A “Gazeta” dá a volta ao mundo, sem sair de São Paulo!

Em 1927, o jornal A Gazeta, sob a premissa de que os imigrantes se agrupavam em pequenas versões de suas terras natais na cidade de São Paulo, publicou uma série de artigos que pretendiam explorar tais comunidades.

Os artigos construíam uma narrativa fantasiosa, simulando uma verdadeira viagem ao redor do planeta, em que o “avião” da equipe jornalística passeava por vários países, quando na verdade se tratava de um mero passeio pela cidade de São Paulo.

Em sua visita ao Japão, ou melhor, ao bairro da Liberdade, o jornal A Gazeta descreve suas impressões da comunidade japonesa em um período em que esta comunidade ainda lutava para buscar seu espaço na sociedade paulistana.

Sinalizando a falta de conhecimento por parte da equipe jornalística que foi encarregada de realizar a matéria à época, o fruto dessa visita à Liberdade é um artigo cheio de preconceitos e concepções equivocadas acerca do povo japonês, e pode ser conferido abaixo:

“O temor de encontrarmos o Japão devorado por um imprevisto terremoto faz com que o nosso roteiro seja alterado — Preferimos ir de Roma a Tokio para depois voltarmos a Beyrouth — A terrivel travessia: Braz-Conde de Sarzedas — O Japão examinado com oculos de augmento

Os ultimos acontecimentos do nosso raide á volta do mundo foram extraordinarios. Ás 5 horas da tarde levantamos vôo de Roma com destino a Beyrouth, com o “Chevrolet-Ford” em perfeito estado e pesado de gazolina. A temperatura estava magnífica e tudo nos fazia prevêr um esplendido vôo noturno.

Uma hora depois de estarmos no ar, um pensamento diabolico nos assaltou: iamos para a Syria. Mas si durante o tempo a despender com essa escala — o Japão, a nossa seguinte parada, fosse devorado por um terremoto?

A idéa foi tomando vulto, foi crescendo, e quando contamos nos dedos os ultimos onze terremotos e maremotos do Celeste Impedio — resolvemos alterar, embora com grandes sacrificios, o roteiro que seguiamos, rumo á Syria. E confiando demasiadamente na complacencia dos nossos motores, decidimos fazer a travessia directa Roma-Tokio, aperfeiçoando a aventura do grande De Pinedo, para depois regressar-mos ao Monte-Libano.

OS IMPREVISTOS

É verdade que chegamos á Capital do Japão. Mas só Deus sabe como se deu essa travessia através de todo o continente asiatico! Lá em cima — ninguem para indicar o caminho; em baixo um povo exquisito e barbaro, chinezes, tartaros, gente que não explica sinão por grunhidos impenetraveis. Felizmente a Providencia veiu a tempo em nosso auxilio, mandando que um nordeste violentissimo nos arrastasse mais para o norte. Em Irkust percebemos os trilhos da Estrada de Ferro Transiberiana, que faz o trajecto Berlim-Tokio. Era um milagre!
Seguindo o leito da maior ferrovia do mundo, chegamos á China, atravessamos o canal que o trem atravessa em “ferry-boat” e cahimos no Japão, em Tokio, com o tanque de gazolina completamente secco!
A nossa chegada foi um reboliço! Milhares de japonezes cercavam o apparelho e gritando, pareciam applaudir a nossa façanha.

O JAPÃO

O Japão é uma ilha pequenina, mas repleta de gente. Só tem uma rua bonita, essa mesma num declive medonho: a rua Conde de Sarzedas. O resto é tudo villas e becos sem sahidas, mas de um pittoresco inegualavel.

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O Japão é um paiz impressionante. Impressionante sobretudo, porque é completamente diferente do resto do mundo. Nós estivemos em Portugal, na Hespanha, na Allemanha e na Itália. Todos esses paizes parecem entre si. É a mesma civilização assombrosa, o mesmo progresso, o mesmo espirito, a mesma cultura e quasi a mesma lingua.
As cidades todas são eguaes, com as mesmas avenidas largas, os mesmos palacios e os mesmos monumentos. Nada as differe.
Mas o Japão não é assim. Tudo é diverso, bizarro e exquisito.
A cidade de Tokio é um declive, como ja dissemos (é por isso que todo o japonez soffre do coração e é corcunda de tanto subir a sua rua). As casas são uma “pagodeira”… Pequenas, de pouco fundo, nellas residem dezenas de familias. Cada qual abriga seguramente trinta pessoas. Em verdade a gente do Japão é pequena. Mas trinta pessoas occupam consideravel espaço, mormente quando estão na posição horizontal, que (parece paradoxo!) é posição de dormir dos japonezes, tambem.
Cada casa, portanto, é um cortiço, geralmente abaixo do nível da rua. Nos dias de chuva a inundação é inevitavel. O japonez, porém, educado na resignação perante o Senhor, que lhe dá mensalmente dois ou tres terremotos ou catastrophes ainda peores, o japonez quando vê que o seu quarto está transformado numa lagôa — não se incomoda. Vira para o canto e dorme tranquilamente. A agua desapparecerá com o sol no dia seguinte ou dahi ha um mez…

