[In]salubridade pública (1854)

Correspondencia,

Srs. Redactores ‒ Principiarei por congratular-me com Vossas mercês, por já termos, em S. Paulo, um jornal dedicado a preencher o vacuo que havia, isto é, a falta de um jornal imparcial, e que se dedicasse aos interesses da capital e provincia; e como Vossas Mercês, máo grado os partidistas, vão caminhando impavidos, procurando satisfazer a todas as classes, permitta que me utilize de um canto de sua folha para chamar a attenção da camara municipal para o deleixo de seus fiscaes,

Senhores da camara municipal, attendão ao menos á salubridade publica! a cidade de S. Paulo, outr’ora limpa e aceiada, hoje existe que é uma vergonha! E para prova apontaremos as travessas da Lapa, do Imperador, e das Cachaças. Nesta ultima existe uma casa que continuamente despeja pelo cano aguas mais que immundas, e isto junto ao despejo que continuamente fazem de tudo que de mais nojento e repugnante tem em casa as quitandeiras, que ali residem, formão nos grandes buracos que tem na rua receptaculos taes de immundicies, que tornando-se putridas (se algumas ou não estão já, quando são atiradas as ventas dos passantes) não sómente encommodão o olfacto dos viandantes, como muito prejudicão a saude dos moradores, produzindo taes pestelentas materias, não só regimentos de sanguisedentos mosquitos, que á noite põe em alarma todos os moradores das visinhanças, como um grande viveiro de sapos, e outros animalejos não menos encommodos e nojentos.

vista da rua do imperador 1862-1863 militão augusto de azevedo
Rua do Imperador, Militão Augusto de Azevedo (1862-1863)

Na rua do Imperador igualmente existe um Eden bem semelhante ao de que acima fallamos; reside ali n’uma taberna um allemão que assentou, por mais commodidade, dever fazer na rua o despejo de tudo quanto lhe encommodasse em casa, e mais ainda a estribaria de seu cavalo; de sorte que não é possivel achar-se esse lugar em peior estado de immundicie e porcaria.

Entretanto que estas e outras muitas cousas vê todo mundo, os Senhores fiscaes não as enxergão; assentão que de suas casas, cuidando de seus negocios, podem fiscalizar a cidade!

Relevem portanto, Srs. Redactores, que por meio de sua folha, chamemos a attenção da camara municipal, para o que levamos dito, afim de que activem os Srs. fiscaes, ou demirrão-os no caso de reincidirem no seu proverbial deleixo.

Um municipe.

Correio Paulistano, São Paulo, 5 de julho de 1854.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

 

Cidade abandonada

Embora pareça exagero, tem muita razão o paulistano quando afirma que a metropole bandeirante é uma cidade abandonada. Tantos são os motivos de queixa dos municipes contra as falhas da administração que a impressão de abandono chega mesmo a impressionar. Não falemos da buraqueira das ruas, que essa avulta aos nossos olhos por onde quer que volvamos a vista e é sentida materialmente nos solavancos dos onibus, nas avarias dos veiculos, nos acidentes quase diarios provocados pelas manobras precipitadas dos que, em alta velocidade, se vêem, de repente, diante de um buraco maior, sem espaço para evitar o impacto do trambolhão. Desnecessario será destacar o tremendo perigo que os buracos da pavimentação representam nos dias de chuva, quando ficam cobertos pelas aguas da enxurrada: aí a ameaça não é apenas para os automoveis, mas tambem para os pedestres, principalmente as crianças.

1963-02-21 buraco na frei gaspar x hipodromo
Quase coube”, buraco na rua Frei Gaspar com a do rua do Hipódromo

O pessimo estado dos passeios, inclusive na area central da cidade, contribui para impressionar mal os forasteiros e é outra evidencia do desleixo reinante na cidade, por parte da Prefeitura. Sabe-se que a conservação da faixa do passeio cabe aos proprietarios dos imoveis, não movendo o governo municipal uma palha nesse sentido. Cabe-lhe, isso sim, fiscalizar e intimar os responsaveis a proceder aos reparos necessarios ou a construir os passeios nas ruas providas de guias. Essa fiscalização não existe e se existir os fiscais amolecem o corpo, deixando de cumprir o seu dever, em prejuizo da cidade.

