittencourt

Encolhido num canto da sala, o cigarro esquecido no canto da boca, o Comissário Oscar escutava. Mas a sua equipe já estava em ação.

Crime? Suicídio? Ninguém sabia ao certo. A segunda hipótese levantada era a de espionagem. Segundo o correspondente de uma agência estrangeira, para quem a coisa não tinha mistérios: trata-se do “assassinato de dois espiões que pretendiam instalar nas proximidades do Rio transmissores de alta potência”. A possibilidade de espionagem não foi abandonada, mas os fatos provaram que os rapazes não possuíam meios de estar ligados a organizações internacionais. Os adeptos de James Bond sofreram com isso um revés, mas insistem afirmando que um bom espião é aquele cujas atitudes são perfeitamente normais e não levantam suspeitas.

Uma terceira hipótese afirmava que os rapazes eram homossexuais e teriam sido mortos por conta de sua relação. Entretanto, logo de início esta hipótese foi descartada porque, segundo matéria publicada no Jornal do Brasil, em 24 de agosto de 1966, foi levantada por um investigador do tempo das ceroulas, que desconhecia a existência do slip, zazá e brigite, considerada concepção moderna de cuecas nos anos 1960.

A quarta hipótese, e que agradava mais aos policiais, era a de que se tratava de uma experiência científica. Fórmulas secretas, máscaras de chumbo (chumbo-lençol, maleável), grande conhecimento de eletrônica e ausência total de problemas financeiros, levavam à polícia apostar suas fichas nesta hipótese.

No dia seguinte a notícia da morte dos dois técnicos, residentes na cidade e ali bastante conhecidos, tomou conta de Campos. Nas esquinas, nos bares (diante da “batida” feita com a esplêndida cachaça local), nas portas das lojas, os campistas falam sobre o assunto, discutem-no, sugerem hipóteses e os grupos se dividem: uns afirmam tratar-se de assassinato; outros, de suicídio. E nalguns pontos da cidade a discussão já se acalora, enquanto as emissoras transmitiam de instante a instante pormenores do caso e os quatro jornais locais esgotam suas edições.

Mas, na residência dos mortos, duas mulheres, D. Elza, viúva de Miguel José Viana, e D. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz, mantinham-se silenciosas. Assim um repórter as encontrou, caladas, fechadas no luto recente, os olhos circundados por olheiras a denunciarem seguidas noites insones. Em torno sete crianças, o ar espantado diante dos estranhos que nos últimos dias sitiavam suas casas, vez por outra perguntavam, em tom choroso, quando papai iria voltar.

D. Neli, viúva de Manuel, na companhia dos filhos Maxwell e Rosangela

Na casa de D. Neli o repórter procurava obstinadamente arrancar qualquer coisa de “seu” Pereira, pai de Manuel, um dos mortos. Conseguiu, finalmente, quando “seu” Pereira o levou pelo braço até um dos aposentos da casa e lhe mostrou fragmentos de um material que dizia ser explosivo.

Dias atrás, meu filho Manuel encontrava-se aqui em casa na companhia de Miguel e Hélcio, amigo dos dois, quando ouvimos uma explosão. Uma coisa horrível. Parecia que o mundo ia acabar.

Seu Pereira
Seu Pereira
O irmão de Manuel em seu laboratório.

Na casa de D. Elza, viúva de Miguel, “seu” Amaro, espírita convicto, também procura vafurtar-se a qualquer comentário. O repórter insistia, a conversa arrastava-se, vaga, cortada de cuidadosas reticências. Mas, às tantas, Isabel, filha de “seu” Amaro, interveio no diálogo que parecia cada vez mais impossível. Num desabafo, a voz rouca, ela disse:

Eu sei, eu sei o que aconteceu. Muitas vezes Miguel me falou a respeito de uma experiência muito importante que iria fazer. Nos últimos dias, como ele se mostrasse calado, a fisionomia preocupada, compreendi logo que chegara o momento. Depois, foi aquela viagem súbita, na companhia de Manuel? Porque? Não sei ainda bem o que aconteceu, mas sei que tudo está ligado às coisas aparentemente sem sentido de que ele costumava me falar”.

Isabel, filha de “seu” Amaro
O irmão, a mãe, as irmãs e o pai de Miguel.

A autópsia a que foram submetidos os mortos do Morro do Vintém não revelou qualquer anormalidade, concluindo que a causa da morte foi parada cardíaca sem razão aparente. Nenhuma violência, tampouco qualquer indício de que a morte fora provocada por envenenamento. A causa mortis continuava, assim, sendo um denso mistério — mais um nessa sucessão de mistérios que é o estranho caso das máscaras de chumbo.

Até então, apenas um suspeito havia sido detido pela polícia. Exatamente Hélcio Correia Gomes, um dos figurantes do misterioso trio de Campos, e que acompanhou Miguel e Manuel à rodoviária de Campos quando os dois seguiram para a sua última viagem. Interrogado horas seguidas, Hélcio repete sempre a mesma história:

Sempre fui amigo dos dois. D. Elza pode testemunhar a respeito. Miguel, seu marido, era íntimo meu. Quanto a Manuel, sabíamos que atravessava um mau momento — não financeira, mas moralmente falando — e procurávamos trazê-lo de volta ao bom caminho. Como kardecista crente, procurei colocá-lo em contato com os bons espíritos, e foi com essa intenção que o levei a algumas sessões no Centro. É só. Quando me despedi deles, na rodoviária, estava certo de que iriam mesmo a São Paulo. A partir daquele dia, nada mais sei.

A mulher de Manuel, Neli Pereira da Cruz, fez sérias acusações a Hélcio Gomes, informando que há tempos houve um desentendimento entre ele e o seu marido. E ouviu perfeitamente quando Hélcio ameaçou matar Manuel, somente não o agredindo dada a sua interferência.

Durante as investigações, Hélcio chegou a ser preso e conduzido para interrogatório, no entanto, foi solto por força de um habeas-corpus impetrado por um advogado misterioso, chamado Luis Carlos da Silva, que segundo o próprio Hélcio, era um desconhecido.

Hélcio Pereira Gomes

Posteriormente, o acusado apresentou álibi ao comprovar que, na tarde em que morreram Miguel e Manuel, Hélcio encontrava-se a 400 quilômetros de distância, comprando peças para o seu Volkswagen, no balcão da firma Veículos e Acessórios S. A., da Rua Conselheiro Tomás Coelho, 87, em Campos, informação comprovada pela nota fiscal 21.303, apresentada por ele.

Gomes, no momento em que era detido

Um outro depoimento, a respeito do comportamento de Miguel, desta vez fornecido por Arialdo Santos Viana, seu cunhado, marido de sua irmã Elza, afirmava que o técnico em eletrônica era um homem muito estranho e que, nos últimos 10 anos, somente conseguiu conversar com ele umas duas ou três vezes.

E acrescentou:

Ele era tão esquisito que quando ia à casa de mamãe apanhar minha irmã, ficava do lado de fora, olhando para o céu. E quando era convidado a entrar, recusava, sem falar, balançando apenas com a cabeça.

Arialdo Santos Viana

]Mais de dez dias após Manuel e Miguel terem sido encontrados mortos, a polícia não sabia se os mesmos haviam sido assassinados ou se se suicidaram. Ignorava-se, também, o destino dos milhões que um deles levou consigo, quando ambos deixaram Campos, no dia 17 de agosto. Se foi crime — quem os matou? E com que arma? Se, suicídio de que maneira se suicidaram? Que misteriosa droga teriam ingerido?

Extraterrestres?

Em plena era espacial, em que os foguetes eram notícia, não faltaram aqueles que afirmavam ter sido Miguel e Manuel mortos por um raio de alta potência de origem extraterrena. A profissão dos dois, técnicos de TV, estaria de alguma forma relacionada à experiência que levariam a efeito para captar sinais e mensagens de outros planetas. Os fãs de Flash Gordon vibraram com as declarações de D. Gracinda Barbosa Coutinho de Souza e seus filhos, moradores nas redondezas, que afirmaram ter visto um objeto de forma arredondada, cor laranja, envolto por uma faixa vermelho-brilhante, mais ou menos às 19 horas do dia 17, sobrevoando o morro onde foram encontrados os cadáveres. O disco-voador teria permanecido sobre o local alguns minutos, exatamente na hora tida como da morte dos rapazes.

A família que avistou o suposto disco-voador

A Sra. Gracinda de Souza, esposa de um funcionário da Bolsa de Valores, em Niterói, procurou a polícia para relatar uma estranha ocorrência, de que ela e sua filha, uma menina de 7 anos, dizem ter sido testemunhas:

Foi no dia 17, ao cair da tarde, quando eu e Denise (sua filha) percebemos um objeto estranho sobrevoando o Morro do Vintém. Era uma “coisa” redonda, com uma marca vermelha ao lado.

O objeto, segundo a testemunha, realizava subidas e descidas (por vezes rápidas, por vezes lentas), encontrava-se no espaço, um pouco acima do Morro do Vintém, e ali permaneceu, durante uns três ou quatro minutos, num movimento vertical, sempre emitindo raios azulados.

O disco conforme que o viu

A Sra. Gracinda, casada com o Sr. Paulo Roberto Coutinho de Sousa, mãe de três filhos e cunhada do escrivão Tales, da Primeira Vara Criminal de Niterói, à época, era considerada uma mulher equilibrada, bem conceituada na região onde morava, e ninguém duvidaria das suas informações. Seus filhos confirmaram sua versão e um deles com a ajuda dos outros dois, fez até o desenho do objeto estranho para a polícia.

D. Gracinda e seus filhos

Telepatia?

O General Caio Miranda, professor e diretor de várias academias de ioga, chegou a afirmar, à época, que uma experiência de telepatia poderia ter causado a morte dos dois técnicos em eletrônica. Após eliminar as especulações sobre a levitação e a catalepsia, o General informou que nas experiências telepáticas de maior intensidade, as pessoas, não raro, usam um alcaloide, como o SLD-25 ou a mescalina, que aumenta a acuidade mental e a frequência vibratória do cérebro, “para alongar o alcance de sua onda”.

Considerou, porém que o SLD-25 somente pode ser ingerido em quantidade nunca superior a 25 miligramas, “como indica a sua própria nomenclatura”. “Passando daí – acrescentou – pode causar a morte, pela força de seu efeito.

Explicando o uso das máscaras, o General afirmou que ele se justificaria por uma medida de precaução “já que, numa prova de tão intensa onda vibratória, quereriam os rapazes premunir-se, como os radiologistas que usam avental de chumbo, contra os efeitos de vibrações capazes de atingi-los e fulminá-los”. Mais:

A ingestão de drogas revigora a hipótese de que foi uma experiência de telepatia.

General Caio Machado

Parapsicologia

Outra contribuição que fez referência à possibilidade de se tratar de uma experiência paranormal foi a manifestação do Padre Oscar Quevedo, da Faculdade Anchieta, de São Paulo, professor de parapsicologia, trazendo subsídios importantes sobre outro ângulo pelo qual se poderia ver o caso do Morro do Vintém.

A parapsicologia que estuda, a prática do ocultismo, fenômenos chamados psíquicos, aponta situação em que não é impossível advir a morte, quando da realização de uma experiência em busca de contatos. Dois tipos de experiência podem ser feitas no campo parapsicológico. O da psigama e o da hiperestesia. Em ambos, teoricamente – explica Padre Quevedo – existe a necessidade de que o físico esteja como que num estado de debilidade.

Padre Oscar Quevedo

No primeiro caso, de caráter eminentemente extra-sensorial, o experimentador procura, liberar a alma, na busca de captações espirituais. Já na segunda, os nervos, hiperexcitados, são o instrumento pelo qual o homem procura sentir aspectos sutis da realidade que o cerca.

O Padre Oscar Quevedo frisou que, para o êxito de qualquer uma dessas experiências, é indispensável muito exercício e perfeito estado físico. “É fora de dúvida – acentuou – que, tanto hiperexcitado como no transe psigama, o experimentador sofre o impacto da menor vibração: luz, som e até outras formas de movimento que a Física ainda não conseguiu definir. Isto provoca, independentemente da vontade do “dotado”, tal dispêndio de energia que não seria absurdo admitir que chegue a causar a morte”.