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O NIPPONICO

é um typo estranhamente interessante. Pequeno e forte, de cabellos duros como arame e pretos com azeviche de olhos obliquos, de amendoa, e dentes amarellos e cavallares — o filho do Celeste Imperio é uma figura incommodativa ao viajar que lhe desconhece as virtudes do coração bonissimo.
Fala em grunhidos desafinados, ora sibilando a lingua entre os dentes, ora soltando as palavras pelo nariz ou ainda guturalmente as pronunciando pela bocca.
E não se percebe uma unica palavra, é excusado affirmar.
Vive o mais sollitariamente possivel no seu Tokio paulistano, com a familia geralmente grande e não tem amigos que não sejam seus patricios.
As profissões que mais convêm ao japonez: a de copeiro, “chauffeur” ou fabricante de artefactos de madeira ou papel de seda.
Como copeiro é maravilhoso porque não fala com os demais criados da casa e porque, carregando sempre uma physionomia inalteravel, dá a impressão de ser surdo a tudo quanto se fala ao seu lado.

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AS IMPRESSÕES DE VIAGEM

Apenas desembarcámos, avistámos a “Pensão Yocohama”, que fica logo no começo da rua principal de Tokio. É pequena, mas parece ser a mais importante pensão do lugar.
O almoço foi execravel o nosso estomago. depois de uma prataria de arroz brando e com pouco sal, veiu picadinho de carne de porco misturado com uma verdura muito parecida á nossa serralha, muito mais amarga, porém. Em seguida um pastelão que não era positivamente feito com gordura ou manteiga naturaes… Sobremesa: banana de mistura com uma substancia salgada e parda que não podemos comer porque ficámos todos indispostos…

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Logo após a refeição, passeámos longamente com o consul japonez, um perfeito cavalheiro, de finas maneiras e vasta cultura. Falou-nos demoradamente do problema immigratorio, as suas vantagens, a adaptação do japonez na lavoura e a sua resistencia physica para o trabalho.
Na verdade o japonez se dedica quasi exclusivamente á lavoura. O littoral está cheio delles, que no plantio do arroz e da batata são peritos
Só vivem nas cidades quando a sua manutenção alli é garantida. Mas não apreciam mesmo o movimento de uma cidade cujos costumes, linguas e até a physionomia dos outros, differem absolutamente da sua patria.

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Existem neste Japão cerca de cincoenta mil nipponicos. Na Capital não ha mais do que dois mil habitantes. O resto está para a roça. Mas existem aqui dois esplendidos jornaes: o “Nipack-Chinbum”, e o Noticias do Brasil”, além de uma “Revista de Agricultura”, todoas eles editados em japonez e com tiragem bastante satisfactoria.
Á tarde, dirigiamos-nos ao aerodromo para regressar a Beyrouth com dois nossos velhos amigos: o prof. Alfredo Paulino e o dr. Raul do Valle, dois brasileiros que vivem pacatamente no Japão ha mais de 40 annos, sempre com immensas saudades da terra onde canta o sabiá…”.

A Gazeta, 4 de junho de 1927.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

 

Uma imagem pornô para o Cine Jóia

A partir do próximo dia 27, o público interessado no cinema japonês perde uma sala de exibição. O cine Jóia, que há vinte anos, através do circuito Serrador, exibia as produções da Toho, mudou sua orientação, anunciando que dedicará a sala às pornochanchadas, com programa triplo e preços populares.

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Há muito tempo essa situação já estava sendo adivinhada, desde que o rigor dos mecanismos protecionistas, adotados pela Embrafilme para fortalecer o cinema nacional, passou a ser sentido com mais intensidade. Ficou claro – explicam os exibidores – que as imposições da Embrafilme só poderiam ser atendidas pelas exibidoras norte-americanas, fechando o marcado para filmes com certificados de outras nacionalidades.
Depois do Cine Nikkatsu, na rua São Joaquim, que durante algum tempo funcionou com o nome de Cine Álamo, o primeiro a ser vencido pelas dificuldades impostas pelo Governo foi o cine Jóia, na Praça Carlos Gomes.
Agora, apenas duas salas, o cine Niterói na avenida da Liberdade e o cine Nippon, na rua Santa Luzia, exibirão filmes japoneses.

Francisco Sanchez, gerente do Jóia e funcionário da exibidora Serrador desde setembro de 1945, admite que o movimento no cinema há muito tempo deixa a desejar: ontem à tarde, desde o início das sessões, haviam vendido apenas 400 ingressos.
Poucos transeuntes, que passavam pela praça Carlos Gomes, davam atenção aos cartazes, anunciando o filme da semana – “O Fantástico Renegado” – série com Wakayama Tomisaburo, que deve encerrar a programação japonesa do cinema. Para os exibidores isso é consequência direta das restrições colocadas pela Embrafilme para a importação de filmes estrangeiros, cujas exigências acabam só podendo ser satisfeitas pelos produtores norte-americanos, detentores de um mercado exibidor compensador.
Francisco não está muito preocupado com o fim do cine Jóia, lembrando que dentro em breve deverá se aposentar. Com 75 anos, já é difícil para ele lembrar datas com exatidão, mas não nega que a casa teve melhores tempos.
O cine Jóia exibia filmes japoneses há vinte anos, logo depois que Hajime Sakai, diretor da Toho, veio ao Brasil em 1956 e assinou um contrato com a Serrador para distribuir seus filmes.

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Cine Jóia nos anos 1950. Acervo: Alexandre Kishimoto

Durante muito tempo, relativamente pequeno para o público que o procurava, o cinema teve a lotação praticamente tomada a cada novo filme que colocava em cartaz. No entanto, de dois anos para cá, com os problemas criados pela Embrafilme, a exibição de novos filmes se tornou cada vez mais difícil e os exibidores recorreram às reapresentações, vendo o público diminuir.
Há tempos, os interessados no cinema japonês já previam o problema e explicavam suas causas.
Segundo funcionários das distribuidoras de filmes japoneses, que evitam se identificar, há quase um ano os seus cinemas só exibem reprises, pois as barreiras para a importação de um filme são “excessivas”. Quando o certificado de Censura dos filmes ainda disponíveis vencer, não haverá mais filmes e os cinemas terão de fechar as portas
Nas distribuidoras das empresas Shochiku (cine Nipon), Toei (cine Niterói) e Toho (cine Jóia), o clima é de desalento e inconformismo. mas seus diretores procuram não criticar a ação da Embrafilme e se negam até a dar entrevistas.
“Há um clima de medo, de que a situação piore ainda mais, pois a ação da Embrafilme é ditatorial”, comenta um funcionário.
Recentemente, a Toho Filmes, que importou quase todos os filmes do mais famoso diretor japones Akira Kurosawa, fechou seu escritório, que mantinha na avenida da Liberdade. Seu diretor-presidente foi chamado de volta ao Japão e seus interesses no Brasil passaram a ser defendidos por um antigo funcionário da empresa, que se instalou numa modesta sala da rua dos Estudantes, também no bairro da Liberdade.

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Cine Jóia nos anos 1950. Acervo: Alexandre Kishimoto

Um crítico especializado no assunto reconhece que o cinema japonês encontra-se há muito tempo em completa decadência, devido à forte concorrência da televisão. Os grandes diretores, que fizeram do cinema do Japão um dos melhores do mundo, na década de 60, como Heinosuke Gosho, Tadashi Imai, Hiroshi Inagaki e Keisuke Kinoshita deixaram de trabalhar há muito tempo, desiludidos com a queda no nível de produção.
“Mas – ressalta – existe uma produção independente bastante ativa, que se não oferece filmes de alto nível, como há anos, tem feito obras polêmicas, revelando diretores novos e de bastante talento. Como as distribuidoras internacionais não se interessam por filmes desse tipo, de escassas possibilidades comerciais, a única saída era a importação através de empresas japonesas. Mas nas atuais condições isso está difícil, pois com o alto custo da importação, as distribuidoras preferem, quando podem, trazer filmes de karatê ou policiais, que têm bilheteria certa”.
Segundo o crítico, no caso do cinema japonês os mecanismos protecionistas da Embrafilme funcionam como uma faca de dois gumes. Isso porque, pela legislação atual de proteção aos laboratórios nacionais, os distribuidores japoneses são obrigados a fazer no Brasil uma cópia de todos os filmes que importam. “Como eles precisam de apenas uma cópia, para exibição no cinema da colônia, acabam vendendo a outra a preço baixíssimo para um distribuidor brasileiro qualquer. Com isso, um filme japonês, que teoricamente deveria ser exibido apenas num cinema especializado, vai para as salas comuns, do centro, fazendo concorrência com a produção nacional”.

Esse expediente, que vinha sendo usado pela Toho Filmes, com seus filmes de guerra e de monstros espaciais, não serve para a Toei Filmes, que controla o cine Niterói. Pelo contrato celebrado no Japão, a produção da Toei importada pelo cine Niterói só pode ser exibida nesse cinema da colônia. Os direitos para a exibição no resto do Brasil pertencem à multinacional americana CIC (Cinema International Corporation).
Para um crítico a única forma de evitar o fechamento dos cinemas japoneses de São Paulo é a criação de uma regulamentação específica para os cinemas da colônia. A Embrafilme poderia baixar a taxa e dispensar a copiagem brasileira de qualquer filme de exibição restrita, proibindo-se a projeção no circuito comercial comum. Dessa forma, um filme japonês somente poderia ser exibido nos cinemas da colônia (Nipon e Niterói). E, quem sabe, os cinemas poderiam exibir filmes de melhor qualidade.

“Não somos contra o cinema brasileiro, diz o funcionário de uma distribuidora. mas achamos que os japoneses, que contribuíram para o progresso do Brasil, têm o direito de continuar a assistir aos filmes produzidos em seu País”.

Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 1978.
Fontes:
Acervo Folha
SP da Garoa