E há mais: nessa questão, a propria Prefeitura concorre para a devastação dos passeios ao deixar de consertar as extensas faixas utilizadas para canalização de aguas, telefones, etc. conforme acordos existentes e jamais cumpridos.

O abandono se patenteia tambem ao observar-se o numero consideravel de mendigos, marreteiros, desocupados e quitandeiros que ocupam os melhores pontos do centro da cidade e obstruem o transito, perturbam a tranquilidade da vizinhança, espalham lixo e imundicies em torno, sem que surja um guarda, um inspetor, alguem com parcela de autoridade disposto a expurgar os logradouros dessa forma infestados.

Não é preciso que se fale dos malandros, muitos deles conhecidissimos da Polícia, que exercem sua atividade criminosa como batedores de carteira nos pontos de tomada de coletivo, aos olhos dos agentes da Delegacia Especializada destacados para esses locais. Nem se faz necessario acrescentar os bandos de “play-boys” atrevidos, das corridas de automoveis e lambretas, pelas vias mais movimentadas da metropole, altas horas da noite, com apoteose de taças e curras nos confins do Morumbi.

Cidade abandonada, mesmo.

Correio Paulistano, São Paulo, 6 de fevereiro de 1963.

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia e ortografia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

²A imagem não possui relação direta com o texto, possuindo caráter meramente ilustrativo.

Legenda e fonte da imagem:

“Quase coube”, buraco na rua Frei Gaspar com a do rua do Hipódromo
Folha de S. Paulo, São Paulo de 21 de fevereiro de 1963.

 

 

25 de janeiro de 1554 – Fundação de S. Paulo

A data em que se comemora a fundação de São Paulo é uma grande data brasileira, porque nella se evoca o nome da terra bandeirante como uma das regiões mais progressistas da terra.
O burgo modesto que Anchieta lançou no Pateo do Colegio one hoje, defrontando arranha-céos, se ergue o airoso monumento da fundação da cidade, transformou-se em esplendida metropole. Com um milhão e duzentos mil habitantes é, em população, a segunda cidade brasileira e, como centro de trabalho industrial, o maior da America do Sul. É tambem poderoso centro de actividades scientificas e culturaes.

Decerto multiplos foram os factores que concorreram para o engrandecimento de São Paulo. Quem os coordenou, porém, realizando administrações modelares, dando altissimo grau de efficiencia aos serviços publicos e tomando as iniciativas mais fecundas foi o antigo Partido Republicano Paulista. Este facto histórico é indestructivel: quarenta annos de administrações republicanas, succedendo-se harmoniosamente, deram ao nosso Estado um admiravel periodo de ordem, de segurança, de regularidade financeira, de credito universal, de trabalho constructor e de fervoroso cuidado pelos interesses collectivos.

1938-01-25 fundação de sp foto

O MARAVILHOSO CRESCIMENTO DA CIDADE

O boletim diario de informações “Commercio e Industria”, especialmente para a data de hoje, reuniu os seguintes dados sobre o desenvolvimento da cidade anchietana:

Em 1850 ha em S. Paulo 1.300 casas para 15.300 habitantes.
Em 1860, 18.600 pessoas e 2.500 casas.
Em 1870, 23.200 pessoas e 3.250 casas.
Em 1880, 27.800 pessoas e 4.088 casas.
Em 1890, 64.934 pessoas e 10.321 casas.

Até essa época o numero de casas vae correspondendo ao numero de habitantes. Dahi por deante a progressão é prodigiosa. As linhas se separam. Ha mais gente e menos casas em relação aos decennios passados affirmam as estatisticas.
O augmento repentino da população é explicado pela elevada natalidade e, principalmente, pela affluencia de imigrantes. Por outro lado, as lavouras de café se estendem pelas novas regiões desbravadas e dão lucros compensadores. O desequilibrio persiste, chegando ao ápice em 1910, quando ha 11,4 habitantes por casa, média muito elevada para a época. De 1910 a 1913 a febre de construcção é geral. Depois decae – de 1914 a 1918 – mas o augmento da população tambem descreve um pouco.
Em 1920 a differença se desfaz: ha 9,6 habitantes por casa. Dahi por deante succede o desequilibrio inverso! S. Paulo progride como nunca, principalmente de 1920 a 1928. Ha affluxo de dinheiro e facilidade de credito a par de um incontido optimismo sobre a estabilidade desse bem estar economico. Constróem-se casas e mais casas. Só em 1928, 6.867 novos prediso se erguem! Existem predios demais em relação ao numero de habitantes.