Marcianos

Um outro depoente afirmou que Manuel e Miguel se preparavam para estabelecer contatos com Marte, pois acreditavam existir lá uma civilização superior. Disse também, ter presenciado a descida de uma forma luminosa na Praia de Atafona e que desapareceu minutos depois com forte estampido.

Os experimentos

Coincidência, imaginação, verdade, ficção, nada podia ser desprezado, até que alguma coisa ficasse confirmada com provas. Que os rapazes eram dados a essas tentativas não havia dúvidas. Viviam tentando contato com outros mundos ou com forças sobrenaturais. Eram dados a práticas místicas. Faziam experiências estranhas, barulhentas e perigosas.

Quando Miguel e Manuel, na companhia de Hélcio, provocaram o fenômeno que resultou na tremenda explosão na praia de Atafona, várias casas das redondezas ficaram ligeiramente danificadas. E durante algum tempo não se falava noutra coisa no lugar. Neste mesmo contexto, surgiu uma versão de que um disco voador teria caído na praia.

Essa história e outras de igual calibre constam de vários depoimentos de pessoas intimamente ligadas aos dois experimentistas. Isso, portanto, está mais do que provado. Testemunhal e materialmente, porque as sobras dos fenômenos eram eventualmente recolhidas por pessoas e foram confiscadas pela polícia. Pedaços de canos galvanizados, fios, pólvora, espoletas etc. Sim, porque as experiências não passavam na realidade de detonação de bombas caseiras.

Bomba caseira, feita de tubo galvanizado

Todas essas passagens constam dos depoimentos tomados em cartório, de: d. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz; Sebastião da Cruz, pai de Manuel; Aluísio Batista Azevedo, amigo de ambos; Elza Gomes Viana, viúva de Miguel José Viana; e muitos outros. Eles faziam segredo de tais práticas, e só um grupo reduzido sabia. Um círculo pequeno de amigos.

Pai de Manuel, Sebastião da Cruz

Todos espíritas, que realizavam sessões, reuniões e trabalhos, ora na casa de um, ora na casa de outro. Deles, Miguel, um dos mortos, e Hélcio eram os mais ativos e empolgados. Já Manuel vivia “entre a cruz e a caldeirinha”: acreditava desconfiando. Miguel insistia com o companheiro Manuel para convencê-lo. Uma vez convidou-o a assistir a uma “prova” no quintal de sua casa. Fogos correram pelo chão e culminaram num estrondo. Posteriormente o pai de Manuel, que a tudo assistira da janela, recolheu no local os restos da “prova”.

Um pedaço de cano galvanizado espatifado e fios, que mostrou ao filho, advertindo-o de que estava sendo estupidamente enganado. Mas a dúvida permaneceu, tanto que num dos depoimentos há uma referência a que Manuel, em dia próximo ao de sua morte, teria dito:

Vou assistir a uma experiência definitiva. Depois dela, eu digo se acredito ou não.

Eletrônica + Umbanda

Houve também um outro fato que contribuiu para que o Dr. Venâncio compreendesse que Hélcio Gomes tinha “culpa no cartório”. Curioso em questões de eletrônica, Hélcio era conhecido na cidade como umbandista, e muitos afirmam que ele tinha Miguel, crente convicto, em suas mãos. Inúmeras vezes havia “tratado” da asma do rapaz e, provavelmente, convencera-o, e ao amigo, a realizar algum trabalho misterioso, misturando eletrônica à “macumba“. No entanto, nada pôde ser provado contra o rapaz e é possível que esta teoria tenha sido fruto do preconceito com o qual as religiões de matriz africanas sofriam (e ainda sofrem).

A primeira máscara de chumbo

Houve ainda o surpreendente depoimento do Sr. José de Souza Arêas, morador à Rua Cônego Goulart, 120, na capital fluminense, que procurou o Comissário Oscar para lhe contar a seguinte história:

Em 1962, aqui mesmo em Niterói, aconteceu coisa parecida com a morte dos dois homens de Campos. Um técnico de televisão, apareceu morto no alto do Morro do Cruzeiro. E o senhor sabe o que foi que encontraram ao lado do seu corpo? Uma máscara de chumbo.

José de Souza Arêas

Segundo o depoimento do Sr. José, o homem se chamava Hermes, era pesquisador de eletrônica e trabalhava com um francês, cujo nome José afirmava não se recordar. Hermes, segundo o francês, declarou por ocasião da autópsia – prosseguia narrando José de Sousa Arêas –, fôra ao morro para fazer uma experiência no sentido de captar sinais de televisão sem ser necessário qualquer aparelho, e, como parte da experiência, ingerira um comprimido redondo, que tinha marcas semelhantes às que as cozinheiras fazem com garfo nos bordos de pastéis. Segundo ainda José, o francês declarara, na ocasião, que Hermes morrera porque não estava fisicamente preparado para a empreitada, que oferecia possibilidade de vida ou morte. Na época do fato, finalizou José, o delegado de Neves era Hélio Estrela, que fora afastado anos depois.

O Comissário Oscar Nunes, à época, enumerou o seguintes pontos de coincidência entre o primeiro caso e o dos dois campistas:

1 – a ser verdadeira a informação de José, de que o francês dissera ter Hermes morrido por falta de saúde para suportar a experiência, com Miguel e Manuel pode ter ocorrido o mesmo, de vez que o primeiro era asmático e o segundo sofria de crônica dor no ventre;

2 – só mesmo para uma experiência poderiam ter subido o Morro do Vintém, com máscaras de chumbo para proteger os olhos;

3 – de acordo com informação do subdelegado de Santa Maria, 18º Distrito de Campos, Sr. Henry Caldeira, Manuel já estivera fazendo pesquisas sobre televisão em morros das cidades de Colatina, Alegre e Mimoso, no Espírito Santo, sendo entusiastas de experiências, tanto que recusou o convido do amigo Orlando Cunha para montarem uma fábrica de televisão, alegando que não tinha tempo.

À época das investigações, alguns técnicos em eletrônica do Estado do Rio foram chamados para o que os investigadores fluminenses diziam ser “um bate-papo sobre a matéria da especialidade deles”.
Na opinião de um deles, ambos os rapazes foram mortos por um raio, não o da radiofrequência, que mata sem deixar vestígios, mas a faísca elétrica da atmosfera. E lembra que, na quarta-feira, 17, chovia em Niterói. Os corpos teriam sofrido ligeiras queimaduras, que não foram constatadas pelos médicos legistas porque se desfizeram com a decomposição.

Dúvidas

Se Miguel e Manuel planejavam viajar à São Paulo para realizar a compra de um Volkswagen, por que não levaram consigo nem mesmo uma maleta de roupas, uma vez que empreenderiam longa viagem.

Outro ponto que intriga a policia é ter sido encontrado, perto do local onde os dois técnicos morreram, um papel no qual estava escrito o nome de “Nico Polícia”, policial que tem centro espírita na Rua Maricá, próximo ao Morro do Vintém.

O Morro em que os rapazes foram encontrados possuía, pelo menos, três pontos de acesso: dois por Santa Rosa (Ruas Gastão Gonçalves e Andrade Pinto) e um por Cubango.

Alguns garotos chegaram a alertar a Polícia acerca da presença dos dois homens no morro. Acostumados a andar pelo mato à procura de caça ou para apanhar pipas, na quinta-feira, vieram correndo, mato afora, na caça de uma preá – e informaram ao patrulheiro Antônio Guerra de Castro, da presença de dois homens “que dormiam no mato”. O policial, entendeu que eram dois marginais que se escondiam. E não foi lá imediatamente por dois motivos: porque estava só, e porque achou que ao chegar ao local não mais os encontraria.

No sábado, os mesmos garotos passaram pela clareira – e viram os dois ainda dormindo. Ao descer informaram mais uma vez: “Os dois continuam dormindo”. Antônio Guerra começou a achar que os homens dormiam demais. E para ver de perto, foi buscar reforço no seu companheiro e vizinho, Camerino Guimarães. E lá estavam os dois, dormindo o sono da morte.

O laboratório

Um laboratório de 3 x 4 metros era onde Miguel aplicava seu tempo em consertos de aparelhos de TV e estudos de eletrônica. Possuía bastante material para sua especialidade, lotando prateleiras. Nenhum elemento elucidativo da sua morte, entretanto, ali foi encontrado. Através de Nélson Silva, radiotécnico, ficou-se sabendo que ele entregara a Miguel 200 mil cruzeiros para compra de válvulas.

Nélson Silva

A família de Miguel José Viana negou terem sido escritos por ele os bilhetes recolhidos no Morro do Vintém, pois, não era compatível com sua caligrafia. Também não reconheceram como pertencendo a um dos dois o lenço com as iniciais AMS, encontrado no morro.

Uma pasta de couro marrom não foi aberta, por imposição da família de Miguel, alegando que era material de trabalho externo. Os dois técnicos em eletrônica foram sepultados no dia 23 de agosto de 1966, às 10h30min, fazendo-se presença o então prefeito Carlos Peçanha.

Mistério no ar

Boatos, versões extraterrenas e sobrenaturais são sempre a tônica de casos de difícil solução. Geralmente tratam de fatos apoiados em depoimentos, nunca em provas reais. É uma faixa de perigoso trato, onde qualquer resvalo pode conduzir ao ridículo. Entretanto, nunca podem ser desprezadas, pois constituem invariavelmente uma possibilidade viável. Neste já famoso caso das Máscaras de Chumbo, essas hipóteses vingam na não determinação da causa mortis. E o problema toma dimensões que já ultrapassam os limites do Estado do Rio. Trata-se de um enigma que desafia a técnica policial brasileira.

Se foi crime, teria que haver um terceiro personagem na história. Inicialmente todas as suspeitas recaíam sobre Hélcio Gomes, porém nada ficou que pudesse lhe lançar a mais leve culpa. Nem mesmo a possibilidade de latrocínio, na qual o terceiro homem poderia ser alguém absolutamente desconhecido. Suicídio, nem se pode cogitar, por falta total de base. Sobra ainda a versão de acidente. Um bilhete fala em “ingerir cápsulas”. Eles teriam tomado alguma droga letal com a finalidade de buscar transcendência. Mas o diabo é que isso não aparece nos exames toxicológicos. O que eram as tais cápsulas? Quem as forneceu? Quem as manipulou? Perguntas que, se respondidas, poderiam trazer muita luz ao caso.

Dr. Venâncio

O delegado Venâncio e seus comandados esgotaram os meios, sem nada conseguir. A conclusão a que todos chegam é que somente a determinação da causa da morte pode trazer a solução definitiva. Até mesmo os Serviços Secretos do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal foram envolvidas nas investigações, porém sem resultados frutíferos.

Novas investigações

À época, o secretário de Segurança, dr. Homero Homem, o comissário Luisinho, oficial de gabinete, o delegado Sérgio Rodrigues e o delegado Idovã formaram uma linha de ataque ao problema. Novas diligências foram feitas nas cidades de Campos e Macaé. Outro levantamento de local, mais minucioso e cuidadoso. Reinquirição de todas as testemunhas já ouvidas. Depoimentos de novas testemunhas. Enfim, uma arrancada para a elucidação total e satisfação da sociedade. Prova alguma, porém, surgiu que pudesse atribuir a responsabilidade a alguém pelas mortes de Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana. Cada vez mais se concretizava a ideia de que a chave do mistério residia na identificação da causa mortis. Convictas disso, as autoridades, em agosto de 1967, exumaram os dois corpos. Os drs. Sebastião Faillace e Adalberto Otto colheram mais material para exame. Com a colaboração de mais dois médicos legistas da Guanabara, fizeram um belíssimo trabalho de medicina legal.

Momento da exumação dos corpos

Infelizmente, a presença de formol nos corpos exumados prejudicou sensivelmente o trabalho dos legistas. O embalsamamento pôs por terra grande parte da chance, porque certas substâncias tóxicas não puderam ser testadas.

Num balanço das medidas tomadas, temos os seguintes resultados:
Exames de Local, da época e de dois anos após: nada que determinasse morte violenta ou não.
Laudo de Necropsia da época: nada que pudesse determinar a morte.
Exame Toxicológico do Local: nada que pudesse causar a morte.
Exame Toxicológico na época e na exumação em 1967: nada responsável pela morte.
Exame Grafotécnico: os bilhetes foram escritos por Miguel.

