A “Casa de Deus” em SP

O casarão da avenida Brigadeiro Luis Antônio lembra um castelo, pela forma do primeiro cômodo, circular como uma torre. Construído no século passado*, atualmente está se desmanchando, resultado de várias décadas de abandono. Agora o patrimônio histórico do Estado quer tombá-lo, pois foi residência do médico e poeta Martins Fontes. Foi este casarão abandonado que o cineasta Sérgio Bianchi escolheu para cenário do seu primeiro longa-metragem: “casa de Deus”, cujas filmagens recomeçaram ontem, depois de quatro meses de interrupção.

00250-1973-001-Castelinho-da-Brigadeiro-2000-Tereza-Epitacio.jpg
Castelinho da Brigadeiro. Edição de Diego Vargas sobre fotografia de Tereza Epitácio, 2000. Fonte: Condephaat

Escadas de mármore, gradis e portões de ferro batido, a casa deve ter sido um monumento ao fausto de uma época. Agora seus ferros estão enferrujados. Os vitrais trabalhados semi-destruídos, o assoalho de madeira de lei manchado e gasto. A sala da frente é redonda, e seu pé-direito tem a altura de dois andares, terminando em uma abóbada.

Nas paredes, desenhos coloridos, pintados no reboco e emoldurados com aplicações de gesso dourado, lembram veludos e iluminação a gás, hoje substituídos por móveis velhos, depositados ali para não atrapalhar outro lugar, sem nada para iluminá-los.

Nos fundos, três árvores grandes dão sombra a um pedaço de terra que já foi jardim, com um tanque vazio com a prova da ilustre ocupação. No fundo do tanque de cinquenta centrimetros de altura está um poema escrito no cimento e assinado por Martins Fontes, poeta falecido em 1937 que, como médico, foi delegado de Saude. Por este vinculo com uma figura histórica, uns poucos trabalhadores iniciam a restauração, ainda com resultados invisiveis. O processo de tombamento ainda não está terminado e os atuais proprietários sabem pouco do seu andamento.

Mas foi o aspecto de suntuosidade em decomposição que despertou o interesse de Sérgio Bianchi para seu filme. Depois de dois curtas-metragens: “Onibus” e “A Segunda Besta” exibido recentemente no MASP, ele começou a filmar “Casa de Deus”, em outubro, com roteiro seu. No final de novembro, com mais da metade pronta, foi obrigado a parar por falta de recursos. Depois de quase um mês de viagens constantes ao Rio, conseguiu com a Embrafilme parte do capital necessário para continuar o projeto.

“Casa de Deus” tem no elenco Sergio Mamberti, Maria Alice Vergueiro, Rodrigo Santiago, Falizia, Patricio Bisso, Isa Copelman. Fotografado por Pedro Farkas, conta a historia de 22 pessoas, vivendo em 1969/1970, num casarão no qual se isolam do sistema.

Folha de São Paulo, 2 de maio de 1978.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*O casarão foi construído entre 1907 e 1911, e não no século passado conforme informa o texto.

 

Uma imagem pornô para o Cine Jóia

A partir do próximo dia 27, o público interessado no cinema japonês perde uma sala de exibição. O cine Jóia, que há vinte anos, através do circuito Serrador, exibia as produções da Toho, mudou sua orientação, anunciando que dedicará a sala às pornochanchadas, com programa triplo e preços populares.

1978-cine joia porno

Há muito tempo essa situação já estava sendo adivinhada, desde que o rigor dos mecanismos protecionistas, adotados pela Embrafilme para fortalecer o cinema nacional, passou a ser sentido com mais intensidade. Ficou claro – explicam os exibidores – que as imposições da Embrafilme só poderiam ser atendidas pelas exibidoras norte-americanas, fechando o marcado para filmes com certificados de outras nacionalidades.
Depois do Cine Nikkatsu, na rua São Joaquim, que durante algum tempo funcionou com o nome de Cine Álamo, o primeiro a ser vencido pelas dificuldades impostas pelo Governo foi o cine Jóia, na Praça Carlos Gomes.
Agora, apenas duas salas, o cine Niterói na avenida da Liberdade e o cine Nippon, na rua Santa Luzia, exibirão filmes japoneses.

Francisco Sanchez, gerente do Jóia e funcionário da exibidora Serrador desde setembro de 1945, admite que o movimento no cinema há muito tempo deixa a desejar: ontem à tarde, desde o início das sessões, haviam vendido apenas 400 ingressos.
Poucos transeuntes, que passavam pela praça Carlos Gomes, davam atenção aos cartazes, anunciando o filme da semana – “O Fantástico Renegado” – série com Wakayama Tomisaburo, que deve encerrar a programação japonesa do cinema. Para os exibidores isso é consequência direta das restrições colocadas pela Embrafilme para a importação de filmes estrangeiros, cujas exigências acabam só podendo ser satisfeitas pelos produtores norte-americanos, detentores de um mercado exibidor compensador.
Francisco não está muito preocupado com o fim do cine Jóia, lembrando que dentro em breve deverá se aposentar. Com 75 anos, já é difícil para ele lembrar datas com exatidão, mas não nega que a casa teve melhores tempos.
O cine Jóia exibia filmes japoneses há vinte anos, logo depois que Hajime Sakai, diretor da Toho, veio ao Brasil em 1956 e assinou um contrato com a Serrador para distribuir seus filmes.

50-60s cine joia Alexandre Kishimoto
Cine Jóia nos anos 1950. Acervo: Alexandre Kishimoto

Durante muito tempo, relativamente pequeno para o público que o procurava, o cinema teve a lotação praticamente tomada a cada novo filme que colocava em cartaz. No entanto, de dois anos para cá, com os problemas criados pela Embrafilme, a exibição de novos filmes se tornou cada vez mais difícil e os exibidores recorreram às reapresentações, vendo o público diminuir.
Há tempos, os interessados no cinema japonês já previam o problema e explicavam suas causas.
Segundo funcionários das distribuidoras de filmes japoneses, que evitam se identificar, há quase um ano os seus cinemas só exibem reprises, pois as barreiras para a importação de um filme são “excessivas”. Quando o certificado de Censura dos filmes ainda disponíveis vencer, não haverá mais filmes e os cinemas terão de fechar as portas
Nas distribuidoras das empresas Shochiku (cine Nipon), Toei (cine Niterói) e Toho (cine Jóia), o clima é de desalento e inconformismo. mas seus diretores procuram não criticar a ação da Embrafilme e se negam até a dar entrevistas.
“Há um clima de medo, de que a situação piore ainda mais, pois a ação da Embrafilme é ditatorial”, comenta um funcionário.
Recentemente, a Toho Filmes, que importou quase todos os filmes do mais famoso diretor japones Akira Kurosawa, fechou seu escritório, que mantinha na avenida da Liberdade. Seu diretor-presidente foi chamado de volta ao Japão e seus interesses no Brasil passaram a ser defendidos por um antigo funcionário da empresa, que se instalou numa modesta sala da rua dos Estudantes, também no bairro da Liberdade.

50-60s cine joia Alexandre Kishimoto 2
Cine Jóia nos anos 1950. Acervo: Alexandre Kishimoto

Um crítico especializado no assunto reconhece que o cinema japonês encontra-se há muito tempo em completa decadência, devido à forte concorrência da televisão. Os grandes diretores, que fizeram do cinema do Japão um dos melhores do mundo, na década de 60, como Heinosuke Gosho, Tadashi Imai, Hiroshi Inagaki e Keisuke Kinoshita deixaram de trabalhar há muito tempo, desiludidos com a queda no nível de produção.
“Mas – ressalta – existe uma produção independente bastante ativa, que se não oferece filmes de alto nível, como há anos, tem feito obras polêmicas, revelando diretores novos e de bastante talento. Como as distribuidoras internacionais não se interessam por filmes desse tipo, de escassas possibilidades comerciais, a única saída era a importação através de empresas japonesas. Mas nas atuais condições isso está difícil, pois com o alto custo da importação, as distribuidoras preferem, quando podem, trazer filmes de karatê ou policiais, que têm bilheteria certa”.
Segundo o crítico, no caso do cinema japonês os mecanismos protecionistas da Embrafilme funcionam como uma faca de dois gumes. Isso porque, pela legislação atual de proteção aos laboratórios nacionais, os distribuidores japoneses são obrigados a fazer no Brasil uma cópia de todos os filmes que importam. “Como eles precisam de apenas uma cópia, para exibição no cinema da colônia, acabam vendendo a outra a preço baixíssimo para um distribuidor brasileiro qualquer. Com isso, um filme japonês, que teoricamente deveria ser exibido apenas num cinema especializado, vai para as salas comuns, do centro, fazendo concorrência com a produção nacional”.

Esse expediente, que vinha sendo usado pela Toho Filmes, com seus filmes de guerra e de monstros espaciais, não serve para a Toei Filmes, que controla o cine Niterói. Pelo contrato celebrado no Japão, a produção da Toei importada pelo cine Niterói só pode ser exibida nesse cinema da colônia. Os direitos para a exibição no resto do Brasil pertencem à multinacional americana CIC (Cinema International Corporation).
Para um crítico a única forma de evitar o fechamento dos cinemas japoneses de São Paulo é a criação de uma regulamentação específica para os cinemas da colônia. A Embrafilme poderia baixar a taxa e dispensar a copiagem brasileira de qualquer filme de exibição restrita, proibindo-se a projeção no circuito comercial comum. Dessa forma, um filme japonês somente poderia ser exibido nos cinemas da colônia (Nipon e Niterói). E, quem sabe, os cinemas poderiam exibir filmes de melhor qualidade.

“Não somos contra o cinema brasileiro, diz o funcionário de uma distribuidora. mas achamos que os japoneses, que contribuíram para o progresso do Brasil, têm o direito de continuar a assistir aos filmes produzidos em seu País”.

Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 1978.
Fontes:
Acervo Folha
SP da Garoa