De 1929 a 1933 o periodo é de restricções: a crise economica mundial reflecte-se em S. Paulo, o collapso da economia cafeeira attinge em cheio a cidade, as revoluções e periodos de desconfiança, anteriores e subsequentes, diminuem a intensidade do esforço paulista. Em 1932 constroe-se 4 vezes menos que em 1928. O preço dos imoveis, que fôra elevado artificialmente, desce a niveis mais baixos. O excesso da offerta em relação á procura reajusta os valores em desequilibrio. Entretanto, emquanto esses choques põem á prova a resistencia economica de S. Paulo, a população cresce. Augmentando a população e decrescendo a marcha as construcções, o nivelamento entre aquella e estas vae se processando.
Em 1934 ha, aproximadamente, 8,5 habitantes para cada predio.
De 1934 a 1937 o numero de construcções augmenta bastante. Em 1937, supera o dos ultimos annos. As médias entre “habitantes” e “casas” são razoaveis: quasi sempre em torno de 8 habitantes por casa. O reajustamento já se processou, e acreditamos que se mantenha.

Correio Paulistano, 25 de janeiro de 1938.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

 

 

Frio na Pauliceia

A columna mercurial desce.

Temperatura mínima do dia: 11… 9… 7… 5…

Pelles, lans de Rodier, “sweaters”, “pull-overs”, luvas grossas.

Nem um único chapéo de palha em toda a cidade. Nas ruas, os narizes fumegam; nos bars, os “grogs” fumegam; nos telhados, nenhuma chaminé fumega. Oh! as chaminés denunciaderas do “coi-de-feu” bem intimo, com poltronas lascivas de coiros bons, “tea-wagons” enverniados e silenciosos, “magazines” coloridos e interessantes! Nada disso: S. Paulo não se aquece. Segue o exemplo do seu padroeiro: entrega-se christãmente ao martyrio.

O paulista, vaidoso, olhando as ruas cinzentas de asphaltos, cimentos e ardozias, os plátanos pallados pelas tesouras omnipotentes da Prefeitura, a gente apressada, calafetada, toda de escuro; esse bom paulista, ingenuo e viajado, esfrega as mãos trabalhadoras vestidas de luvas mornas e diz  cadencialmente, gostosamente, escancarando muito as vogaes:
– Sim senhores! Como S. Paulo está adeantado! Até parece a Europa…

Parece. Parece, porque não é. E não é, porque esse mesmo paulista, ingenuo e viajado, não tem a noção requintada do conforto. Elle é o pobre homem que, no seu automovel aberto, no seu “living-room” gelado, no seu club glacial, nos seus theatros frigidíssimos, é obrigado a se conservar embrulhado nas suas chevlótes, no seu “cache-cól”, nos seus guantes, nas suas polainas, engulindo aspirinas perigosas ou Cognacs suspeitos. Entretanto, mais barato que duas pequenas visitas de um médico e uma grande conta de pharmacia, custa um bom calorzinho familiar… E, para esse calorzinho, já não digo que se installe uma “chauffage centrale”, nem mesmo uma lareira de lenha ou carvão, nem mesmo uma “salamandre” provinciana, nem mesmo um “poéle” bohemio de “atelier”:  basta um radiadorzinho electrico. Não é cousa assim tão cara, que diabo! E mesmo que o fosse: ás vezes, como agora, por exemplo, quando a columna mercurial desce, o café sobe…

Urbano (pseudônimo de Guilherme de Almeida)

Diário Nacional, 21 de abril de 1927.

A grafia original foi mantida.

Texto disponível em: Hemeroteca Digital Brasileira
Imagem: Acervo IMS