Restava ainda o último cartucho. A última chance, pela determinação da causa da morte. Uma sugestão feita pelo dr. Sérgio Rodrigues e prontamente aceita pelo secretário de Segurança. A remessa de material para o Instituto de Energia Atômica, no Estado de São Paulo. Lá existia um aparelho denominado Análise de Ativação por Nêutrons, cuja ação radioativa, através de exames próprias, poderia identificar substâncias tóxicas nas vísceras. O material foi remetido, mas o parecer dos cientistas foi inconclusivo.

Reabertura do caso: a loura

Dois anos e meio depois do ocorrido, uma nova denúncia gerou a reabertura do caso das Máscaras de Chumbo.

Segundo a denúncia de uma “mulher loura”, moradora de Campos, cujo nome foi omitido, um homem de nacionalidade lituana, também radiotécnico teria sido o responsável pela morte dos dois rapazes em 1966. Ainda segundo a denúncia, o suspeito trabalhava em Niterói e frequentava centros espíritas com os radiotécnicos. Apesar da reabertura do caso, nada se pôde concluir a partir da denúncia da “loura”.

Confissão!?

Ainda em 1969, uma nova pista sacudiu a polícia carioca quando Hamilton Dezani, presidiário cumprindo pena por latrocínio em São Paulo contou a um juiz que três homens teriam assassinado os dois técnicos, em 1966, e que os radiotécnicos foram obrigados, sob a mira de armas, a beber veneno, fato que lhe havia sido contado por um dos matadores. Ao fazer tal declaração, Dezani pediu ao juiz que desse garantias de vida para sua família, que estaria sendo ameaçada por um dos homens que ele acusa da autoria do crime.

Segundo Dezani, ele teria acompanhado três homens, conhecidos apenas como Wilson “Alemão”, Acácio de tal e “Espanhol”, todos “puxadores” de automóveis, integrantes de uma quadrilha que age na Guanabara, Rio e São Paulo, a um centro espírita no Cubango. No citado centro, de propriedade de uma mãe-de-santo chamada Helena, encontraram Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana, tendo sido tratados negócios relacionados com compra e venda de automóveis.

Do centro espírita embarcaram num automóvel e partiram para um local ermo e não muito distante, onde os dois radiotécnicos foram obrigados a saltar, tendo ficado apenas ele, segundo afirma, no interior do carro.

Passados vários minutos voltaram apenas os três, Wilson “Alemão”, Acácio e “Espanhol, o qual, interrogado sobre os dois que faltavam, declarou: “Nós os fizemos beber veneno”. E partiram dali para a Guanabara, onde se separaram.

No entanto, o caso sofreu nova reviravolta quando Hamilton Dezani, ao chegar ao Rio de Janeiro, modificou o depoimento anterior, que prestara em São Paulo, levantando suspeitas de que na verdade tudo se tratava de uma versão fictícia elaborada pelo preso para que pudesse fugir durante sua transferência a Niterói.

Banzai?

Em junho de 1969, o delegado de Homicídios, João Antônio da Silva, afirmou que a polícia fluminense estava em posse de uma nova pista que ajudaria a solucionar o caso das Máscaras de Chumbo. A chave do mistério estaria na palavra japonesa “banzai”, muito utilizada em experiências mediúnicas e no baixo espiritismo, segundo o delegado.

Esta é provavelmente uma das pistas mais “sem noção” apresentadas na história do caso e, obviamente não agregou nada ao caso.

AMS

Ainda em 1969, a polícia chegou a anunciar um novo suspeito: o professor Ramayana Alexandre Santos da Selva Neto, cujo nome verdadeiro era Alexandre Monteiro da Selva Neto: AMS.

Mais uma pista sem qualquer fundamento e possibilidade de comprovação.

Todas as versões serão possíveis, até as sobrenaturais e extraterrenas. Uma pergunta sem resposta. Que tipo de morte esteve no Morro do Vintém, na noitinha de 20 de agosto de 1966? Deste planeta; de outros espaços; de outra dimensão? Que morte que levou duas almas, sem justificar? Que não deixou nada que a identificasse, porque velo mascarada? Com duas Máscaras de Chumbo…

23 anos depois

Em matéria do jornal O Globo, publicada em 1989, o caso é relembrado e novas entrevistas são publicadas.

Para Aurélio Zaluar, jornalista e estudioso de objetos voadores não-identificados, a morte de Miguel e Manuel estava ligada ao fenômeno dos discos voadores:

É certo que os dois eram estudiosos e queriam muito manter contato com outros planetas, através, por exemplo, da aceleração da frequência das ondas cerebrais. É assim como ligar um rádio e captar uma estação. Até admito a hipótese do latrocínio, mas não acredito nela.

Aurélio Zaluar

Para a família de um dos dois técnicos o mistério continuava. Nos 23 anos que separaram o caso da entrevista, Elza Gomes Viana, de 55 anos, viúva de Miguel, criou os quatro filhos que, coincidentemente, seguiram a mesma profissão do pai.

– Sofri muito nas mãos da Polícia e dos repórteres. Parecia que eu e Neli – viúva do Manuel – tínhamos a chave do mistério. Todo dia aparecia um repórter na minha casa. Fui a vários programas do Flávio Cavalcanti, do Homem do Sapato Branco e até um detetive da Interpol me interrogou. Para se ter uma ideia da loucura, hoje, 23 anos depois, ainda me procuram para saber do caso.

D. Neli, à época do falecimento de seu marido

Para o Detetive Saulo Soares de Souza – que trabalhou no caso entre 1966 e 1969 – os técnicos morreram em consequência da ingestão de curare (uma droga de origem indígena utilizada com reservas pela homeopatia), durante uma experiência espiritualista. Apesar de utilizado no tratamento de contrações e espasmos, como na Doença ou na Dança de São Vito, o curare, se absorvido em altas doses, pode paralisar o sistema nervoso central, causar atelectasia pulmonar e matar.

O texto acima foi elaborado com base nas reportagens de Carlos Marques (Manchete), Sônia Beatriz (Cruzeiro), Jorge Audi (Cruzeiro) e nas matérias publicadas pelos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e O Fluminense.

Fotografias por: Nelson Santos e Fernando Seixas

Todos os créditos são devidamente atribuídos aos seus autores originais.

Esta matéria possui finalidade educativa / informativa, sem qualquer intenção de lucro ou monetização sobre o trabalho das entidades mencionadas acima.

Garotas e Drinks (1946)

– Garção, dê-me um uísquei, uísquei com soda. Não, não, dê-me mesmo sem soda. Olhe, pensei melhor, dê-me com soda. Não, não, dê-me sem soda. Escute aqui, ponha bastante soda nesse negócio. Olhe, garção, não ponha soda nesse uísquei. Nem ponha uísquei. Ah, aquêle bandido!

– Garção, faça-me um coquetel de uísquei, gin, gengibirra, vig, vat 69, coloque uma gôta de moscatel, um pouco de champanha rosada e uma gotinha de parati. Não, não bote cerveja por favor, senão eu me embriago.

Mais um drinque com as garôtas. Algumas gotas de essência etílica no fundo de uma taça e começam a vir à tona todos os ocultos vestígios psíquicos de que, mais do que o homem, a mulher descende do macaco.

– Você viu a Lúcia? Tomou 18 coquetéis na festa da Nadir.
– Também, minha filha, não é de se espantar. Ela já tinha bebido 15 em cada da Amélia.

– Onde você vai com êsse guarda-chuva aberto, querida?
– Não sei, menina, não sei. Só sei que o coquetel em casa da Alzira estava ótimo.

– Chiquinha, Chiquinha, você nem pode sonhar como estava gentil o Marcelo ontem. A princípio se portou comigo com certa indiferença. Mas depois que eu bebi o décimo terceiro coquetel senti que êle cedia a tudo que eu queria.

Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1946.
Desenhos e legendas de Alceu.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Patins, sucos, cabelos curtos — O jovem carioca em 1980

Alguns dos itens necessários para compor o jovem de hoje:

Patins — Item básico do equipamento do broto. De diversos tipos, variam de 3.000 a 20.000 cruzeiros. O mais transado é o Torlay (15.000 cruzeiros). Joelheiras e cotoveleiras (730) e munhequeiras (360) são indispensáveis. No Rio, patina-se no Canecão e no Roxy Roller, da Lagoa. São Paulo tem mais de dez pistas — surgidas apenas este ano —, cujo ingresso varia de 50 a 300 cruzeiros. As mais quentes são o Rink e o Roxy Roller.

Alimentação Natural — À parte sanduíches vegetarianos, o grande must são os sucos. De combinações as mais esdrúxulas — mamão com maçã, laranja com morango —, custam 40 cruzeiros. Pão caseiro e chás que curam tudo, de enxaqueca a gordura, são também muito consumidos.

Cabelos — Nas meninas, trancinhas e rabos-de-cavalo, presos por conchas do mar e outros berloques. Cara limpa, sem pinturas: no máximo, um lápis. Para os meninos, a nuca batida não pegou: o corte é convencional, estilo “Papai Mandou”.

Roupas — Ao contrário da geração anterior, a dos brotos de hoje se veste rigorosamente bem. Para meninas, as minissaias têm cores pastéis (azul-claro, verde-água), e os preços variam de 640 a 2.000 cruzeiros. Além disso, bermudões, sapatinhos de pano, chapeuzinhos, perfumes e cosméticos naturais, à base de ervas. Para garotos, camisetas com muita cor e inscrições em inglês (800). Para ambos, a calça baggy já caiu de moda: o quente é a nem muito larga nem muito justa, com a boca saindo reta. O sapato é o Top Sider (1.780 cruzeiros).

Música, dança — O aparelho de som é a “menina dos olhos”: todos procuram ter o seu. Sem ídolos em especial, os jovens gostam de escutar “um som” e assistem aos shows dançando o tempo todo. Com o fim das discotecas, a maioria fica só nas pistas de patins. No Rio, após o Canecão, estica-se no Pizza Palace, em Ipanema, ou no Caribe, em São Conrado.

Gírias — Algumas gírias que já se consagram entre os jovens:

Brotinho — Soa década de 50, mas é como estão sendo chamadas as da segunda geração de “cocotas”.
Dar valor — Preferir. “O baixo Leblon já era, dou valor ao Pizza Palace.”
Dragão, Jaburu — Menina feia.
Nas internas — Entre o grupo, “Isso a gente discute nas internas.”
Roupa — Cocaína. “Tem roupa aí?”
Salcero — Confusão. “Arrepiou o maior salcero no social do brotinho.” Ou, teve briga na festa da “gatinha”.
Social — Equivalente festivo do visual. Um campeonato de windsurf é um tremendo visual. A festa de comemoração, depois, é um social.
Rapeizes, Tchiurma — O grupo. Quem frequenta os mesmos sociais é da tchiurma. São os rapeizes, que incluem os dois sexos.

Matéria veiculada em 5 de novembro de 1980.
Fonte: VEJA SP

O Jiu-jitsu de Géo Omori

Constituiu acontecimento de singular expressão para quasi todo o país o estranho caso ocorrido com o atleta japonês Géo Omori, que se celebrizou em “rings” brasileiros como bravo lutador de “jiu-jitsu”. Acometido, subitamente, de impressionante, enfermidade, que o deixou prostrado, cego, surdo, mudo e louco, sobre o leito de um manicomio, esteve quasi sete dias sem fazer o menor movimento, em angustiante imobilidade, sem embargo dos desesperados recursos da ciencia para fazê-lo voltar á razão.
E mais impressionante se fazia a molestia por ser até agora de origem desconhecida, conquanto prevaleça até hoje a primeira hipotese formulada, de que o mal sobreviera a dificuldades financeiras, grandes, que atormentavam o espirito do “fighter”.

TRESENTOS CONTOS QUE SE DESBARATAM

Realmente, quem conhece a vida passada de Omori, desde que chegou ao Brasil, pode avaliar a triste situação em que ele hoje se encontra, vivendo apenas do dinheiro que lhe advem do emprego de zelador do aquario da Feira Permanente de Amostrar de Belo Horizonte. Omori, ao deixar sua partia, o Japão, dirigiu-se aos Estados Unidos. Já era então um grande campeão, detentor da “faixa preta”, que no Imperio do Sol Nascente classifica o lutador que jámais foi vencido em combate. Ia disposto a fazer fortuna. E fê-la.

Na temporada que realizou na terra dos dollars, propícia a toda sorte de lutadores, conseguiu juntar bastante dinheiro, a ponto de dispôr de mais de tresentos contos de réis, ao saltar no Rio, para onde então se encaminhara disposto a descansar.

Onde procurava descanso, entretanto, só encontrou trabalho. Decidido a abandonar o violento sport a que dedicara toda a sua vida, resolveu tentar outra sorte de ocupação e foi assim que, de campeão de jiu-jitsu, se transformou em modesto comerciante. Estabeleceu-se em São Paulo, com uma casa de peixes raros e de fantasia. Já em sua patria mostrava predileção por essa especie de negocio, tão conforme, aliás, ao seu temperamento sossegado, um tanto apatico, amigo do silencio.

Foi infeliz. O estabelecimento não lhes correspondeu á expectativa. Deu prejuizo. Pessoas que privavam de sua intimidade por essa época dizem que Omori não demonstrou ser bom negociante. O cliente lhe fazia mais exigencias que Omori a ele. E o japonês acabava por ser convencido, desfazendo-se do que tinha mais para satisfazer aos que procuravam que para ganhar dinheiro. Coração bonissimo, revelava-se incapaz de uma exigencia teimosa, pertinaz.
Por outro lado, o genero de comercio que escolhera era dos mais ingratos. Morriam-lhe os delicados peixinhos ás duzias. Faliu por fim.

NO RIO

Um dia Omori apareceu no Rio. O jiu-jitsu era praticamente desconhecido entre nós. O campeão não quis aproveitar a excelente oportunidade logo. Antes de nada, cuidou de sua velha paixão. Estabeleceu-se com os peixinhos, no antigo edificio de “O País”, na avenida Rio Branco. A “guigne” o perseguia. Os maus negocios continuaram. E novamente Géo Omori faliu, com prejuizos ainda maiores e mais graves.

Novamente foi para São Paulo e novamente se estabeleceu. Era já uma mania. Reconhecia ser o ambiente ingrato. Poucas pessoas visitavam seu estabelecimento, e assim mesmo querendo levar por preço baixo as preciosidades que Omori colecionava com verdadeira paixão. Os tresentos contos se desbaratavam, iam pouco e pouco desaparecendo. Um dia chegou a penuria, a triste penuria do campeão. para não passar por privações, voltou ao sport, aceitando o convite que lhe fazia a administração do Circo Irmão Juliriolo.

RESSURGE O LUTADOR!

O aparecimento de Omori em “rings” brasileiros foi um acontecimento de extraordinaria expressão sportiva. Modalidade de sport quasi ainda sem cultores no país ‒ existiam apenas os irmãos Gracie ‒ conquistou a simpatia, o entusiasmo popular. As primeiras exibições de Omori o consagraram.
Longo tempo de retraimento, de ausencia dos “rings” não tinham arrefecido o vigor do campeão. Era ainda o bravo, o inconfundivel Omori, o homem da “faixa preta”.

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Os cronistas esportivos dedicaram-lhe longas colunas de noticiario, glosando a excelencia de seus conhecimentos tecnicos. Foi um sucesso. Em São Paulo não se falava de outro “sportsman”. Decoraram-lhe o nome até as crianças, embevecidas diante daquelas quédas espetaculares, emocionante, do campeão.
No Rio os irmãos Gracie introduziram a novidade do jiu-jitsu. Omori foi convocado a participar da temporada que se inaugurava. Veiu, venceu e consagrou-se. A fortuna sorriria-lhe novamente. Mas…

Enquanto lutava, só tinha uma preocupação: o comercio dos peixinhos. Assim que pôde, começou a examinar as possibilidades de reabrir o estabelecimento. Em São Paulo, com os quatros contos que lhe pagava o circo, tinha prosseguido nos negocios, perdendo sempre. Lutador de fibra, achou, porém, que ainda devia insistir. E foi assim que surgiu novamente o comerciante Omori. Sua casa, na rua Gonçalves Dias, tornou-se o ponto de atração dos “sportsmen” e cronistas. Falava-se ali mais de jiu-jitsu que de peixes…

Vieram patricios de Omori, tambem lutadores de jiu-jitsu, atraidos pelo sucesso que ele alcançava. E os “rings” cariocas vibraram ao rumor daqueles “matches” emocionantes. O sport niponico empolgou a cidade. Os irmãos Gracie abriram uma academia, na rua Marquês de Abrantes. Não se falava de outra coisa. E até o malandro do morro ia deixando o “rabo de arraia” ao abandono, desprezando a “rasteira” secular e legitimamente brasileira, para tentar aprender “tesouras”, “chaves de braço”, “gravatas”, etc.

A velha tapona, incisiva, contundente, humilhante, cedeu logar á aristocratica chave de braço, á discreta pancadinha sobre os rins, que ninguem se pejava de conhecer, mesmo nos salões elegantes.
Parlamentares austeros, sizudos, iam ás escondidas presenciar o espetaculo. E até um sacerdote, não menos digno que os mais, que conciliava os interesses da Igreja com os da Politica, se permitiu a liberdade de anunciar publicamente que iria aprender o “jiu-jitsu”, afim de resolver quaisquer embaraços que porventura surgissem no harmonioso ritmo de sua carreira pela Camara dos Deputados…

GLORIA

Omori, Gracie, Miaki, Iano e tantos outros constituiram então a pleiade maravilhosa. Ditadores da simpatia publica, viam seus nomes enchendo paginas dos jornais e a boca do povo. Em qualquer rincão da cidade que se citasse um desses nomes todos o conheciam. E o primeiro, principalmente, se cercava de uma verdadeira aureola.
Mas… a casa dos peixinhos continuava. Ponto de atração dos lutadores niponicos, lá ia como barquinho de papel pela vida fóra.

Muitas vezes os jornalistas surpreendiam por detrás do balcão um rosto feminino, sempre sorridente. Não dizia uma palavra em português, mas sorria tão á brasileira que todos a compreendiam.
Cetuko, a esposa de Omori. Meiga, carinhosa, não abandonava jamais o companheiro. Quando Géo tinha negocios a resolver fóra, lutas a combinar, ela alí permanecia, vigilante, sorrindo apenas para os que chegavam e saiam.

Géo se considerava feliz. A tempestade lhe levara tudo ‒ mas a vida não estava alí, á sua frente, ainda risonha? Lutaria, procuraria conseguir a prosperidade passada. Forças não lhe faltariam.
Para cumulo de contentamento, dois olhinhos de amendoas num rosto palido e mimoso vieram encher o lar do lutador ‒ Kimika, florzinha graciosa que brotara daquele amor tão constante.

OCASO

Não ha gloria sem ocaso. O de Omori veiu por fim. Teve de passar o negocio adiante. As lutas escassearam. A idade pesava-lhe e outros concorrentes apareciam na liça, a disputar-lhe a popularidade. Raro em raro, o nome vinha nos jornais. Era a “debacle”.

NOS ESTADOS

O tempo correu, fazendo crescer as dificuldades. Desesperançado de reconquistar a boa situação passada, Omori resolveu sair do Rio. Foi para os Estados, realizar lutas avulsas. E assim se encontrava agora em Belo Horizonte, quando o colheu a fatalidade.

LOUCO, CEGO, SURDO E MUDO!

Na capital mineira deram-lhe o emprego de zelador do aquario da Feira de Amostras Permanente, com 1:400$000 mensais. Era ainda a velha paixão ‒ de que nunca pôde livrar-se. Para um outro qualquer, o ordenado satisfaria. Mas para Omori, era uma tortura. Apagado, sentia estiolar-se naquela vida pacata e pouco rendosa. Não lutava quasi e, lembrando-se da esposa que ficara no Rio, a tristeza aumentava-lhe, tomava-lhe todo o coração.

Morava com um companheiro dos tempos aureos. Mossoró, “sportsman” português, que se afeiçoara intensamente ao antigo campeão. Era o unico confidente daquela magua, que, entretanto, pouco transparecia. Na infelicidade, Omori conservava a reserva de sempre. Sorria ainda, mas, quem lhe pudesse ver a alma, se assombaria com o esforço de que resultava aquele sorriso.

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Um dia, ao recolher-se, Mossoró passou pela Feira de Amostras. Preocupado com a tristeza do amigo, queria vê-lo acompanhá-lo á pensão em que residiam. Não o viu no logar costumeiro. Procurou e foi então encontrá-lo estirado, inerte, sobre um banco.
Inquietou-se. Chamou pelos outros empregados da Feira e soube que havia mais de seis horas o campeão se achava alí deitado, sem um movimento siquer. Sacudiram-no. Não se mexeu. Falaram-lhe. Não respondeu. Puseram-no de pé. Ia caindo, se o não amparam.
Angustiado, Mossoró pegou Omori ao ombro e saiu a correr com ele até á pensão. E chamou imediatamente medicos, que fossem soccorrer os companheiros.

NO MANICOMIO

Os proprios medicos se impressionaram com o que se passava. Omori estava louco, cego, surgo e mudo! Por que? Aplicaram-lhe injeções, deram-lhe massagens, inutilmente. A imobilidade, pavorosa, persistia.
Não havia outro recurso sinão remover incontinenti o lutador para um hospital, o Instituto Raul Soares. O diretor, Dr. Galba Moss Veloso, julgou o caso singularissimo. A que se devia? A libação alcoolica? A demasiado esforço no “ginr”? A desgostos profundos?

CETUKO E KIMIKA

Cetuko e Kimika, avisadas do doloroso fato, foram correndo a Belo Horizonte. Nada puderam fazer. As lagrimas da esposa de nada valeram para o lutador adormecido. Não ouviu as meigas palavras, sussurradas, em angustia, aos seus ouvidos.
Foi Cetuko quem esclareceu aos medicos a causa do mal de Omori. Atribuia-o mesmo ás dificuldades financeiras. E, por intermedio de Iano, o lutador niponico que tambem estava á cabeceira do enfermo, revelou que ha muito notara aquele acabrunhamento no companheiro, cada vez mais intenso. Omori não se conformava com a situação que o destino lhe reservara. Depois de ter tanto dinheiro, a salvo de quaisquer privações, via-se reduzido a viver do proprio ordenado, a cortar as despesas com a familia. E então, o cerebro o traiu, fazendo-o tombar imovel, cego, surgo, mudo e louco.

A MORTE

Omori, o formidavel lutador, o homem de musculos elasticos e possantes, que derrubara centenas de mestres na sua arte, cujo coração resistira aos mais tremendos embates, jazia no leito, abatido, destroçado. Era uma grande criança inerme, sem vontade definida e, ademais, desprovido de seus mais preciosos atributos físicos. Os medicos tudo fizeram para salvá-lo. Assistiram-no desveladamente, com empenho especialissimo, tanto mais que não puderam caracterizar com segurança rigorosa, sua molestia.

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Então, veiu o fim. Omori, aos 40 anos de idade, morreu, deixando viuva e a filhinha orfã. Omori, invencivel campeão, perdeu em luta com uma molestia fulminante, arrasadora. Venceu-o a morte por golpe inapelavel.
Honra a Géo Omori, lutador leal, perfeito cavalheiro, bom esposo e otimo pai.

A Noite – Ilustrada, 1938.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

 

 

 

Trotes e Logros do 1º de Abril (1951)

ORIGEM DA EXPRESSÃO ‒ O “POISSON D’AVRIL” ‒ LENDAS E MITOS QUE SE ESPALHAM PELO MUNDO

Mentira, instituição nacional ‒ Inverdades de todos os tipos: oficiais e oficiosas, federais, estaduais e municipais

Reportagem de FAGUNDES DE MENEZES

1951-04-01 Diario de Noticias foto 1 de abril

É sabido que somos um país relativamente pobre de tradições, de mitos e de lendas. O que decorre ‒ e não vai nenhuma novidade na afirmativa ‒ de sermos uma nação ainda nova.
Se nesse terreno já possuimos alguma coisa genuinamente nossa, a maioria dos mitos, das lendas, dos costumes veio-nos, como se sabe de povos e culturas mais antigos.

Tem sido de lamentar que, em virtude da nossa relativa pobreza em matéria de tradições e mitos, venham de há muito tempo surgindo entre nós os fabricantes de lendas e mitos, os fazedores de histórias com aparência de folclore, os esnobes transplantadores de usos e festas, hábitos e comemorações inteiramente incompatíveis com o que é brasileiro. Tudo isso se manifestando na literatura, na música, na pintura, na arquitetura.

Não poderá haver nada de mais estúpido do que, no nordeste do país, existirem jardins e praças públicas com arborização apropriada a regiões da Suíça e da Escandinávia, árvores desnudas e esguias, sem possibilitarem um mínimo de sombra, nas horas do sol brabo, tão frequente em cidades do Rio Grande do Norte, do Ceará, de Pernambuco, da Paraíba. Nem coisa que se apresente mais ridícula do que, como existe em Natal, no bairro de Petrópolis (reparem no pedantismo do nome do bairro, por si só a estragar um dos pontos mais bonitos da capital potiguar), casas com telhados absolutamente iguais aos de moradias das regiões alpinas, telhados caindo quase verticalmente sôbre as paredes, para evitar… o acúmulo de neve.

Há também o Papai Noel, coitado, enfrentando o terrível calor do Rio, metido em sua roupa apropriada aos países em que a temperatura vai abaixo de zero gráu.
E mais as árvores de Natal, tão inexpressivas quanto as flores de papel, simbolizadas, através de vegetais estranhos à nossa flóra.
Mas, em meio a essa desabrida e constante importação de usos, hábitos, festividades, é natural que haja alguma coisa que chegando aqui se ambiente, se faça de casa, se incorpore ao que é nosso de tal maneira, ao ponto de, passando muitos anos sòmente meia dúzia de estudiosos conhecer sua origem.
Coisas que chegam aqui e se tornam cem por cento nossas, como o café, a cana de açúcar, os pardais.

Lendas e mitos que se espalham pelo mundo

Também há comemorações, lendas, mitos (outra vez afirmamos que não estamos dizendo qualquer novidade) que, nascidos em determinado lugar, em determinada região, em algum país, assumem um poder de irradiação e penetração, adquirem uma capacidade de se adaptarem às terras mais diversas, à índole dos povos de formação mais diferenciada, que terminam constituindo um patrimônio comum a tôda a humanidade.

O 1º de Abril

Assim aconteceu com o 1º de Abril, o chamado dia da mentira.
Admite-se que o dia da mentira haja surgido na França pelos fins do século XVI. É o “poisson d’avril” dos franceses.
Narra a história que o rei Carlos IX, de França, durante uma viagem ou uma estada de repouso que fêz no Castelo de Rousillon, em Dauphiné, no ano de 1564, baixou um decreto, determinando que o ano passaria a começar a 1º de janeiro, e não mais a 1º de abril*, como até então ocorria.
Depois dêsse decreto real, teria a data em que antigamente começava o ano passado a ser dedicada às brincadeiras, aos mil artifícios para enganar o próximo.

*Na verdade o ano se iniciava em 25 de março, no entanto, as comemorações acabavam no dia 1º de abril.

Origem da expressão francesa

Dão várias origens à expressão “possion d’avril”. Uns dizem que se trata de alusão à pesca, de vez que a pescaria na França quase sempre começa no mês de abril, sem grandes resultados.
Alguns afirmam que a denominação decorre da circunstância de, nesse mês, o sol atingir o signo zodiacal dos peixes.
Ainda outros asseveram que o “poisson d’avril” vem do seguinte fato: um príncipe de Lorraine, que Luís XIII mantinha prisioneiro no Castelo de Nancy, escapou dos seus carcereiros, no dia 1º de abril, atravessando a nado o rio Meurthe. Dêsse fato surgiram comentários jocosos, dizendo-se nas rodas populares que haviam dado aos franceses um peixe para guardar.

De acôrdo com a opinião de outros, “poisson’, no caso, é corruptela de “passion” ‒ uma pilhéria herética, alusiva a um dos episódios da paixão de Cristo, a qual geralmente ocorre em abril.
Durante seu julgamento, Cristo foi de Anás a Caifás, de Pilatos a Herodes e, finalmente, de Herodes a Pilatos.
Ir e vir, ir pra lá, vir pra cá, dando motivo a risos e apupos, eis a comparação estabelecida entre a paixão de Cristo e as brincadeiras do 1º de abril.
Pode-se dar certo crédito a essa versão, pois no século XVI era frequente o aproveitamento em cenas cômicas, pelas casas de espetáculo, dos trechos mais sérios do Novo e do Velho Testamento.

Ainda se opina que a expressão foi traduzida para o francês, tendo sua origem no tempo das perseguições aos cristãos, à época em que êstes se reuniam subterrâneamente, nas catacumbas, impossibilitados de pregar abertamente suas idéias religiosas e tolhidos mesmo de pronunciar em público o nome de Cristo. E quando os cristãos se referiam a Cristo, pronunciavam “ichtus” (peixe em grego) monograma entendido pelos adeptos do Cristianismo, formado com as iniciais das seguintes palavras: Iêsous, Christos, Theou, Uios, Sôter, que quer dizer: Jesus Cristo, de Deus Filho, Salvador.

O mesmo sentido em tôda parte

Generalizado possivelmente em todo o mundo, apesar das peculiaridades que apresenta em cada região, das variações com que decorre a data, de país para país, o 1º de abril tem a mesma significação e o mesmo sentido em tôda parte. A mesma finalidade de enganar, ludibriar, de pregar peças aos amigos, aos parentes e até a estranhos.

Na França, é comum ordenarem às crianças que vão buscar uma corda para amarrar o vento, ou um cesto para carregar água.
Em Portugal, reunem-se varios rapazes, conseguem prender ao solo uma cédula ou moeda e depois ficam à espera do “felizardo” que irá “encontrar” o dinheiro.
Na Alemanha também há os recados falsos, as notícias mentirosas. Quando o que foi vítima da brincadeira percebe o lôgro em que caiu, o autor da pilhéria recita-lhe um verso que podem ser traduzidos livre e resumidamente assim:

“Abril, abril, abril,
Neste mês cada um faz o que quer”

Versos que correspondem ao nosso “Hoje é 1º de Abril!”, dito também a quem se deixa enganar por qualquer brincadeira.
Conta-se êste fato ocorrido na Inglaterra; o “Evening Star”, em 31 de março de 1846, noticiou que no dia seguinte, pela manhã, haveria uma excelente exposição de asnos, a qual seria aberta no salão da Agricultura, de Islington.
No dia e à hora marcados, o salão encheu-se de curiosos e interessados. Houve uma prolongada espera e nada de aparecerem os animais. Afinal, os que acorreram ao salão acabaram se convencendo de que os burros que se encontravam no salão eram êles próprios.

Mentira, instituição nacional

No Brasil, se dá o mesmo cunho à brincadeira. Mente-se com alegria, criam-se histórias de tôda natureza, enviam-se cartas com notícias falsas, há os convites telefônicos para almoços e jantares, feitos em nome de outros.
Entretanto, sòmente no 1º de abril a mentir ocorre entre nós, de um modo assim saudável e inofensivo. Porque a rigor, no Brasil, não existe “dia da mentira” e sim “ano da mentira”, que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro.

A mentira, em nosso país, é uma instituição nacional, tão arraigada quanto o jôgo do bicho, o carnaval, o futebol.
Há tôdas as modalidades de mentira e tôdas elas quotidianas, constantes, ininterruptas, infalíveis: mentiras oficiais, e oficiosas, públicas e particulares, parlamentares e administrativas, radiofônicas e jornalísticas, comerciais, mundanas e domésticas, federais, estaduais e municipais.
Para constatar isso é bastante trazer-se à memória tudo o que se tem lido e visto num curto período, que não precisa ser de quinze anos.

Toma o cidadão um bonde e encontra letreiros chamando-lhe a atenção: “É proibido fumar nos três primeiros bancos”. E mesmo ao seu lado, há um passageiro soltando no ar, ou melhor, jogando-lhe na cara, densas baforadas de charuto.
Se se dispões a viajar de ônibus, o que ‒ para afirmar como um juiz desta capital, referindo-se ao ato de atravessar as ruas do Rio ‒ também constitui um ato de bravura, encontra o passageiro, logo acima da cabeça do chauffeur esta advertência:
“É proibido conversar com o motorista”.
Mas quantos bate-papos animados os homens do volante não mantêm com seus amigos, conhecidos ou companheiros de trabalho.

Mente-se muito, mente-se desadorada e cinicamente no Brasil.
São as plataformas de govêrno, os planos administrativos, as entrevistas de encomenda, as satisfações ao povo dados pelas autoridades.
Surge uma irregularidade, um desfalque numa repartição pública, um alcance numa autarquia, um crime qualquer?
‒ Vem o alarma da imprensa, no Parlamento, os representantes da oposição formulam requerimentos, elevam protestos. Depois aparecem as notas oficiais:
“Será aberto rigoroso inquérito (o qualificativo aí é bem significativo da frouxidão e da desídia reinante, como se fôsse possível estabelecer-se uma gradação nas medidas para apurar crimes de quem quer que seja) e os culpados serão punidos”

A mentira do peixe abundante ainda está fresca: é da Semana Santa. A verdade é que a maioria dos cariocas teve de se contentar, durante a páscoa, com sardinha enlatada e bacalhau.
A carne verde sem osso é vendida a Cr$14,00.
E já estamos em perspectiva de mais um espetacular 1º de abril ‒ o da carne barata, a preços populares…
E, por aí vai.

Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de abril de 1951.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Bibi Ferreira

Reportagem de Julio Pires para a revista “O Cruzeiro”:

Como começam as actrizes interessa sempre dizer ao publico que continua a encontrar nas “caixas” de theatro o mesmo mysterio das lojas maçonicas. As antigas lojas, cheias de rituaes ostensivamente complexos. Em verdade, entrevendo apenas o lado de dentro dos palcos quando se demora em sair da sala após os espectaculos, o publico não sabe o que pensar da vida dos bastidores á vista do mundo trevoso que é a scena ás escuras. Dahi a imaginação tenebrosa, ainda hoje por muita gente mantida, em relação ao que se passa para lá do panno de boca.

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Bibi Ferreira. Fonte: O Cruzeiro (1941)

Por isso, no caso de uma iniciação artistica rumorosa, qual a de Bibi Ferreira, convinha ouvir a estreante. Accresce que Bibi Ferreira é alguem cuja primeira apparição no tablado foi feita como “estrella”, isto é, a mais nova e mais jovem artista, começou por onde devem acabar as vidas de actrizes. Mas, vamos immediatamente ás confidencias de Bibi:
– Como pude julgar-me apta a ser “estrella” de theatro?Eu lhes conto. Li, uma vez, numa velha comedia franceza, que meu pae trouxera do theatro para ler em casa, esta phrase – relativa á carreira das actrizes: “Para chegar a ser “estrella” é preciso ter andado nos joelhos dos criticos”.

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Bibi Ferreira. Fonte: O Cruzeiro (1941

Se assim era, pensei commigo mesma, ninguem como eu poderia tão naturalmente vir a ser “estrella”. Eu estive nos joelhos de todos os criticos da imprensa carioca e de quasi todo o jornalismo paulista, pois meu pae, sendo elle mesmo o “enfant gaté” dos chronistas theatraes de ha vinte annos e de hoje, recebia em nossa casa, frequentemente, os redactores das secções de theatro dos matutinos e verspetinos, e muita vez levava-me ao collo para o “Trianon” ou o “Bôa Vista” e outros theatros desta capital e da Paulicéa. Então, os críticos tomavam a filha de procópio nos braços, e logo sentavam a garotinha nos joelhos emquanto conversavam com o velho. Assim, dos braços da ama eu passei aos braços dos mais conspicuos e temidos criticos theatraes, e impressionada com o que se dizia na velha comedia franceza, conclui que estaria preparada para ser primeira figura de uma companhia…

O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 de março de 1941.

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia e ortografia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

 

 

Mario Marano, um brasileiro em Hollywood

Ao final da Primeira Guerra Mundial, cerca de 90% da programação exibida no Brasil era importada de Hollywood e, alguns cinemas importantes da época, exibiam, exclusivamente, produções norte-americanas.
A crise gerada pela Primeira Guerra Mundial encareceu os custos para a compra de equipamentos e filmes, impondo um empecilho para a produção cinematográfica brasileira. Além disso, enquanto outros mercados internacionais estavam comprometidos com a guerra, Hollywood começa a produzir filmes que lhe alçariam à posição de “Meca do cinema”.

Embora a produção nacional tenha sido enfraquecida no período, nos anos 1920, surgem os primeiros cineclubes em São Paulo e no Rio de Janeiro, além da importante revista Cinearte, especializada em cinema e abrindo espaço para o debate sobre o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, além da cobertura das grandes novidades de Hollywood e da Europa.

É nesse contexto que o Brasil vê sua primeira oportunidade de se projetar internacionalmente, por meio da presença de “astros” brasileiros atuando em filmes hollywoodianos. Um dos primeiros brasileiros a tentar a carreira na “Cinelândia” – como chamavam Hollywood – foi o carioca Mario de Albuquerque Maranhão Pimentel, o Mario Marano.

MARIO MARANO

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Mario Marano. Fonte: O Jornal (1927)

Nascido no Rio de Janeiro, em 24 de fevereiro de 1898, Mario era filho do ilustre paraibano dr. Julio Pimentel, chefe da redação dos debates do Senado Federal, e de Dona Maria Perpetua de Albuquerque Maranhão, membros de tradicional família carioca residente à rua Haddock Lobo nº 427.

Antes de sua carreira nas telonas, o jovem Mario Pimentel aventurou-se pela Europa: formou-se bacharel em leis pela Universidade de Gand (Bélgica) e, em seguida, atuou como correspondente de um jornal do Rio na Europa. Declarada a guerra, serviu como intérprete voluntario durante a Primeira Guerra no 42º regimento de infantaria francesa e, só depois do armistício, tentou ingressar, pela primeira vez, na carreira de ator, mas sem êxito.
Seu nome figurou pela primeira vez na revista mensal “A Scena Muda: Eu sei tudo”, edição de 17 de maio de 1923, em matéria que anunciava a instalação de uma grande companhia cinematográfica no Brasil.
A matéria informava:

“Recebemos do sr. Stuart Forsyth, presidente da  Twin American Film Company, a seguinte communicação:
Reconhecendo quão vasto e opportuno é o bellissimo territorio brasileiro, resolvemos enviar para o Brasil, para ahi fixar residencia, uma companhia completa de cinematographia.
[…] Entre as artistas já contractadas, estou autorizado a mencionar os nomes seguintes – MISSES VIOLA DANA, CLARA KIMBALL YOUNG, MARY MILES MINTER, os SRS. ANTONIO MORENO, RUDOLPH VALENTINO E MARIO CORTEZ. Este ultimo que já tem obtido ruidoso exito na tela norte-americana e é conhecido com a alcunha de MATINEE IDOL, é de nacionalidade brasileira, nascido no Rio de Janeiro e o seu verdadeiro nome é MARIO PIMENTEL.
Pertence a umas das melhores familias cariocas e seu pai, SR. JULIO PIMENTEL, é um alto funcionario aposentado do Senado Federal Brasileiro.”

É possível que Mario tenha usado, inicialmente, a alcunha Mario Cortez, mas a tenha abandonado pouco tempo depois.
Não foi possível identificar qualquer produção que Mario tenha participado no início da década de 1920, seja sob o pseudônimo Mario Cortez ou seu nome verdadeiro. Seja lá qual for a participação que tenha feito, provavelmente não foi creditado, limitando-se à atuação como figurante.

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Mario Marano. Fonte: A Gazeta (1927)

Segundo jornais da época, ao retornar ao Brasil, Mario manteve relações com as maiores empresas cinematográficas daquele tempo, e chegou a receber propostas da “Ufa”, de Berlim. No entanto, recusou-as, porque estava decidido a ir para os Estados Unidos.

Em matéria do Correio Paulistano, um colega carioca informava o seguinte sobre o futuro “astro” brasileiro:

“Não ha, quem não conheça Mario Pimentel, que é o seu verdadeiro nome, nas rodas de rapazes do Rio, que nelle encontraram sempre um esplendido camarada para todas as brincadeiras.
Mario um optimo dansarino, era figura obrigatorio em todos os banquetes e recepções que se realizavam nesta capita, sendo mesmo uma figura de grande destaque na sociedade carioca.
Viajado, tendo corrido innumeras capitaes do velho mundo, Mario possue interessantes episodios na sua vida, um tanto bohemia, na verdade…
Em Paris, na velha capital do mundo artistico, na alegre cidade dos prazeres, Mario foi, durante muito tempo, um dos mais populares frequentadores dos “cabarets”, onde as suas excepcionaes qualidades de dansarino se evidenciavam.
Foi a dansa que o arrastou até a Nova York e dessa cidade a Los Angeles e Hollywood…”

Além do relato de seu amigo, outra notícia afirmava o seguinte sobre Marano:

“Apaixonado dansarino, Mario viajou muitissimo, tendo por unicas preoccupações o baile e o cinema. Trabalhou na “Pathé”, na “Ufa”, e em fabricas italianas, ao lado de Sarah Bernhardt, de Francisca Bertini e Lydia Borelli.”

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Mario Marano. Fonte: Revista Cinearte (1927

Mario, de fato, foi a Hollywood mas, antes disso, casou-se, no dia 6 de junho de 1925, com Moema Guimarães Natal, filha do ministro do Supremo Tribunal Brasileiro, Joaquim Xavier Guimarães Natal e de Dona Angela de Bulhões Natal. Os atos, civil e religioso, tiveram lugar na própria residência do dr. Guimarães Natal.

Agora casado, Mario, conforme relatado por seu amigo, embarcou para Nova Iorque. Pouco tempo depois, chegou à Hollywood, e não demorou para que Mario virasse notícia novamente.

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Trecho da certidão de casamento de Mario e Moema. Fonte: Family Search.

SURGE UMA ESTRELA

Entre maio e julho de 1927, diversos jornais e revistas celebraram a presença do brasileiro em Hollywood ao reproduzirem uma notícia divulgada pela magazine americana “The World” a respeito da contratação de MARIO MARANO para figurar em 8 filmes a serem produzidos pela Peerless Pictures Co., sob direção de Dallas M. Fitzgerald.

(Algumas notícias de jornais afirmaram que, na verdade, o contrato previa sua participação em 11 filmes, no entanto, essa informação não é relevante, pois, como vocês verão, a carreira de Mario Marano foi muito mais curta do que se esperava).

Os seguintes trechos são dignos de destaque:

“A Cinelandia descobre um astro brasileiro
Mario Pimentel vae produzir oito films para a “Peerless” e um para a “United Artists”

O brasileiro começa a vencer no cinema. Não aqui, como é bem de ver, porque, infelizmente, as empresas de films até hoje organizadas entre nós não vão lá das pernas, mas na propria Cinelandia. Hollywood não é, assim, o reducto inexpugnavel que todos pensavamos. E, si o europeu e raros latino-americanos têm feito lá bem succedidas incursões, agora tambem chegou a nossa oportunidade. É o que se deprehende de uma noticia que acaba de se nos deparar no ultimo numero de “The World”.”

A Gazeta, São Paulo, 2 de junho de 1927.

UM ARTISTA BRASILEIRO

A America Latina custou a enviar um representante á Capital Cinematographica do mundo, mas o grandioso Brasil acaba de nos enviar um dos seus mais ilustre filhos, sendo que o dignisimo representante apenas chegado chama-se Mario Marano.
Mario é o primeiro brasileiro a ser contractado para trabalhar em films americanos, pois entre os artistas estrangeiros de nomeada ora em Hollywood, podemos citar o finado mas immortal Rodolpho Valentino, Ricardo Cortez, Antonio Moreno, Monty Banks, Charles de Roche, Renne Adoree, Jetta Guodal, Gaston Glass, Mathilde Comont, Eugenia Besserer e Grace Cunard, estes vindos da Europa Latina, ao passo que Ramon Novarro e Dolores del Rio, são filhos de Durango, no Mexico.
Marano leva vantagem sobre todos os acima citados. Aquelles chegaram aqui sem experiencia e este traz grande treno dos studios do Oeste, pois não ha muito tempo teve elle occasião de trabalhar ao lado de André Brule e ultimamente tomou parte saliente nos importantes films produzidos pela UFA de Berlin, ha pouco chegada na America e Hollywood, a bordo do vapor Berengeria.

Jornal das Moças, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1927.

UM BRASILEIRO EM HOLLYWOOD

Mario Pimentel, do Rio de Janeiro, foi contractado pela Peerless Pictures. Vamos ter, finalmente, no cinema, o nosso embaixador […].

[…] Essa noticia deve encher de jubilo a todos os brasileiros. Já a Argentina e o Chile tinham representantes no mundo dos films. Ha tempos, ali tivemos Antonio Rolando, que posou ao lado de Pearl White e outros “astros” de relevo. Mas depois, si algum patricio nosso ingressou no cinema, isso foi feito em circumstancias taes que o nome brasileiro não chegou a ser inscripto nos cartazes dos cinemas.
Agora, com a iniciativa desse moço carioca, o Brasil já figura nas chronicas cinematographicas dos jornaes e revistas do continente norte, com referencias das mais lisonjeiras. É uma representação de indiscutivel valor para a propaganda do paiz. Facil e utilissima. A que mais convem, na época presente, aos nossos interesses.
Mario Pimentel está ha dois mezes em Hollywood. Seu pseudonymo para o cinema é Mario Marano.

Correio Paulistano, São Paulo, 13 de junho de 1927.

Segundo os jornais, Mario teria assinado seu contrato nos escritórios do advogado Tom Smith, no endereço 1223 Taft Building, Hollywood, California, devendo iniciar as atividades, poucos dias após a assinatura do contrato para as filmagens do longa “Out of the Past, anteriormente intitulado “Webs of Fate.

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Taft Building. Fonte: LAPL (1928)

O filme teve como diretor Dallas M. Fitzgerald, que também era diretor da Peerless e contava entre suas produções:

The Guttersnipe (1922)
Playing with Fire (1922)
Her Accidental Husband (1923)
After the Bal (1924)
Passionate Youth (1925)
Tessie (1925)
My Lady of Whims (1926)

Em Out of the Past, o elenco contaria com as presenças, além de Marano, de Robert Frazer e Mildred Harris, a primeira esposa de Charlie Chaplin, atores que, segundo os jornais, gozavam de grande popularidade no Brasil.
Além de Out of the Past, especulava-se que Marano também interpretaria um dos principais papéis em “Ramona”, de Edwin Carewe para a United Artists, com Dolores del Rio, no papel principal.
A revista Cinearte chegou a confirmar, por meio de telegrama de seu representante L. S. Marinho, de Hollywood, que Mario Marano havia firmado contrato para atuar em “Ramona”, no entanto, Mario jamais apareceu no filme, e não é possível saber se a assinatura do contrato ocorreu, de fato, ou se tratava de um boato.

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Richard Talmadge e Mario Marano. Fonte: Cinearte (1927)

A notícia de que Mario Marano atuaria em filmes norte-americanos ao lado de renomadas estrelas causou grande furor entre os fãs de cinema, em especial entre as fãs. Mario que havia chegado há pouco tempo em Los Angeles já figurava entre os círculos sociais de renomadas celebridades, como Richard Talmadge, Christina Montt, Mary astor, entre outros, alimentando ainda mais a esperança de seus fãs brasileiros de que seria uma estrela de sucesso.

Imediatamente, iniciou-se uma chuva de cartas à revista Cinearte perguntando se era verdade Marano ser brasileiro ou pedindo seu endereço, nos Estados Unidos, para que suas fãs pudessem lhe enviar cartas.

Entre algumas respostas da Cinearte às fãs estão:

“Resposta à Priminha (P. Alegre) – Nada, sou eu mesmo que estou aqui de novo! Como vae a minha adoravel amiguinha? Mario Marano, como todo artista de Cinema, pediu-me que não désse o seu endereço particular. Escreva aos cuidados de Dallas Fitzgerald Taft Building, Vine Street and Hollywood Blvd., Los Angeles, California. Escreve já! Elle me prometteu enviar a primeira carta de “fan” do Brasil!”.

“Resposta à Rosa Ferida (Rio) – Pois é verdade! O Cinema brasileiro não abrirá fallencia. Mario Marano é brasileiro sim. In care of Dallas Fitzgerald, Taft Building, Vine Street x Hollywood Blvd., Hollywood, California.”

Um outro comentário peculiar publicado em um jornal, afirmava que apesar do orgulho em ter o brasileiro nas telonas americanas, a escolha do nome Marano não representava sua terra natal adequadamente, pois soava italiano demais.

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Mario Marano ao lado de Richard Talmadge em um “exercício”. Fonte: Cinearte (1928)

Apesar do sucesso do galã entre as mulheres, inusitadamente, Mario Marano confirmou que a primeira carta de fã que recebeu tinha como remetente um homem:

“Conforme o que tinha promettido a “Cinearte”, Mario Marano acaba de nos enviar a primeira carta de “fan” que recebeu. É do Brasil!
É de Milton Dias, Baurú, Estado de S. Paulo.”

Embora Marano fosse a grande sensação do momento, antes mesmo da estreia de seu filme no Brasil, em 1928, a revista Cinearte jogou um balde de água fria em seus fãs:

“As admiradoras do Mario Marano podem perder a esperança de vel-o na pantalla, como dizem os hespanhóes. Como muitos outros desistiu de querer ser astro… depois de tudo… É um grande “game” como dizem aqui se referindo ao Cinema, esta questão de querer quando não permanece como extra, fracassa, deixando a cidade sem lhe sentir a falta. A industria cinematographica não podia nem pode comportar tanta gente sem juizo… tantos illudidos. E, passando da industria para as opportunidades existentes em Hollywood, estas estão contadas: vender terrenos, automoveis, restaurantes e fabricas mentiras…”.

A notícia de que Mario Marano havia desistido de atuar em Hollywood pegou todos de surpresa, e é muito provável que muitas pessoas não tenham acreditado nesta informação visto que, inúmeras reportagens continuaram a ser publicadas a respeito do “astro” brasileiro.

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Mario Marano visita Christina Montt e Mary Astor durante a filmagem de “The Rose of Monterey” da F.N. Fonte: Cinearte (1927)

SOMBRAS DO PASSADO

Em 3 de março de 1929, o Correio da Manhã noticiava:

“O seu primeiro film, prestes a ser exhibido, nesta capital

O leitor, se é um fan de coração, já deve ter ouvido falar em Mario Marano, um patricio nosso que, ingressando no cinema, só posou para um film da Peerless Pictures, sob a direcção de Dallas Fitzgerald.
Ha um anno mais ou menos, esta noticia causou sensação extraordinaria nos meios cinematrographicos do paiz, assim como foi razão para uma serie enorme de perguntas e commentarios dos fans sobre a pessoa desse brasileiro que, em Hollywood, se apresentava sob o pseudonymo de Mario Marano.
Surgiram entrevistas, biographias, chronicas extensas sobre a personalidade de Mario Marano afim de satisfazer a curiosidade dos que se interessam e apreciam a arte das sombras […].
A curiosidade que ainda perdura entre todos será muito breve saciada á farta com as exhibições de “Sombras do passado”.”

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Anúncio de Sombras do Passado. Fonte: A Gazeta (1929)

Um dia antes da estréia do filme, no Cine-Theatro Rialto, do Rio de Janeiro, jornais especulavam acerca dos principais aspectos que o filme prometia apresentar:

“Sombras do Passado” é uma producção de aspectos variados e que satisfaz, por isso mesmo, a toda e qualquer especie de publico. Ha nesta producção americana, scenas de luxo, ha comedia como lances de grande dramaticidade, momentos de amor intenso, de paixão ardente e sensual, o colorido vivo das regiões dos mares do sul, a seducção das mulheres encantadoras em sua formosura primitiva, trabalho esmerado de direcção, assim como optimo desempenho por parte de todo o elenco.
“Sombras do passado” vae, tudo o deixa prever, ser um dos maiores exitos desta temporada e para elle estão voltadas as vistas de fans e cinematographsitas. No elenco apparecem tambem os queridos artistas Mildred Harris e Robert Frazer, em cuja companhia Mario Marano, o astro brasileiro, faz as honras de um trabalho de arte e bom gosto.

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Cena de Sombras do Passado. Fonte: Cinearte (1927)

Após a estreia, um resumo do enredo do filme foi publicado no Diario Carioca. O texto segue na íntegra:

“A guerra mundial, o sangrento conflicto europeu, que arrastou a Fome, a Peste e a Morte a investidas terriveis contra os homens, não só deixou lares arruinados como a dor e a miseria nos campos da Europa. Dora Prentiss morava na California, quando arrebentou a sangreira mundial. Numa tarde em que ella acalentava sonhos côr de rosa, recebeu um communicado official noticiando a morte do seu noivo Jach Barrister num sector francez. Morrera como um heroe na conquista de um posto inimigo considerado inespugnavel.
Uma dor indescriptivel principiou a dilacerar-lhe o coração. Tudo recordava os dias felizes do seu noivado, tudo a fazia lembras aquelle a quem a morte arrebatára tão traiçoeiramente. Sua mãe, entrementes, tratava de convencel-a a casar-se com o corretor Beverly Carpenter, porque este possuia uma grande fortuna e era homem capaz de custear os caprichos da futura sogra. Sempre perseguida pela proposta de Beverly e acossada pela ambição materna, Dora acaba finalmente cedendo em tornar-se esposa do famoso corretor. Disse-lhe, porém, antes, que não o amava embora promettendo tudo fazer para ser digna do seu affecto.
Os mezes corre. Beverly continuava a viver numa roda de estroinas, entre os quaes encontrava-se o engenheiro Juan Serrano, que preferia á hydraulica os bons vinhos e a companhia de mulheres alegres.
Principiaram a apparecer as primeiras desintelligencias entre os conjuges: as brigas eram constantes e como, por vezes o esposo estava embriagado, dirigiu insultos pesados á sua mulher. Certa tarde deu-se o rompimento fatal e no dia seguinte um novo golpe do destino attingiu o esposo desleal e perverso. As más companhias e os gastos desregrados levaram-no á fallencia commercial.
Envergonhado em tão difficil situação, resolve fugir, deixando um pequeno bilhete que explicava a sua atitude extemporanea. Embarcando num cargueiro, dirigiu-se para os mares do sul e aportou em região estranha, onde imperavam os vicios e as paixões humanas.
Tempos depois Dora deu á luz um filhinho que passara a ser a sua distracção, e seu unico enlevo. Uma tarde ella recebeu a visita de Harold Neszitt, causador da ruina de Carpenter. O visitante vinha propor-lhe casamento, mas a desolada criatura recusou a proposta, respondendo que seu coração estava enterrado em terras da França, junto ao corpo do seu idolatrado noivo. Mas, nessa mesma noite, chegou Jack Barrister, que não morrera na guerra, da qual escapara muito ferido, para ir tratar-se num hospital de sangue. Por esse tempo Beverly fizera-se amante de uma morena chamada Saida e era considerado chefe da região onde fôra curtir os seus dias de amargura.
Ahi tambem foram aportar Harold Nesbitt e Juan Serrano, quando se dirigiam numa viagem para a China. Pelos recem-chegados, o antigo corretor soube do que se passára com sua esposa e, desejoso de vingar-se de Dora, embarca sem perda de tempo para a America. Mas ao encontrar o filho, um dia, sentiu-se preso de uma estranha emoção, que lhe paralysou toda a malquerença que alimentava ha tantos mezes. O pequeno, sem saber com quem falava, enaltece a memoria do papae que desapparecera, pois assim lhe ensinára Dora, como mãe extremosa e uma esposa tolerante e bôa. Beverly, cheio de vergonha e humilhado, abandona aquella residencia e foge para muito longe, para uma região onde podesse esconder “As sombras do passado”.
Aqui temos um pallido e resumido enredo desta encantadora pellicula, que, estamos plenamente certos, angariará os applausos no nobre publico carioca. Nella apparecerá, como dissemos, um moço brasileiro – Mario Marano – cujo desempenho no papel de Juan Serrano muito se recommenda ao lado de Mildred Harris e Robert Frazer.”.

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Anúncio de Sombras do Passado. Fonte: Correio da Manhã (1929)

Infelizmente, apesar da grande empolgação do público brasileiro em ter um representante de nosso país em Hollywood, o desempenho, não só de Mario Marano, mas do próprio filme Out of the Past foi desastroso.

Em 6 de junho de 1929, o jornal A Noite analisava o filme:

“O trabalho de Mario Marano – o conhecido e sympathico Mario Maranhão de que se lembram todos os bohemios do Rio – no film agora em exhibição no Rialto, não é de molde a se deizer se o nosso patricio tem ou não qualidades para seguir a vida de artista cinematographico. Mario Marano perpassa, apenas, pela téla, em tres ou quatro scenas rapidas, tão rapidas que quasi não ha tempo de se lhe fixar as feições.
É desembaraçado, não resta duvida, e tem qualidades photogenicas. Mas, francamente, é cedo para se dizer se elle ainda será um artista digno desse nome. Sómente em outro trabalho, no qual elle realmente appareça, e o publico possa ver em scenas mais demoradas e de maior responsabilidade, as suas qualidades poderão ser fixadas. Por emquanto, fiquemos na expectativa, ma mais sympathica expectativa que possamos alimentar pelo exito do nosso patricio.”.

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Cena de Sombras do Passado. Fonte: Correio da Manhã (1929)

Outra dura crítica ao filme foi feita pela própria revista Cinearte, umas das principais responsáveis pela ascensão da popularidade de Marano no Brasil:

“RIALTO – SOMBRAS DO PASSADO – (Out of the Past) – Peerless – Producção de 1927.
Argumento batido e já abandonado. Não dá mais nada. Principalmente com um tratamento horrivel como o que lhe deram Dallas Fitzgerald e Tipton Stock. Não se aproveita nada. Robert Frazer e Mildred Harris fazem muito mal o par de heroes. Mario Marano, brasileiro, tem um papel secundario. E prova que para o Cinema não tem quéda. Aliás, esta foi uma das opportunidades de encetar carreira em que elle metteu os pés estupidamente.
Cotação: 2 pontos. P. V.”

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Mario Marano. Fonte: A Scena Muda (1929)

Tendo como nota máximo 10 pontos, e mínima 1 ponto, a nota recebida por Out of the Past exibe bem o tamanho do desastre que a produção era considerada pelos críticos.

Diante do fiasco de Out of the Past, não se sabe se por iniciativa do ator, ou da própria produtora, o contrato foi rescindido e Mario Marano jamais voltaria a atuar em Hollywood.

MINHA NOITE DE NÚPCIAS

No entanto, esta não foi a última vez que Mario Marano seria visto nos cinemas. Anos depois de sua curta carreira nos Estados Unidos, e um breve período vivendo em Paris, Mario Marano figurara em uma versão luso-brasileira – desta vez em cinema falado – do filme Her Wedding Night.

Ficou a cargo da Cinearte divulgar, novamente, uma produção que contava com Marano, mas desta vez, avisaram de antemão que sua participação era ínfima, sem criar qualquer esperança para seus possíveis fãs, caso ainda existissem:

“Mario Marano, um brasileiro do qual CINEARTE já muito se ocupou cuja semelhança com Ricardo Cortez foi faladissima, andou pelos Estados Unidos, figurou em um film da Peerless e, depois, sumiu.
Agora, entretanto, volta com Noite de Nupcias, versão falada em português do film de Clara Bow Her Wedding Night, que, por sinal, é versão falada de Miss Barba Azul (Miss Bluebears), que ha anos dez Bebe Daniels para a mesma Paramount, com Frank Tuttle (tambem diretor da versão falada) dirigindo e Robert Frazer. Raymond Griffith (papel que Leopoldo Fróes tem nêste film em português) e Kenneth MacKenna nos principais papeis.
Mario Marano aparece ligeiramente como porteiro de hotel, cantando uma canção em francês.”

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Cenas de Minha Noite de Núpcias. Fonte: cinemaportugues.pt

As resenhas do segundo filme a contar com Marano não foram diferentes daquelas sobre o primeiro. Mais uma vez, Mario Marano e companhia eram severamente criticados pela Cinearte:

“MINHA NOITE DE NUPCIAS – Film da Paramount – Producção de 1930

Não vimos aqui e nem veremos, naturalmente, o Film original que originou este, feito em Joinville e com elenco luso-brasileiro. Chamava-se, o mesmo, Her Wedding Night e tinha Clara Bow, Ralph Forbes e Skeets Gallagher nos primeiros pepeis.
Este, em versão portuguesa ao argumento de Avery Hopwood, teve a direcção de E. W. Emo, um allemão e a interpretação de Beatriz Costa, Alberto Reis, Estevão Amarante, Leopoldo Fróes, Mario Marano e outros. Mal orientados, fizeram theatro deante da camera e, mal dirigidos, theatro do peor.
Este é o melhor da serie que a Paramount já exhibiu aqui: Canção do berço, Mulher que ri e este. Mas assim mesmo deixa muito a desejar.
Cotação: – REGULAR”

As tragédias não se limitavam às atuações de Mario Marano no cinema, e como “desgraça pouca é bobagem”, outros incidentes indiretamente relacionados ao filmes “Minha noite de núpcias” ocorreriam em seguida.

Em 12 de setembro de 1931, com o Cine São José, no Rio de Janeiro, funcionando como cine-teatro, após a apresentação de “Amores e Modas”, de Mauro de Almeida, quando tinha início o filme “Minha noite de núpcias”, o prédio incendiou-se, só ficando de pé a fachada e as escadas laterais da sala de espera.
Se já não bastassem as críticas negativas e o incêndio do Cine-Theatro, o ator principal, Leopoldo Fróes, que havia adoecido ainda durante as gravações do filme, faleceu meses depois de pneumonia.

Em um período de menos de 10 anos, Mario Marano foi de “astro” promissor brasileiro em Hollywood a ator desqualificado.

Sem sabermos se isso teve qualquer ligação com seu fracasso como ator, vale dizer que em 8 de julho de 1936, Mario e Moema se divorciavam. Era o fim de um conturbado período na vida de Mario.

Apesar dos reveses, não se pode dizer que Mario teve uma vida ruim. Mesmo fracassando como ator, Mario pertencia a uma tradicional e abastada família do Rio de Janeiro e, certamente, quando as coisas não estava indo bem, Mario poderia afogar as mágoas às margens do Sena e se afastar dos problemas.

Aliás, Mario era tão fã da França que, em 27 de agosto de 1938, casou-se novamente, desta vez com a francesa Josephe Jeanne Simône Ballot, filha de

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Trecho da certidão de casamento de Mario e Josephe. Fonte: Family Search.

Henri Ballot (sem ligação com o famoso fotógrafo) e de Mme. Camille Anne Marie Augustine Layer.
Seu segundo casamento durou 14 anos, chegando ao fim em 4 de dezembro de 1952.

Sem pretensões de retornar ao mundo do cinema, Mario deixou seu pseudônimo para trás, e agora usando seu verdadeiro nome dedicou-se a publicação de livros.

VIDA PÓS-FAMA

Em 1940, Mario organizou o livro Brasil-1940, uma homenagem ao progresso do Brasil e também às tradições portuguesas.

A Gazeta de Notícias noticiava em 4 de junho de 1940:

“Brasil – 1940 – Uma edição monumental que honra o Paiz

Esteve em nossa redacção o Sr. Mario de Albuquerque Maranhão Pimentel, organizador do Album “Brasil-1940, de que quiz ter a gentileza de nos offerecer um exemplar. Trata-se de um trabalho do mais alto valor, mostrando, em bellos artigos e abundante clicheria, as realidades do Brasil em todos os campos da actividade. É um trabalho de propaganda que sobremaneira honra o seu organizador e o Paiz. Esta edição monumental, de que foi feita a tiragem de vinte mil exemplares, foi patrocinada pela Camara

Portugueza de Commercio e destina-se a ser distribuida gratuitamente, por intermedio do DIP, na exposição do Mundo Portuguez, em Lisboa, para onde foram enviados quinze mil exemplares. abre o escripto prologo do Sr. Lourival Fontes, director do DIP e explicando a finalidade da obra, seguindo-se logo uma extensa monographia do jornalista e escriptor Sr. Simão de Laboreiro, que sob o titulo “O Brasil da Actualidade” estuda a nossa evolução e focaliza a grande figura do Presidente Dr. Getulio Vargas, monographia essa que foi irradiada para todo o territorio nacional na “Hora do Brasil”.O Sr. Mario Pimentel, que já em annos anteriores tinha realizado trabalhos semelhantes, apresenta-nos agora uma obra sob todos os pontos de vista notavel.”

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Mario Marano. Fonte: Gazeta de Notícias (1940)

Além de Brasil-1940, também foi possível identificar outras duas publicações em nome do mesmo Mario Pimentel:

São Paulo de Piratininga 1554-1942 – (organizador) de 1942 e “Orientador Fiscal do Imposto de Consumo e Renda” (Autor/Director responsável da revista técnica) de 1951.

É possível que Mario Marano tenha participado

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de outras publicações, no entanto não foi possível localizá-las.

Em 1953, o nome de Mario figurava entre os sócios da Associação Brasileira de Imprensa, indicando que o ex-astro atuava nesta área durante as décadas posteriores às suas aventuras cinematográficas.

O FIM

Em uma sexta-feira, dia 27 de junho de 1986, faleceu Mario Albuquerque Maranhão Pimentel, 88, de parada cardiorrespiratória, em sua casa na Tijuca. Mario deixou dois filhos.

Independente de seu desempenho como ator, certamente a história de Mario Marano nos mostra um riquíssimo retrato da realidade brasileira frente à ascensão de Hollywood como principal produtor de obras cinematográficas no mundo.

Em um tempo em que Hollywood passou criar irresistíveis mecanismos de atração e a alimentar sonhos de pessoas comuns em todo o mundo, a imprensa brasileira se empenhou na fabricação de astros e estrelas nacionais, que acabaram rejeitados pela indústria cinematográfica americana, e rapidamente tiveram suas carreiras terminadas.

Mario Marano é um dos primeiros, de muitos, a tentarem, em vão, brilhar na “terra do cinema”.

O sonho do estrelismo brasileiro em Hollywood só seria alcançado na década de 1940, com o estrelato de Carmen Miranda.

Periódicos e revistas consultados:

Boletim da Associação Brasileira de Imprensa
Cinearte
Correio da Manhã
Correio Paulistano
Diário Carioca
Diário de Notícias
Diário Nacional
A Gazeta
Gazeta de Notícias
O Jornal
Jornal das Moças
Jornal do Brasil
A Manhã
A Noite
A Scena Muda

Sites consultados:

Cochinilha
cochinilha.blogspot.com/2016/05/a-minha-noite-de-nupcias.html

Centro de Investigações para Tecnologias Interactivas
http://www.citi.pt/cultura/teatro/artistas/beatriz_costa/noite_nupcias.html

Centro Virtual Camões
http://cvc.instituto-camoes.pt/cinema/cronologia/cro033.html

Carlos Correia
http://www.carloscorreia.net/citi2/cultura/teatro/artistas/beatriz_costa/noite_nupcias.html

Cinema Português
http://cinemaportugues.com.pt/?tag=a-minha-noite-de-nupcias

Bibliografia:

GOULART, Isabella Regina Oliveira. A Ilusão da Imagem: o sonho do estrelismo brasileiro em Hollywood, USP, São Paulo, 2013.

HAUSSEN, Luciana Fagundes. Cinema Transnacional e tendências estéticas nas revistas brasileiras Fon-Fon e Cinearte (1927 a 1932), PUC, Porto Alegre, 2015.

SILVA JUNIOR, Nelson. Cinema brasileiro primeiros anos: origens e história. UTFPR, Paraná, 2016.

Imitando os homens!

Um casal de cães assenhoreia-se de uma sala de visitas

Ella dorme, elle véla carinhosa e valentemente

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A casa da rua Sete “tomada” pelos cães. A sala onde elles se accommodaram está marcada na gravura.

O solicitador Sr. Diogo Ramirez reside com sua familia no 2º andar da casa n.101 da rua Sete de Setembro.
Hoje, logo ás primeiras horas, quando uma criada ia penetrar na sala de visitas do Sr. Ramirez, teve seus passos embargados por um respeitavel molosso. Justamente amedrontada, a criada deu alarme, acudindo outras pessoas da casa, inclusive o Sr. Ramires, os quaes tambem não conseguiram entrar na sala, taes eram as disposições do enorme cão e sua companheira, uma cadella de proporções não menos respeitaveis.

Intrigados com as informações acima, fomos pessoalmente á casa em questão. Num corredor que leva á peça occupada pelos cães achava-se a familia do Sr. Ramirez, que nos convidou a ver com os nossos olhos os seus importunos hospedes.
E, nós vimos: junto a um sofá, commodamente escarrapachado e a nos olhar curiosamente, estava um enorme cão amarello; a seu lado dormia calmamente a sua companheira, tambem de côr amarella. Para experimentar demos dous passos á frente, mas recuámos de prompto, tal o olhar severo e o feroz rugido do “salvador” da casa do Sr. Ramirez.

– E então? – perguntámos ao “oligarcha” deposto.
– É o que o senhor vê. Esses cães subiram ás 6 horas com o lixeiro; temos feito varias, mas vãs tentativas; primeiro, ameaçando-os com uma bengala, ao que elles se dispunham a reagir temerosamente, e depois acenando-lhes até com postas de carne.
– E o que pretende fazer?
– Não os quero matar a tiros. Espero que elles se dignem desoccupar, quando entenderem, a minha sala. Isso até logo mais, quando pedirei auxilio da limpeza publica.

E o Sr. Diogo Ramirez lá se ficou pacatamente, aguardando melhores disposições dos seus estranhos assaltantes.

A Noite, Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1914
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

A misteriosa morte de Costa Vinagre

MORTE MYSTERIOSA

A policia carioca anda agora ás voltas com um caso mysterioso. Num botequim á rua Visconde de Itauna, foi encontrado, hontem, debruçado sobre um tanque de lavar roupas, o cadaver do portuguez Joaquim da Costa Vinagre, alli empregado.

Vinagre apresentava ferimentos, um dos quaes, o que lhe occasionou a morte, na cabeça. Proximo do corpo, cahida no chão, achou-se uma escada, cheia de sangue. Não sabe a policia si se trata de um crime,  ou de um accidente, sendo aliás, muito provavel a primeira hypothese, deante das condições particularissimas de que se reveste o facto. O proprietario do botequim acredita que a escada tombára sobre Joaquim, e que este, indo lavar num supremo esforço as feridas consequentes do desastre, não pudera resistir, succumbindo. Outros, porém, pensam que a posição exquisita em que o cadaver foi achado, não passa, talvez de um disfarce com que o delinquente, ou delinquenter, pretendem desorientar as auctoridades.

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Posição singular em que foi encontrado morto um caixeiro

São Paulo, A Gazeta, 27 de outubro de 1914.


NÃO SE TRATA DE UM CRIME

Referimo-nos em nossa edição de hontem é morte mysteriosa do caixeiro Joaquim da Costa Vinagre, no interior da hospedaria n. 573, da rua Visconde de Itauna, e adeantamos que a policia tinha suspeitas de que se tratasse de um crime.
A posição em que foi encontrado o cadaver – debruçado para dentro de um tanque – e um ferimento que o mesmo apresentava na cabeça seriam talvez causas de leves suspeitas si muitos outros indicios, entre elles o máo estado de saude em que se achava o Joaquim não fizessem crêr muito mais na hypothese de morte natural.

Hontem, feita a autopsia pelo medico legista dr. Antenor Costa, foi verificado que o ferimento encontrado na cabeça de Joaquim não era de natureza a determinar-lhe a morte, si um outro factor mais importante não agisse mais energicamente. A morte foi devida a haver-se rompido um aneurismo, que era causa dos escarros de sangue encontrados no quarto do infortunado Joaquim Vinagre.
Não se trata, pois, de um crime.

Rio de Janeiro, Jornal da Manhã, 28 de outubro de 1914.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira