Sete famílias moram sob o Viaduto Santa Ifigenia (1946)

UM CADAVER SÔBRE A MESA – SOB A CHUVA, O SOL E O FRIO, MOÇOS E VELHOS VIVEM NA MAIOR DAS MISERIAS – DE PERNAMBUCO A SÃO PAULO A PÉ

Aspecto do local em que vivem as sete familias. Os cacarecos, amontoados desordenadamente pelo chão, e os homens sentados aqui e acolá, oferecem um quadro que entristece e comove. Ao sabor dos caprichos do destino, êstes infelizes sofrem as maiores amarguras e desgraças, mas a dor que os irmana tornou-os apaticos e indiferentes, pouco se importando com isto ou aquilo, com a vida ou com a morte.

Quem se dirigir à ala esquerda do Viaduto de Santa Ifigenia, partindo da Praça do Correio assistirá a um espetaculo que, não fôra a realidade cruciante das suas cenas, nos faria duvidas da propria verdade. Sete familias vivem, ali, as suas amarguras diarias, abandonando-se já a sí mesmas, aos vai-e-vens do destino, esperando de “alguem” ou de “alguma coisa” melhores fados. Já não se importam com a vida, e muito menos com a morte. Tudo lhes é indiferente. Entre o choro das crianças, com fome e com frio, os adultos evidenciam a apatia que deles se apoderou. Tudo é dor, é miseria, é desgraça.

O reporter chegou, atravessou todos aqueles cacarecos que atravancam os baixos do Viaduto Santa Efigenia, que se encontrava naquele momento deserto, e dirigiu-se para um deposito da Prefeitura que ali existe. Avistava-se, de longe, seis velas ardendo sobre uma mesa, e figuras humanas ao seu redor. Muitas crianças rastejavam sobre aquele chão imundo. Aproximamo-nos, e vasculhamos com os olhos o recinto. O cadaver de uma criancinha estava sobre a mesa. Não tinha caixão, e apenas um pano azul, em cujos bordos colocaram alguns pedaços de renda barata, cobria o corpo. Ninguem chorava. Indagamos o que acontecera.
– “Esse é o Antonio Carlos, respondeu-nos uma preta gorda. Tem apenas cinco meses. Estava com tosse comprida, e com a chuva dessa noite morreu. Sua mãe chama-se Neusa, veio de Sorocaba há seis meses. Ficou durante um mês no Albergue Noturno, de onde a enxotaram quando teve a criança. Desde aquela época vivem aqui, sob a “ponte”. O senhor precisa ver, moço, quanto sacrificio foi preciso para trazer o cadaver do pobrezinho aqui pro deposito. O fiscal não queria, sob pretexto algum, que ele ficasse aqui. Durante muito tempo esteve aí jogado no chão. Mas um reporter que esteve aqui fez com que o fiscal mudasse de opinião. Mas ninguem sabe onde é que o menino deve ser enterrado, e nem dinheiro para comprar um caixãozinho para ele nós temos. Estamos angariando auxilio para que, ao menos, ele não seja enterrado assim”.
As palavras da preta velha saiam cansadas, mas com indiferença. A dor tornara-se, entre eles, uma coisa comum e de todos os instantes.

“UM DIA VEIO UM HOMEM”

Indagamos do nome da nossa interlocutora.
– “Maria Cecilia dos Santos. Vem de Porto Feliz, há algum tempo. Moravamos, meu marido e meus filhos […] na rua Diogo de Faria, lá na Vila Mariana. Mas um dia, faz já alguns meses, veio um homem e disse que nós teriamos que mudar. Naquele local ia ser construida uma fabrica. Desde então começou nosso martirio. Procuramos durante muito tempo uma casa, um quarto para morar. Mas a resposta era sempre a mesma: “Com crianças é impossivel, não aceitamos”. Tivemos que vir pra cá, porque nem no Albergue Noturno não se aceitam crianças. E aqui já estamos há varios meses, sujeitos ao frio, ao sol e à chuva, comendo o que Deus nos dá e como os homens querem. Nós vamos ficandi aqui até que nos mandem embora ou então até morrer. Eu só peço a Deus que tenha dó das minhas crianças”.

OS FILHOS SEMPRE OS FILHOS

Irene Maria dos Santos veio de Itajubá no Estado de Minas, há 10 anos, a fim de empregar-se em São Paulo. Trabalhava numa casa de “granfinos”. Mas teve um filho. Isto há três anos. A patrôa disse-lhe que com a criança ela não podia ficar ali, despedindo-a. Deu ao pequeno Wilson, esse é o nome do seu garoto mais velho, a uma comadre, e procurou outro emprego. Há um ano, porem dera à luz mais um bebê. E novamente foi despedida. Seu ultimo recurso foi dirigir-se ao Viaduto. Haveria de arranjar um lugarzinho para si e para o seu David. E assim aconteceu: há seis meses que habita os baixos do Viaduto Santa Ifigenia, irmanada pela dor ás demais familias que ali moram.
– “Que é que eu posso fazer? Quero trabalhar e não posso. O pais dos meninos não liga nem para eles e nem para mim. Eu tenho que ficar aqui até que alguma coisa venha mudar tudo, para melhor ou para pior. A vida é assim mesmo, seu reporter – hoje a gente está aqui, amanhã ali. Nesta vida ou na outra, pouco importa”.

Vitalina Alves dos Santos tambem veio de Minas. De Lambari.
– “Disseram-me que a vida aqui em São Paulo era facil. Que aqui tudo eram bom. E há seis meses que estou na cidade. Há seis meses que estamos, meus filhos e eu, passando fome e miseria. Morando debaixo desse viaduto. Pedi emprego inumeros lugares. Mas ninguem quer empregadas com filhos. A minha filha que tem agora 3 anos, fui obrigada a dar ao meu compadre. Este que está aqui comigo é o Washington Luiz, e tem um ano. De vez em quando arranjo algum servicinho para ganhar algum dinheiro. Mas mandam logo a gente embora, porque não pode dormir no emprego: e dormir na casa do patrão com filhos eles não querem. A gente tem que ir vivendo desse jeito mesmo. Outro remedio não tem”.

“EU VOU VOLTAR PARA O INTERIOR”

Maria Aparecida Ribeiro é jovem ainda. Tem apenas 24 anos. Separou-se do marido, que mora em Piracicaba, e há dois meses que vive sob o viaduto. Dorme com seus dois filhinhos – Salvagete e Maria Eunice, com 6 e 2 anos de idade, num velho e rasgado colchão, que está colocado sobre uns caixões.
– “Trabalhar eu não posso, por causa das crianças. Vou passando como Deus quer. Alguns me dão alguma coisa para comer, outros alguns farrapos para vestir. Mas eu vou voltar para o interior. Lá eu nunca vi familia morar assim na rua, tomando sol, chuva, frio e vento, além de passar fome. Lá os homens possuem melhor coração. Todos ajudam a gente, e tambem se pode trabalhar mesmo com filhos. Aqui ninguem quer saber de crianças – parece que têm medo dos meninos”.

DE PERNAMBUCO A S. PAULO ANDANDO

Um homem moreno, de fisionomia decidida, mas fisicamente abatido, magro, tossindo secamente, estava, com as mãos na cabeça, sentado num caixão. Aproximamo-nos, e ele calmamente levantou-se, oferecendo-nos o lugar. Puxamos conversa. Ele falava pausadamente, mas falava bem. O seu linguajar era nordestino.
– José Correia é o meu nome. Minha mulher chama-se Maria José, assim como aquela menina que está sobre o seu colo e que tem um ano e meio de idade. Esta é minha filha tambem e chama-se Djanira e está com oito anos – diz ele apontando para uma garotinha magra e de olhos muito vivos. Nós somos de Brejeiras, que fica no Estado de Pernambuco. Saimos de lá há 28 dias e viemos a pé. Uma vez ou outra conseguiamos alguma “carona” numa carroça ou caminhão. Mas a maior parte do percurso foi feita andando. E as meninas andavam tambem. Soubemos, lá em Pernambuco, onde eu trabalhava na roça, que em São Paulo se vivia bem. A vida lá no nordeste está dificilima. Resolvemos vir para cá. Chegamos ontem. Procurei inutilmente um quarto ou qualquer outro alojamento no qual pudesse abrigar os meus. Foi impossivel encontrar. Tivemos que vir para cá. E aqui estamos sujeitos ao sol, à chuva e ao frio. Não temos dinheiro e procurei trabalho, ontem, mas nada consegui. Vou tentar novamente. Sei que é dificil. Mas ja estamos aqui e tenho que enfrentar a vida. Ou então morrer e deixar perecer os meus de fome.

UM QUADRO IMPRESSIONANTE

Para se imaginar a tristeza daquele quadro e daquelas vida, bastava observar as fisionomias de todos esses infelizes. Mas tudo o que ali estava reunido traduzia miseria. Os cacarecos esparramados pelo chão, velhas canastras, roupas sujas amontoadas em grandes trouxas, farrapos estendidos pelo chão a guisa de cama, tudo era pauperrimo Duas pedras e, sobre elas, atravessadas duas varetas de ferro serviam de fogão. Quatro deles existiam ali. Três estavam apagados e um fumegava. Olhamos o primeiro: uma espuma suja e gordurosa sobrenadavam a um liquido imundo e de côr de terra. Dentro se podia divisar alguns pés de porco, que ali deviam estar desde ontem. A panela era uma lata velha de banha. Esse seria o almoço e o jantar de toda uma familia. No segundo estavam uns restos de arroz e, ao lado, numa outra lata, pedaços de pasteis e de mortadela podre, que deveriam ser requentados e iriam servir de repasto a uma velha e duas crianças. No terceiro havia somente café – um café ralo e mal cheiroso. No ultimo, um pouquinho de feijão estava sendo requentado. Feijão e nada mais. Sobre uma tábua, proxima ao fogão, uns tomates podres iriam servir para a salada.
Isso é o que aquela gente come. Mulheres e crianças. Moços e velhos. Ali nos baixos do Viaduto Santa Ifigenia no coração de São Paulo.

Diário da Noite, 14 de março de 1946

* A grafia original do texto foi mantida, preservando-se quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Urge Salvar o Caiçara (1960)

ESTÁ MORRENDO À MINGUA SEM VIVERES NO LITORAL

Faltam alimentos e as crianças estão sem leite em pó ‒ Imperiosa a campanha para ajudar a população do litoral paulista ‒ Angustiante apelo ‒ A situação reinante em Ilha Bela e S. Sebastião.  

Através de sucessivas reportagens, ilustradas, vivas, pôde o povo de São Paulo conhecer de perto e ao nú, os cruciantes problemas, com que se debate o caiçara dessa região. Insulado, falto de recursos, subnutrido, está a exigir a atenção e os cuidados dos poderes publicos e dos particulares […].  

Sobretudo agora, necessita imperiosamente, mais do que nunca. Para nova cruzada, tão angustiante, quanto a que se apresenta, aos olhos de todos os brasileiros, dos flagelados do nordeste, esses irmãos que nasceram para o sofrimento.  

Noticiaram os jornais que, há um mês, se acham paralisadas as duas unicas barcas que fazem o suprimento da região, a “São Manuel” e a Sud America”, em virtude da greve deflagrada entre os arrumadores do Porto de Santos, motivada pelo pedido de reajustamento das tarifas não atendido, ainda, pelo Governo.  

Pode-se calcular os sofrimentos e as privações daquela gente, com os armazens desprovidos de viveres, as crianças sem leite em pó… e isto, tão perto de São Paulo. Impõe-se providencia imediata e energica, objetivando evitar-se que morram à mingua, sem alimento e sem viveres.  

Trechos de carta de Nilsa do Valle Costa, presidente da Assistencia do Pequeno Caiçara de São Sebastião”, dirigida a Edmundo Monteiro, diretor-geral dos “Diarios e Emissoras Associados.  

Carta publicada no Diário da Noite em 26 de abril de 1960.  

A ortografia da época foi mantida.

Vale a pena ser pobre em São Paulo (1927)

A caridade das damas paulistas ‒ Na rua Tibiriçá ‒ A villa de São Vicente de Paula

A iniciativa particular muito tem feito em São Paulo pelos pobres. Familias e familias que luctam com sérias difficuldades para atravessar este longo periodo de crise em que vivemos, custando os generos de primeira necessidade preços injustificaveis, têm encontrado nas associações de caridade um apoio benefício, que lhes minora as privações.

No abandonado recanto do Guapira, o villarejo que é uma das portas de entrada da cidade, temos o Asylo da Velhice Desamparada. É mantido pela Santa Casa de Misericordia. Só mesmo quem já lá esteve em visita póde avaliar o encantador sacrifício daquellas dedicadas santas que são as irmãs de Caridade. Distribuem a manchelas a esmola de seus sorrisos suaves áquelles velhinhos de cabeça nevada que as cercam, respeitosos, uns, outros exigentes e neurasthenicos. No meio daquellas centenas de pobres existem alguns que nunca estão contentes. Foram algo na vida e não podem acostumar-se a tratar de egual para egual os companheiros. Para estes têm as irmãs de Caridade cuidados outros. É justo isso. Nada lhes dão a mais, entretanto. Os beneficios são repartidos entre todos egualmente.
Mas, o Asylo da Velhice Desamparada tem o grande auxilio da Santa Casa. Alli nada póde faltar. Sobre, antes, o carinho das dedicadas mulheres que fizeram o sacrifício dos prazeres mundanos para só se dedicarem á obra bemdicta de acarinhas e protejer a velhice que não tem um lar, que não tem pão…

NA RUA TIBIRIÇÁ
que é cortada pelo rio Tamanduatehy fomos ha dias descobrir uma pequena villa habitada tambem por gente desamparada. Essa via publica, que na occasião das enchentes se transforma em rio caudaloso e de aguas barrentas, é pittoresca.
Nas margens do rio, bandos de mulheres extendem, na grama, as roupas para “corar”.
Bandos de crianças se divertem alli e não faltam moleques travessos que, apanhando pelotas de barro, perversamente as atiram á roupa já lavada, fazendo assim com que as mulheres deem o desespero e lhes joguem, um calão terrivel, as peores pragas. Á noite, sob os lampeões, rapazolas já taludos, jogam o “sete e meio”… É que por aquellas bandas nunca andou um “bem-te-vi” de metro e oitenta.

Vindos das fabricas, ao escurecer, cortam a rua Tibiriçá bandos de namorados.
Vão muito juntinhos, trocando juras ou falando mal da vida alheia. Ella conta os ciumes de uma companheira que gosta do pequeno. Esta se desfaz em desculpas, chama serigaita á outra, e, de quando em quando segura mais forte braço da mocinha para evitar que ella pise uma poça de agua ou um lamaçal… A rua Tibiriçá é mais ou menos isso, sem contar que por alli nunca passaram os homens da carpa da Prefeitura, nem as turmas encarregadas de tapar buracos. Aliás, a rua é um buraco…

A VILLA

Compõe-se de dez casinhas. Sala, quarto e cozinha, cada uma. Moram alli 29 pessoas. Pertence á irmandade de São Vicente de Paula de cuja dispensa saem tambem os alimentos, semanalmente, para os pobres. Arroz, feijão, assucar, café, roupas, etc. A parochia de Santa Ephigenia dá o seu inteiro apoio ás caridosas damas da irmandade. Auxilio espiritual financeiro. Uma boa velhinha, os cabellos brancos de neve, vos calma a pousada, e uma pergunta nossa respondeu:
‒ Mocinho. É a vida. Não fosse a generosidade das damas e da parochia de Santa Ephigenia, todos nós onde viveriamos hoje? Aqui estamos completamente socegados, tendo garantida a nossa subsistencia. Approximou-se de nós, nesse momento, um moço amavel:
‒ Que desejam os srs.?
‒ Visitar a villa…
‒ Eu sou o encarregado.
O homem falava demais, mas nós gostamos disso. Assim, deixamos que elle desembuchasse tudo:
‒ Este barracão serve de escola. Eu leciono, aqui, cathecismo a mais de 200 crianças. Tenho mais alumnos em villa Guilherme e outros lugares. Ao todo 1250. O sr. vê aquelle grupo de casas que estão sendo construidas alli? Pois aquellas casas valem 200$000 mensaes cada uma. Não são para alugar. Pertencem á villa. Nellas virão morar outros pobres. Aquellas do canto serão cobertas hoje. Alli dentro o padre diz missa uma vez por semana. Estes pequenos são meus filhos.

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Á esquerda: a entrada da villa, vendo-se o homem que ensina cathecismo a 1250. Á direita: as novas casas da villa de São Vicente. Em baixo: a rua Tibiriçá, vendo-se apenas o trecho onde uma lavadeiras faz “corar” a roupa branca.

Depois citou o nome das damas benemeritas que deixam algumas horas das suas obrigações sociaes apenas para se dedicarem inteiramente aos pobres da villa. Tinha lagrimas nos olhos o bom homem. E havia razão para isso. A caridade commove sempre. Nós mesmo nos sentimos orgulhosos em vêr de perto a obra grandiosa de amor ao proximo alli construida pelas senhoras Catholicas de São Vicente. As matronas paulistas são sempre as mesmas. Almas affeitas ao bem. Tendo meios de fortuna, esquecem mesmo assim os prazeres que o dinheiro proporciona, para empregar grande parte de seu tempo na grandiosa obra da Caridade que ha dezenas de annos vem prestando aos pobres de verdade, o melhor e mais efficiente auxilio.

O que vimos na villa alegrou-nos, confortou-nos. Deu-se aqui o mesmo que se deu quando visitamos ha tempos o Asylo da Velhice Desamparada. A impressão de conforto foi egual. Por isso mesmo repetimos ainda a mesma phrase que dissemos no Asylo:
‒ Vale a pena ser pobre em São Paulo.

A Gazeta, São Paulo, 1º de novembro de 1927.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

 

Nas favelas do Parque Pedro II

GENTE QUE NEM TRABALHO ENCONTRA PORQUE NÃO TEM ONDE MORAR

Esquecidos dos institutos de aposentadoria – Uma carteira predial que só faz casa para rico – Ligeiro contacto da repórter da “Folha da Noite” com os habitantes de favelas no centro da Capital

Voltamos a focalizar, hoje, o problema de habitação em São Paulo. Não o fazemos, porém, buscando a opinião dos tecnicos ou a sugestão dos entendidos. Fomos diretamente à fonte e dela extraímos o material necessário para expô-lo a quem de direito. Trata-se de material concreto palpável e que salta aos olhos.
Visitamos, com esse propósito, o Parque Pedro II, bem perto da cidade. Ali, as favelas brotam como cogumelos, espantosamente.

AR CONDICIONADO E AGUA CORRENTE

A reportagem da “Folha da Noite” estêve em uma dessas favelas, junto ao centro de diversões Changai.
A primeira vista nota-se logo que esta favela possui ar condicionado às situações climatéricas e água corrente das frinchas das portas, das paredes e dos pseudos telhados.
A umidade que sobe do chão de terra batida e se alastra pelo corpo dos moradores das favelas, manifesta-se num reumatismo, numa paralisia ou numa tuberculose que não conseguem as competentes autoridades descobrir porque ataca quase um terço da população brasileira.

“JAMAIS VERÁS PAÍS ALGUM COMO ESTE”

Vendo que nos dispunhamos a fotografá-los, disse-nos a moradora de uma casinhola:
“Moço, isso vai sair no jornal? Não deixe. Cada vez que um jornalista aparece por aqui, logo depois vem um homem que diz ser de um Instituto de Aposentadoria qualquer e manda a gente embora. Ameaça e diz que se nós não sairmos por bem, os bombeiros vêm por a gente p’ra fora”.
“O dono do nosso quarto vendeu a casa porque precisavam derrubá-la a fim de alargar a rua e assim, tivemos que ir embora. Agora essa gente pensa que somos vagabundos e nos tratam desse jeito” – Aléa Gomes, outra residente da favela.
– “Trabalhei no Almoxarifado do Exército por muitos anos e agora não tenho onde morar. Essa gente derruba tudo quanto é casa de cômodo de cortiço e não põem nada no lugar e, assim, nós vamos ficando na rua. Os quartos que existem são muito caros, as casas também e os apartamentos… Bem, isso nem é para a gente”. – Comentou Maria do Rosario Campos, que ainda encontra tempo para mostrar prendas domésticas, organizando uma pequena horta ao lado de seu casebre, a fim de poupar alguns centavos.

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Em cima os “moradores” de uma “favela” desfilam suas amarguras à repórter, e um casal alojado num quarto. Em baixo: a preta velha conta à repórter como “faz milagre” para ocupar aquele espaço vital… e uma cama que é, também, guarda-roupa e outras coisas

NÃO PODE CONSTRUIR SUA CASA

Um funcionário da Light, também puxou sua prosinha:
“Meu nome é Jeronimo Campos. Estava esperando há muito tempo que a Caixa de Aposentadoria e Pensões de Serviços Publicos de São Paulo de onde sou contribuinte, mandasse me chamar para escolher uma das casas que ela constrói para os seus associados. Mas, qual o que. Nunca chegava a minha vez. Então, fui lá. Na seção da Carteira Predial me informaram que só havia casa para quem ganhasse de Cr$800.00 para cima. O meu ordenado não dava. Mas o caso é que todos os associados devem ter direito a uma moradia, desde que contribuam. Se o preço daquelas é muito alto, façam outras mais pobres… Mas, façam!”.

“POR QUE VOCÊ NÃO TRABALHA, RAPAZ?”

“Moro com minha mãe num desses casebres”. Informou-nos um dos moradores. Ela estava cediada em Vila Mascote, mas fugiu de lá porque não a tratavam bem. Agora está aqui exposta à friagem e a umidade.
“Sou pensionista da Caixa de Aposentadoria e Pensões da Sorocabana, desde que adquiri um reumatismo articular muito forte e assim, sem casa e com uma assistência quase que só nominal da Caixa de Aposentadoria, mal posso manter a nós ambos”.
“Por que você não trabalha, rapaz?”, interrompeu o gerente da fábrica de tecidos vizinha, que havia chegado no momento. Informado de que falava com uma pessoa que não estava em condições de trabalhar, prosseguiu:
– “Nós na fábrica não fornecemos água e nem damos emprego para essa gente. Se fizermos isso, acabamos achando fama de “bonzinhos” e eles não nos largarão mais. Depois se vê o prejuizo que tal vizinhança ocasiona. É de se notar o número de incidentes provocados pelos moradores das favelas clandestinas, com os operários da fabrica sob minha gerência. O Governo precisa inventar um meio de abrigar essa gente. Assim como está, nós estamos sendo constantemente incomodados”, concluiu o gerente da fábrica.

Folha da Noite, 10 de novembro de 1945.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira