A Mãe Preta e o Quarto Centeário

Mãe Preta

Por Quirino da Silva

Agora que se aproximam os festejos do quarto centenário da fundação da cidade, agora que nos preparamos para tudo mostrar ao estrangeiro, acerca das nossas atividades, enfim, tudo que no período de quatro séculos fizemos, ao estrangeiro que por aqui passar, aquele que antes chamávamos de viajante, e hoje, retorcidamente, se tornou turista. A esses, gostaríamos também, se possível, dizer-lhes do nosso reconhecimento a uma das magníficas figuras quem, a princípio, muito contra-gosto se ligaram à nossa história – desde o momento em que o colonizador sentiu a necessidade de para cá canalizar o braço negro, a fim de que o plantio tivesse mesmo incremento; para que o homem branco pudesse dar conta da árdua tarefa que se propôs, de aproveitar a terra – a terra: “em tal maneira é graciosa, que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo…” Como muito bem disse o senhor Pero Vaz Caminha, aquele que fez o registro civil do Brasil.

Trata-se simplesmente da mãe preta, a mãe de todos os filhos: aquela que, carinhosamente, foi mãe dos seus próprios filhos (quando tinha tempo) e mãe, muito mãe, dos filhos que não eram dela.

Mãe Preta, Lucílio de Albuquerque, 1912. Museu de Arte da Bahia, Salvador.

Sejamos brasileiros: não deixemos que os nossos sentimentos de raiz desapareçam neste instante em que pretendemos render homenagem àqueles que à força de inteligencia, de talento e trabalho, muito fizeram e fazem por este Estado.

Chegamos, é verdade, a um ponto bem elevado: chegamos até a nos ombrear com os povos mais civilizados. Há já muito que declaramos, em carta magna, prescindir do braço escravo negro; há muito, é bem verdade, que as naus portuguesas também não mais aproam nas praias africanas; há muito que, dos sombrios e infectos porões dos navios negreiros não saem a se perder na amplidão dos mares os queixumes, os silenciosos e doridos queixumes da queles que ajudaram a fazer à nossa riqueza.

Mãe Preta, Júlio Guerra, 1955. Largo do Paissandú, São Paulo.

Sejamos brasileiros: lembremo-mos que a mãe preta compartilhou sempre das nossas horas amargas, das nossas horas alegres. Homenageemos pois, a mãe preta, porque nela está simbolizada a bondade, a fidelidade, a amizade de uma raça que muito nos ajudou e ajuda.

Ergamos, se possível, um monumento à mãe preta.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de fevereiro de 1952.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Está exigindo uma reforma o velho Museu do Ipiranga

Não está em condições de receber visitas, o imponente edifício – Até hoje, não foi dotado de eletricidade

A administração paulista através da Comissão do IV Centenário, já está dando providências no sentido de revestir de brilho os festejos que assinalarão a passagem do quarto século de fundação da cidade de São Paulo. Verbas têm sido votadas nas casas legislativas, inclusive a necessária para a instalação da Comissão que cuidará de orientar as comemorações. Tudo indica, pois, que São Paulo, embora não com a suntuosidade esperada – que se tornaria descabida numa época de economia como a atual – irá festejar, condignamente, o seu quarto centenário.

ESQUECIDO

Ao que parece, porém, dos melhoramentos previstos para as cerimônias cívicas que então serão assinaladas, o Museu do Ipiranga está sendo totalmente esquecido. Entretanto, trata-se de um setor que os responsáveis não deveriam olvidar, por ser tratar de local onde se encontram depositadas verdadeiras jóias não só da história de São Paulo, mas também, do Brasil.

LASTIMAVEL

O estado atual do Museu do Ipiranga – qualquer pessoa o poderá constatar – é deploravelmente lastimavel. Dir-se-ia estar relegado ao mais completo abandono. Ao que parece, a atual administração do Museu luta com a falta de verbas e, consequentemente, ver-se-ia tolhida, na tarefa de cuidar como devia das relíquias que lhe foram confiadas. A exposição das mais interessantes peças da nossa história é desordenada, não obedecendo à técnica de Museu. A etiquetagem é velha e lacônica. muitas peças expostas não possuem sequer etiquetas explicativas ou simplesmente elucidativas. Tem, o visitante, a impressão de que nada se faz no sentido de preservar os objetos históricos da ação do tempo.
Uma simples vista de olhos pela sala de armas confirmará a assertiva. A generalidade dêsses objetos está tomada pela ferrugem e não se nota qualquer demonstração de cuidado para evitar a ação corrosiva.

ABANDONO

Observou a reportagem que no porão do edificio, atualmente em reforma, estão relegados ao abandono verdadeiras reliquias. Vêem-se ali quadros, celas e até ferragens com as quais, na época da escravatura, os fazendeiros prendiam os escravos. Assim, encontram-se amontoados a um canto do porão, correntes, pesos e algemas, documentos vivos de uma época da história. Esse material talvez permitisse a organização de uma “Sala da Abolição”, por exemplo.

Ainda no porão do Museu, onde a reportagem penetrou sem ser pressentida, vêem-se ferragens antigas ali depositadas sem o menor cuidado

IRREGULARIDADES

Embora muita gente o ignore, o edificio do Museu do Ipiranga não é dotado de luz elétrica! Os funcionarios, geralmente, são obrigados a deixar o serviço pouco depois das 16 horas, quando o dia começa a escurecer, pois, dada a falta de luz, o trabalho se torna impossivel.

Para clarear parte do edificio, existem varias claraboias. A principal, colocada bem ao centro do prédio, sobre uma escada de mármore – autêntico mármore de Carrara o mais fino em matéria de mármores – está completamente quebrada. Quando chove, o alvo mármore fica completamente alagado e os funcionários penam para retirar dele a ferrugem desprendida do teto estragado.

Esta é a claraboia central do edifício do Museu do Ipiranga, que não é dotado de energia elétrica. Está com os vidros quebrados, por onde penetra chuva, que vai manchar a alva escada de autêntico mármore de Carrara

Durante a administração anterior, foram construidos varios reservados sanitarios para uso dos visitantes. Atualmente, esses aparelhos sanitarios, embora em bom estado, foram interditados inexplicavelmente, causando, não raro, embaraços a muitas pessoas, especialmente crianças, que visitam o Museu.

PROVIDENCIAS

Do conjunto, ressalta que é deploravel a situação do Museu do Ipiranga, ponto dos mais importantes para a visita do turista, em 1954. Se providencias adequadas não forem tomadas em tempo, ali estará uma fonte de comentarios desairosos sobre a nossa capacidade de avaliar nossas obras históricas.

O Museu do Ipiranga não está em condições de ser visitado agora, quanto mais em 1954, a continuar nesse estado. Aliás, o próprio govêrno, segundo parece, já se apercebeu da situação.

Diário da Noite, São Paulo, 3 de dezembro de 1951.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Vai desaparecendo umas das últimas profissões medievais (1950)

-“Abaixo a máquina”, resmunga o sapateiro
– Quase já não se vêem “remendões” na cidade – Preferem-se agora os consertos-relâmpago

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Nenhum sensacionalismo na notícia, apenas uma nota de melancolia: estão desaparecendo os sapateiros. Nenhum projeto-de-lei que proibisse os artesãos de trabalhar, nenhuma medida de caráter policial ou estático. Apenas o progresso e a substituição do artesão pelo assalariado da indústria.

DESAPARECEM OS SAPATEIROS

É com êsse tom desinteressado das primeiras palavras desta nota que um intelectual examina o desaparecimento dos sapateiros da capital paulista. E continua agora em tom mais afirmativo: evidentemente não é compatível com o sistema social e a evolução da máquina o artesão. Nos ramos em que o homem não é nem patrão nem empregado, pois êle próprio produz, raros são os casos em que se preservarão. Os médicos constituem um exemplo, assim mesmo, possivelmente, no futuro, terão sua profissão socializada. Das profissões medievais a de sapateiro é uma das que mais subsistiu e só agora vai desaparecendo de vez.

O QUE FAZEM OS SAPATEIROS

Do artesanato praticamente proibido pelas dificuldades de locais de trabalho e pela concorrência do serviço mecanizado que é realizado em preços mais acessíveis, o sapateiros passou a ser telefonista, ascensorista, porteiro de fábricas, ou se ocupa em qualquer outro trabalho mecânico que nada tem a ver com seu ofício. Evidentemente em muitos casos trabalha em fábricas de calçados ou em casas chamadas “Relâmpago” de conserto de sapatos.

“RELAMPAGO”

Em São Paulo quando se introduziu o bonde elétrico foi preciso até oferecer prêmios para que os transeuntes se interessassem pelo novo sistema de transporte. Quando se pretendeu tomar do sapateiro o trabalho de consertar sapatos foi preciso também uma idéia e um meio para consegui-lo. “Relampago” foi a idéia. Consertar os sapatos em poucos minutos, na presença do freguês à espera foi o meio. Outro atrativo também foi introduzido: preços mais baratos. Dessa forma foram as casas mecanizadas destruindo a possibilidade dos artesãos suportarem a concorrência. Hoje, em todo o centro da cidade, raramente são encontrados.

“MALDITA MÁQUINA”

Quando o reporter se põe à procura de um sapateiro para, em tôrno de sua vida, redigir uma nota não tem em mente o significado do ofício, sua utilidade, seus preços. Não. Procura apenas a figura bizarra do sapateiro, em geral um velho imigrado de distantes países. O corredor sombrio e incômodo onde êle trabalha, os fregueses que aparecem trazendo serviço, ou para reclamar a demora dos consertos, os “habitués” que aparecem para nada, são os aspectos que mais nos interessam. Mas se o dia é de sol nossa sorte não é das melhores, e o primeiro que encontramos, num bairro, nos recebe de mau humor:
– MALEDETO JORNALISTE!

E não nos foi possivel conversar com o homem. Já em outro ponto da cidade a recepção foi diferente. É um cidadão de cerca de trinta anos o sapateiro que encontramos. Magro e pálido.

Conversámos com o homem. Seu ódio impotente contra A MÁQUINA era de comover. O sapateiro abriu a boca contra a costuradeira, contra a polideira, contra tôdas as máquinas que afetam seu ofício. Explicou ao reporter que “elas fazem depressa, não há dúvida, mas o serviço não se aproveita, pois dura pouco, deforma o calçado, faz tragédias!”
Enquanto o sapateiro fala, o fotógrafo vai calmamente engrenando sua objetiva para o flash. Mas o homem não concorda com a idéia e não quer ser fotografado. Perguntamos a razão da atitude contra a fotografia. Não explicou bem, mas deu para entender que êle quer paz e a foto no jornal lhe parece um meio de criar caso com a polícia. Partimos sem maiores resultados.

OUTRO SAPATEIRO

Finalmente encontramos um sapateiro como desejavamos. É um dêsses tipos que sugerem fim de uma civilização e lembram os nosso dias líricos de infância no interior do Estado. Com êle esquecemo-nos de quanto é aborrecido e monótono ser reporter e conversamos longamente. O homem fala mal do govêrno, não o do Estado ou da República, do govêrno simplesmente. Fala mal dos funcionários públicos, dos tintureiros, dos bondes, da cidade paulista, fala mal de tudo.
Termina por nos convidar para almoçar. Mas já é tarde e preferimos deixar a reportagem para outra ocasião.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de agosto de 1950

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
*A grafia original do texto foi preservada.

Legenda da imagem 1: Não há muito tempo, eram comuns os homens atrás da pequena mesa fazendo ou remendando sapatos. Hoje, os poucos que há, estão espalhados nos arrabaldes.

Legenda da imagem 2: Em lugar dos humildes artesãos as máquinas e grupos de assalariados realizam em minutos os trabalhos que antes demandavam horas. Para o trabalhador em geral nenhum benefício houve, pois hoje é mais difícil do que antigamente ter dinheiro para o conserto do sapato.

Como festejar S. João em seu apartamento

Por Sylvia Autori

Eis a oportunidade de transferir para o seu apartamento uma festa divertida e tipicamente brasileira. Mas não esqueça de fazer funcionar seus conhecimentos de culinárias.

S. João não é privilégio da roça

Que tem de comum o “living” de seu apartamento com o terreiro da velha fazenda? Onde a imagem de São João, prêsa à bandeira do mastro, onde a fogueira crepitando pelos desvãos da noite?

Bem, na verdade, não se pode assar batata-doce em cima do tapête, nem prescrutar a sorte à sombra de bananeiras inexistentes. Mas pode-se, isto sim, construir um “décor” onde a sugestão recrie e interprete a realidade; dependerá apenas de seus dons de artista.

A imagem do santo será colocada em lugar de destaque. os tapêtes da sala cederão lugar a esteiras, as cadeiras a tripeças ou a almofadas cobertas de chita. Objetos rústicos, peles de onça, pilão de pau, peneiras, cestos, gamelas, ajudarão a compor um ambiente típico. Quem tiver um terraço e plantas de folhagem ampla tem ainda maiores oportunidades de expandir-se. A fogueira simbólica ‒ abajur de luz vermelha ‒ rodear-se-á de cestinhas de batata-doce e aipim assado.

Terreiro de apartamento não dá pra soltar rojões, mas, quem sabe, um vizinho amigo dispõe dum bom terraço ou o próprio tôpo do edifício não anda inteiramente ocupado pela caixa de água ou pela casa de máquinas? Balões pendurados no teto enfeirarão a noite com suas côres vivas. E a música da sanfona ou da viola servirá para acender e para aplacar as saudades.

Recomenda-se traje esporte

Devem explicar o tipo da festa. Servem cartões com desenhos de caipiras. Desde que os convidados não fiquem em dúvida quanto à natureza da reunião. Traje esporte parece-nos o mais adequado; o caipira, além de explorado, sugere demais ambiente de clube. Nada de “toilettes” especiais: saia e blusa, calças, “slacks”, sapatos de corda, lenços matizados, roupa que nos ponha à vontade e que tenha um colorido alegre. E passemos ao “buffet”.

As comidas gostosas de junho

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A espiga de milho verde está tradicionalmente ligada às ruidosas festas de São João. Participa, também, dos ritos de adivinhação do futuro.

Podemos oferecer coisinhas gostosas e simples continuamente aos nossos convidados. O sabor delas é tão antigo que a gente da cidade talvez já o tenha esquecido. Pipoca quentinha, espigas de milho-verde, pamonhas, batata-doce, aipim, pinhões quentes, pé-de-moleque, cocadinhas, canjica, bôlo de fubá, doce de cidra, pastéis de carne, bolinhos de aipim, encherão o gordo bôjo das gamelas de pau ou barro. Arroz-doce, melado, rapadurinhas de leite, doce de abóbora, são apreciadíssimas sobremesas.l As festas de São João são sempre acompanhadas de comida farta e a noite passa mais depressa quando o povo está mastigando. No entanto, para um bom prato quente é indispensável: leitão assado, inteirinho, estendido sôbre um colchão de farofa, focinho enfeitado de azeitonas, lombo reluzente, estrelado de rodelas de limão. Nada há de mais pitoresco para uma festa dêste gênero. E, para os que não se dispõem a saborear um prato saboroso mas gorduroso, é bom oferecer a tradicional canja de galinha, o frango assado, o arroz de forno. Lombo, perna de porco, lingüiça frita, também são apreciados. E o cuscuz paulista, um quitute característico do interior de São Paulo. Pratos baianos e nordestinos darão ao “buffet” maior interêsse e variedade.

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Os pratos típicos, bem imaginados, ajudam a criar ambiente autêntico e matam as saudades da roça

A bebida típica da festa de São João em São Paulo é o traiçoeiro quentão, feito com pinga fervida e temperos variados. Na festa da cidade, o quentão pode ser mais suave e de sabor menos violento, mas porque não servi-lo em tijelinhas de louça? Os refrescos de maracujá, de abacaxi, de caju e de outras frutas brasileiras podem ocupar o lugar destinado ao refrigerante. O lado típico da festa não será sacrificado com a inclusão da cerveja. Não sendo de bom-tom obrigar os convidados a mudarem de hábito, convém servir discretamente algumas doses de uísque gelado.

Trecho extraído da revista A Cigarra, 1958, ano 44, número 6 – junho.

A grafia original foi preservada em sua integralidade, respeitando as regras gramaticais vigentes à época da publicação.

Cabeça de Ferro

A foto é expressiva. Paulo tentou alcançar a bola mas atingiu a cabeça de Mario. Por incrível que pareça o avante corintiano contundiu-se na jogada, saindo ileso o zagueiro nacionalista. O Corintians derrotou com facilidade o Nacional, por 3×0, em sequencia ao campeonato paulista. Apesar do juiz estar acompanhando a jogada nada marcou.

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Diário da Noite, São Paulo, 6 de agosto de 1959.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*A grafia da época foi mantida.

Necessaria uma firme campanha para se evitar o aniquilamento de nossas matas

São Paulo não tem 6% de sua area cobertos de florestas primitivas

Os objetivos da Sociedade amigos da Flora e Fauna Brasileiras ‒ Declarações do sr. Agenor Couto Magalhães ao JORNAL DE NOTICIAS

A reportagem do JORNAL DE NOTICIAS teve a oportunidade de se avistar ainda uma vez com o sr. Agenor Couto de Magalhães, presidente da Sociedade Geografica Brasileira, vice-presidente da novel Sociedade Amigos da Flora e da Fauna e notavel estudioso dos problemas de que se ocupam essas entidades, tendo mesmo escrito varias obras interessantes e de valor indispensavel, como sejam “Monografia Brasileira de Peixes Fluviais”, “Ensaio sobre a fauna brasileira”, com apresentação do naturalista Hans Krieg, diretor do Museu de Zoologia de Munich, Alemanha, “Encantos do Oeste” e uma tradução da obra de Jean Rosian, intitulada “Vida Sexual dos Animais”.

Falando sobre os objetivos primeiros da Sociedade Amigos da Flora e da Fauna Brasileiras, que ora se funda, declarou o sr. Couto de Magalhães que visa incentivar nos estabelecimentos de ensino, por meio de circulares, da imprensa e do radio, o amor dos brasileiros e de todos aqueles que conosco compartilham a defender o patrimonio nacional, isto é, tudo aquilo que a natureza prodigamente nos deu.
Os problemas a serem atacados, continua, são multiplos e complexos. Para se avaliar a extensão deles, acentua, basta que nos reportemos à devastação desordenada das nossas matas que determinará o desaparecimento da fauna e consequentemente a alteração do clima e a diminuição progressiva dos mananciais de agua.

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DESAPARECEM ASSUSTADORAMENTE AS FLORESTAS

É do conhecimento publico, diz, prosseguindo o nosso entrevistado, que o Estado de São Paulo, tinha em 1930, 26% da sua area total coberta por florestas primitivas e, decorridos 47 anos, menos de meio seculo, São Paulo não chega a ter 6% da sua area territorial com aquele revestimento primitivo. Esse aniquilamento de uma das principais riquezas do Estado, frisa, determina tambem o desaparecimento da fauna fluvial, pois bem certo é que com o desmatamento ciliar dos rios há o empobrecimento da equitiofauna.

‒ “Seria exaustivo ‒ pondera o sr. Agenor Couto de Magalhães ‒ enumerar em um só artigo de jornal todos os problemas cruciais que afligem a nossa imaginação e tambem o nosso entranhado amor pelas coisas do Brasil.”

Fazendo referencias aos tão combatidos despejos toxicos nas aguas dos nossos rios e lagos, disse o presidente da Sociedade Geografica Brasileira, que são tambem deses flagelos que exigem uma pronta correção. O rio Tietê, o Piracicaba, e o Mogi-Guaçu, lembra, estão sendo poluidos por substâncias altamente nocivas à vida dos peixes e se, em futuro proximo, não se cuidar do tratamento desses residuos os peixes finos que demandam essas grandes caudais fluviais desaparecerão por completo, cabendo principalmente, nesse caso, ao governo baixar instruções severas junto as prefeituras para que essas fabricas e usinas antes de terem as suas planta aprovadas apresentem os projetos para o tratamento de seus despejos residuais.

A QUEIMA DOS CAMPOS

‒ “Outro aspecto da questão que precisa ser ventilado ‒  diz-nos ‒  é a queima dos campos e invernadas exatamente no mês em que há a anidrificação e postura das especies campesinas (agosto e setembro), sendo necessario, então, que se façam essas queimadas por um sistema rotativo, isto é, queimar campos em varios setores alternadamente.
Como sabemos, a queima dos campos é necessaria para renovar a pastagem verde imprescindivel à pecuaria.”

PEQUENA A AREA REFLORESTADA

Respondendo a uma pergunta do reporter afirmou o sr. Agenor Couto de Magalhães que é ainda relativamente pequena a nossa area reflorestada comparada com aquilo que se destruiu. O maior reflorestamente, prossegue, é o da Paulista em Rio Claro, Jundiaí e Loreto, reflorestamento esse muito interessante do ponto de vista comercial mas absolutamente condenavel do ponto de vista biologico, pois sabemos que o eucalipto não produz frutos e não abriga a nossa onix, e tambem não permite, como é feita a sua platanção, a vegetação intermediaria. Até agora foram plantados no Estado mais de 3 milhões de pés de eucaliptos.

Recomendou o nosso entrevistado entre as arvores que substituirão com vantagem o eucalipto, na recomposição das matas primitivas as varias especies das caneleiras, o cedro, o jacaré, as acacias e outras mais.

O FUTURO SAARA CABOCLO

Fez menção o sr. Couto de Magalhães às nossas grandes zonas que estão sendo completamente devastadas, como a Sorocabana, e a Noroeste de Bauru, de Juquiá às barrancas do rio Paraná, que está fadada a ser um novo Saara, uma vez que é constituida de terra excessivamente arenosa.

O CODIGO FLORESTAL

Como na Camara Federal, existe um projeto de elaboração do Codigo Florestal, perguntamos ao nosso entrevistado sobre o mesmo e tivemos a seguinte resposta:
‒  “O Codigo Florestal resolveria em parte a devastação das matas. Contudo, permite que se derrube uma parte daquilo que se adquire, numa proporção de 70% e, consequentemente o lavrador ficará sempre com uma parte da sua propriedade enriquecidade com um testemunho florestado daquilo que existia nessas terras.”

POLICIAMENTO

Sobre a fiscalização das infrações praticadas contra o Codigo Florestal, esclareceu-nos o sr. Agenor Couto de Magalhães que aquele Codigo outorga, a todos aqueles que tenham uma parcela de autoridade, a desempenhar as funções de fiscais florestais. Só assim, salienta, será possivel existir uma policia capaz de denunciar os crimes que frequentemente são cometidos contra o nosso patrimonio nacional.

Jornal de Noticias, São Paulo, 22 de janeiro de 1950
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

O Assassinato de Anita Carrijo

VITIMA DE BARBARO LATROCINIO A CONHECIDA LIDER DIVORCISTA

Anita Carrijo, uma das mulheres mais conhecidas em todo o Brasil pelas suas campanhas em favor do divorcio, foi assassinada, na madrugada de domingo ultimo, em seu apartamento, na rua Braulio Gomes, 131, 1º andar, onde residia há algum tempo e onde mantinha seu consultorio dentario.

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D. Anita Carrijo fotografada, na França.

Filha de José Leite Carrijo, nascida em São Paulo, a cirurgiã-dentista Anita Carrijo era desquitada do sr. Adalberto Carllsen, com quem se casou em 26 de abril de 1935, tendo obtido o desquite em 1949.
Desde então Anita dedicou-se a uma campanha de carater nacional visando obter leis que permitissem o divorcio no Brasil, tendo, nesse sentido, feito dezenas de conferencias em varias capitais e cidades do pais, fato que a tornou conhecida em todas as camadas sociais.

Mulher de vida mais ou menos agitada, escritora e conferencista, dedicava-se a sua profissão, de cirurgiã-dentista, tendo boa e selecionada clientela.
Anita Carrijo foi encontrada morta, na manhã de ontem (segunda-feira), no interior de seu apartamento, revestindo-se o crime de misterio.

O ALARMA

Na manhã de ontem, por volta das 9,30 horas, como era do seu habito, d. Irma Sargentelle, enfermeira, residente na rua 13 de Maio, 166, que vinha trabalhando como auxiliar de d. Anita há pouco mais de três meses, como possuisse a chave de entrada do apartamento onde a dentista residia, ali entrou, dirigindo-se, imediatamente, ao consultorio a fim de fazer a devida limpeza e prepara-lo para os trabalho normais do dia.

Ao entrar naquela dependencia, entretanto, d. Irma percebeu que algo de anormal tinha ocorrido no seu interior, de vez que, sobre o solo, aberta e com papeis espalhados, estava uma bolsa de d. Anita e sobre uma mesinha, encontrava-se uma outra bolsa, maior, tambem com papeis espalhados.

Apanhada de surpresa d. Irma, durante alguns segundos, ficou conjeturando, procurando decifrar o que poderia ter ocorrido ali, durante a noite anterior. Foi quando seus olhos depararam com um lugar vazio, exatamente onde deveria estar o aparelho de diatermia que não se encontrava no seu lugar.
Como a porta do quarto da dentista estivesse fechada por dentro, sem que a chave se encontrasse no lugar, d. Irma procurou olhar para seu interior, vendo, então, que d. Anita estava caida no chão. Não podendo atinar com o que sucedera, d. Irma procurou o sr. Higino Hermitice, zelador do predio, a quem relatou o sucedido.

O CADAVER

Subindo até o apartamento, o guarda-civil, usando a chave da porta interior que dá para o quarto da dentista, entrou no quarto deparando, então com um quadro tetrico. D. Anita Carrijo estava morta, com os braços e as pernas fortemente amarrados às costas, caida em decubito ventral. A cabeça estava inteiramente coberta por panos ensanguentados. Uma das meias, a da perna direita, fôra arriada e suas vestes, vestido, sai e combinação, estavam na altura do ventre.
O quarto encontrava-se inteiramente remexido. Papeis e roupas espalhados pelo assoalho e as gavetas abertas, em completo desalinho.

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Posição em que foi encontrado o corpo da dentista Anita Carrijo

CABELOS DO ASSASSINO NAS MÃOS DA VITIMA

O desarranjo quase total em que se encontravam alguns pequenos moveis do interior do quarto não deixam duvidas de que ela antes de ser morta, lutou com os assassinos, tanto que em sua mão direita, fortemente fechada, foram encontrados fios de cabelos, provavelmente arrancados de um dos assassinos durante a luta de vida e de morte que a infeliz dentista travou com seus algozes.

ESPARADRAPO NA BOCA

Como estivesse coma cabeça inteiramente envolta em pedaços de pano, estes tintos de sangue, ao serem arrancados verificou-se, para espanto geral, que d. Anita Carrijo tinha a boca inteiramente tapada por fortes pedaços de largo esparadrapo. Os pedaços desse adesivo, que foram colocados, uns sobre os outros, iam de orelha a orelha e do queixo até os olhos.
No frontal havia um ferimento provocado por um instrumento corto-contundente, de uns cinco centimetros de comprimento, por menos de meio centimetro de largura e de onde jorrara sangue em abundancia.

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Quatro metros da cordinha que serviu para que os braços e as pernas da vítima fossem amarrados às suas costas.

MORTA POR ASFIXIA MECANICA

O medico Marcio Santa Lucia, horas depois do encontro do cadaver, procedeu à autopsia, concluindo que d. Anita foi morta por asfixia mecanica, isto é, teve sua respiração impedida.

Peritos do Instituto de Policia Tecnica conseguiram varios levantamentos de impressões digitais deixadas quer no quarto da vitima, quer em seu consultorio dentario.

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Depois de assassinar a dentista Anita Carrijo, os assassinos colocaram sobre sua cabeça, como se fôra um capuz, uma saia da vitima encontrada num dos moveis.

CONHECIDO DA VÍTIMA [?]

O autor ou autores do bárbaro homicídio – o crime, em suas características deve ter sido cometido por mais de uma pessoa – não podiam deixar de ser conhecidos da vítima, de acordo com as investigações realizadas pela reportagem.

D. Anita Carrijo, segundo sua própria enfermeira, costumava recolher-se tarde da noite, ficando no leito, quase todos os dias, até 10 ou 11 horas da manhã, quando então era acordada para iniciar seus trabalhos rotineiros.

Todos os dias, quando arrumava as coisas da casa e do consultório, encontrava sobre a mesa da cozinha dois copos e duas xícaras, aqueles com restos de vinho e estas com restos de café.

Irmã Sargentelle

Outras pessoas do prédio, ouvidas pela reportagem adiantaram que d. Anita levava uma vida normal, recebendo em seu apartamento amigos e clientes, com os quais, muitas vezes ficava palestrando até altas horas da madrugada.
As circunstâncias de que se revestiu o crime levam a levantar-se a hipótese de que somente pessoas suas conhecidas poderiam ter entrado no seu apartamento para assassiná-la.
Os autores do homicídio conheciam tão bem o apartamento de d. Anita Carrijo, que não tiveram dúvidas em desligar a força elétrica no lugar onde esta fora ligada, não faz muito tempo, por um eletricista contratado pela vítima, ligação essa que se encontrava escondida por detrás de um móvel existente na sala de espera de sua residência.

E mais ainda: no corredor de entrada do primeiro andar, ao lado direito da escada do prédio, existe a caixa do telefone, onde foram feitas 13 ligações de aparelhos espalhados em todo o prédio. Os assassinos tiveram o cuidado de desligar, no interior dessa caixa, os fios do telefone do apartamento da vítima, que foram facilmente encontrados no emaranhado de outros fios ali existentes. Donde se conclui que os autores do homicídio não só conheciam perfeitamente d. Anita Carrijo, hipótese aceita preliminarmente pelos delegados de Segurança Pessoal, como sabiam onde se encontravam as ligações elétricas e telefônicas, que foram cortadas para evitar qualquer surpresa.

ESTEVE NUMA FESTA DE CASAMENTO

Irma Sargentelle, enfermeira da vítima, esclareceu ao reporter que na tarde de sábado último, por volta das 17 horas, ela e a vítima foram a um casamento, na Igreja de S. José do Belem. Posteriormente, ambas dirigiram-se à casa da mãe da noiva, d. Maria das Dores M. Ferreira, à rua Lucio Miranda, 46, no Ipiranga onde houve uma recepção aos convidados.

Segundo suas declarações, d. Anita Carrijo ficou na festa, enquanto que ela, por volta das 21 horas, se retirou para sua residência.

SAIU SEM SER VISTA

D. Maria das Dores M. Ferreira, ouvida posteriormente pela polícia, esclareceu que realmente a vítima esteve na festa de casamento de sua filha, tendo ficado, durante algum tempo, numa área existente em sua casa e onde se serviam bebidas. Por volta das 23 ou 24 horas é que algumas pessoas deram pela falta da dentista, que saíra da festa, ao que parece, sem despedir-se de quem quer que fosse.

Interrogada sobre se Anita Carrijo deixou sua casa acompanhada, não soube explicar, afirmando que, ao que parece, ninguém que ali se encontrava viu quando ela deixou a festa, tanto que ao darem pela sua ausência, estranharam o fato.

MORTA COM A MESMA ROUPA

Prestando outras informações, Irma Sargentelle esclareceu que a dentista foi encontrada morta, em seu apartamento, trajando as mesmas roupas com que esteve, no sábado ultimo, no casamento da filha de d. Maria das Dores M. Ferreira.

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D. Irma Sargentelle, que deu o primeiro alarma, era a enfermeira da dentista Anita Carrijo. Na foto, quando prestava informações ao reporter do Diario da Noite.

IA PUBLICAR UM LIVRO

Na manhã de ontem, quando os trabalhos de levantamento do local estavam sendo iniciados pelas autoridades policiais da Delegacia de Segurança Pessoal, surgiu, no apartamento da vítima, o argentino Nicassio Manuel Corvalon, que interrogado, alegou ter entregue à d. Anita vários volumes de livros especializados em odontocirurgia e que estava acertando, com ela, a publicação de um livro, também especializado, de sua autoria.

O SEPULTAMENTO

Familiares da vítima informaram que d. Anita Carrijo seria sepultada no dia 13 de maio de 1957, às 14 horas.

CONSTERNAÇÃO

D. Anita Carrijo, que era uma das lideres nacionais do movimento divorcista, tinha largo circulo de amizades, tendo sua morte causado consternação geral entre seus amigos.

Trechos extraídos do Diário da Noite (São Paulo), edição n. 9.906 de 13 de maio de 1957
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Contra a onda de crimes

São Paulo continua a registrar quotidianamente uma onda de crimes… O comentário a ser feito a cada um dos casos não interessa a esta coluna, pois a doença que se generaliza pela coletividade, nos indices de violência criminosa em tôda a escala, reclama remédios mais amplos do que uma simples indicação de motivos, dificilmente elimináveis da vida social paulista.

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Centro de São Paulo, B. J. Duarte, 1954

Desconhecemos, em tôda a sua profundidade, que é também fisiológica e moral, as raizes dessa onda delituosa que se espraia. Mas, sem dúvida, muitas razões afloram à superfície, na existência conturbada desta cidade, onde se amontoa o povo nos tugúrios da vida promíscua, comprimido pela febre diuturna de uma competição desbordante dos quadros normais, para chegar a um resultado mínimo e precário.

Efetivamente, as razões psicológicas, derivadas de uma vida cruel, são em sua maior parte as causas mediatas dos crimes que agora se revelam, em acontecimentos espantosamente brutais, na contradição ao conceito superficial de que somos um povo de boa indole.

Primeiramente, esta não é mais uma cidade em que a vida possa ser vivida de maneira normal. Esta é uma cidade sem respiradores, sem elementos de recreio para crianças e adultos, sem valvulas para repouso do esfôrço quotidiano da vida do homem aqui segregado.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

É uma cidade atormentada por congestionamentos, por um infernal rumor, pela falta de transportes, pelas dificuldades de tôda a ordem, opostas à autonomia da pessoa humana.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Sofremos de uma compressão urbana que há vinte anos já o urbanista Anhaia Melo denunciava, ao reclamar uma política de parques de recreio para o paulistano, de parques infantis e para adultos, onde fosse possivel educar a criança e compensar ao maior de idade a perda de substância animica e vital que a competição determina, e que não encontra desafôgo em nenhuma solução psicológica, sentimental ou intelectual.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Um psicólogo que aqui vive descreveu a situação assim criada como uma “tensão potencial hostil entre os indivíduos”, e não é de hoje que o comportamento do paulistano se caracteriza pela cara amarrada, entre cotoveladas e empurrões.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Um dupla solução alimentar e residencial, coroada pelo recreio ativo de crianças e adultos, são os elementos que o poder público precisa colocar diante do problema aflitivo que se está criando em S. Paulo, com o índice de criminalidade e frequência delituosa a que atingimos, e que compõem um tristíssimo quadro, dentro de uma atmosfera temerosa, onde se tornam inúteis as armas de um policiamento obtuso e atrasado.

Diario da Noite, 8 de julho de 1949.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Trotes e Logros do 1º de Abril (1951)

ORIGEM DA EXPRESSÃO ‒ O “POISSON D’AVRIL” ‒ LENDAS E MITOS QUE SE ESPALHAM PELO MUNDO

Mentira, instituição nacional ‒ Inverdades de todos os tipos: oficiais e oficiosas, federais, estaduais e municipais

Reportagem de FAGUNDES DE MENEZES

1951-04-01 Diario de Noticias foto 1 de abril

É sabido que somos um país relativamente pobre de tradições, de mitos e de lendas. O que decorre ‒ e não vai nenhuma novidade na afirmativa ‒ de sermos uma nação ainda nova.
Se nesse terreno já possuimos alguma coisa genuinamente nossa, a maioria dos mitos, das lendas, dos costumes veio-nos, como se sabe de povos e culturas mais antigos.

Tem sido de lamentar que, em virtude da nossa relativa pobreza em matéria de tradições e mitos, venham de há muito tempo surgindo entre nós os fabricantes de lendas e mitos, os fazedores de histórias com aparência de folclore, os esnobes transplantadores de usos e festas, hábitos e comemorações inteiramente incompatíveis com o que é brasileiro. Tudo isso se manifestando na literatura, na música, na pintura, na arquitetura.

Não poderá haver nada de mais estúpido do que, no nordeste do país, existirem jardins e praças públicas com arborização apropriada a regiões da Suíça e da Escandinávia, árvores desnudas e esguias, sem possibilitarem um mínimo de sombra, nas horas do sol brabo, tão frequente em cidades do Rio Grande do Norte, do Ceará, de Pernambuco, da Paraíba. Nem coisa que se apresente mais ridícula do que, como existe em Natal, no bairro de Petrópolis (reparem no pedantismo do nome do bairro, por si só a estragar um dos pontos mais bonitos da capital potiguar), casas com telhados absolutamente iguais aos de moradias das regiões alpinas, telhados caindo quase verticalmente sôbre as paredes, para evitar… o acúmulo de neve.

Há também o Papai Noel, coitado, enfrentando o terrível calor do Rio, metido em sua roupa apropriada aos países em que a temperatura vai abaixo de zero gráu.
E mais as árvores de Natal, tão inexpressivas quanto as flores de papel, simbolizadas, através de vegetais estranhos à nossa flóra.
Mas, em meio a essa desabrida e constante importação de usos, hábitos, festividades, é natural que haja alguma coisa que chegando aqui se ambiente, se faça de casa, se incorpore ao que é nosso de tal maneira, ao ponto de, passando muitos anos sòmente meia dúzia de estudiosos conhecer sua origem.
Coisas que chegam aqui e se tornam cem por cento nossas, como o café, a cana de açúcar, os pardais.

Lendas e mitos que se espalham pelo mundo

Também há comemorações, lendas, mitos (outra vez afirmamos que não estamos dizendo qualquer novidade) que, nascidos em determinado lugar, em determinada região, em algum país, assumem um poder de irradiação e penetração, adquirem uma capacidade de se adaptarem às terras mais diversas, à índole dos povos de formação mais diferenciada, que terminam constituindo um patrimônio comum a tôda a humanidade.

O 1º de Abril

Assim aconteceu com o 1º de Abril, o chamado dia da mentira.
Admite-se que o dia da mentira haja surgido na França pelos fins do século XVI. É o “poisson d’avril” dos franceses.
Narra a história que o rei Carlos IX, de França, durante uma viagem ou uma estada de repouso que fêz no Castelo de Rousillon, em Dauphiné, no ano de 1564, baixou um decreto, determinando que o ano passaria a começar a 1º de janeiro, e não mais a 1º de abril*, como até então ocorria.
Depois dêsse decreto real, teria a data em que antigamente começava o ano passado a ser dedicada às brincadeiras, aos mil artifícios para enganar o próximo.

*Na verdade o ano se iniciava em 25 de março, no entanto, as comemorações acabavam no dia 1º de abril.

Origem da expressão francesa

Dão várias origens à expressão “possion d’avril”. Uns dizem que se trata de alusão à pesca, de vez que a pescaria na França quase sempre começa no mês de abril, sem grandes resultados.
Alguns afirmam que a denominação decorre da circunstância de, nesse mês, o sol atingir o signo zodiacal dos peixes.
Ainda outros asseveram que o “poisson d’avril” vem do seguinte fato: um príncipe de Lorraine, que Luís XIII mantinha prisioneiro no Castelo de Nancy, escapou dos seus carcereiros, no dia 1º de abril, atravessando a nado o rio Meurthe. Dêsse fato surgiram comentários jocosos, dizendo-se nas rodas populares que haviam dado aos franceses um peixe para guardar.

De acôrdo com a opinião de outros, “poisson’, no caso, é corruptela de “passion” ‒ uma pilhéria herética, alusiva a um dos episódios da paixão de Cristo, a qual geralmente ocorre em abril.
Durante seu julgamento, Cristo foi de Anás a Caifás, de Pilatos a Herodes e, finalmente, de Herodes a Pilatos.
Ir e vir, ir pra lá, vir pra cá, dando motivo a risos e apupos, eis a comparação estabelecida entre a paixão de Cristo e as brincadeiras do 1º de abril.
Pode-se dar certo crédito a essa versão, pois no século XVI era frequente o aproveitamento em cenas cômicas, pelas casas de espetáculo, dos trechos mais sérios do Novo e do Velho Testamento.

Ainda se opina que a expressão foi traduzida para o francês, tendo sua origem no tempo das perseguições aos cristãos, à época em que êstes se reuniam subterrâneamente, nas catacumbas, impossibilitados de pregar abertamente suas idéias religiosas e tolhidos mesmo de pronunciar em público o nome de Cristo. E quando os cristãos se referiam a Cristo, pronunciavam “ichtus” (peixe em grego) monograma entendido pelos adeptos do Cristianismo, formado com as iniciais das seguintes palavras: Iêsous, Christos, Theou, Uios, Sôter, que quer dizer: Jesus Cristo, de Deus Filho, Salvador.

O mesmo sentido em tôda parte

Generalizado possivelmente em todo o mundo, apesar das peculiaridades que apresenta em cada região, das variações com que decorre a data, de país para país, o 1º de abril tem a mesma significação e o mesmo sentido em tôda parte. A mesma finalidade de enganar, ludibriar, de pregar peças aos amigos, aos parentes e até a estranhos.

Na França, é comum ordenarem às crianças que vão buscar uma corda para amarrar o vento, ou um cesto para carregar água.
Em Portugal, reunem-se varios rapazes, conseguem prender ao solo uma cédula ou moeda e depois ficam à espera do “felizardo” que irá “encontrar” o dinheiro.
Na Alemanha também há os recados falsos, as notícias mentirosas. Quando o que foi vítima da brincadeira percebe o lôgro em que caiu, o autor da pilhéria recita-lhe um verso que podem ser traduzidos livre e resumidamente assim:

“Abril, abril, abril,
Neste mês cada um faz o que quer”

Versos que correspondem ao nosso “Hoje é 1º de Abril!”, dito também a quem se deixa enganar por qualquer brincadeira.
Conta-se êste fato ocorrido na Inglaterra; o “Evening Star”, em 31 de março de 1846, noticiou que no dia seguinte, pela manhã, haveria uma excelente exposição de asnos, a qual seria aberta no salão da Agricultura, de Islington.
No dia e à hora marcados, o salão encheu-se de curiosos e interessados. Houve uma prolongada espera e nada de aparecerem os animais. Afinal, os que acorreram ao salão acabaram se convencendo de que os burros que se encontravam no salão eram êles próprios.

Mentira, instituição nacional

No Brasil, se dá o mesmo cunho à brincadeira. Mente-se com alegria, criam-se histórias de tôda natureza, enviam-se cartas com notícias falsas, há os convites telefônicos para almoços e jantares, feitos em nome de outros.
Entretanto, sòmente no 1º de abril a mentir ocorre entre nós, de um modo assim saudável e inofensivo. Porque a rigor, no Brasil, não existe “dia da mentira” e sim “ano da mentira”, que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro.

A mentira, em nosso país, é uma instituição nacional, tão arraigada quanto o jôgo do bicho, o carnaval, o futebol.
Há tôdas as modalidades de mentira e tôdas elas quotidianas, constantes, ininterruptas, infalíveis: mentiras oficiais, e oficiosas, públicas e particulares, parlamentares e administrativas, radiofônicas e jornalísticas, comerciais, mundanas e domésticas, federais, estaduais e municipais.
Para constatar isso é bastante trazer-se à memória tudo o que se tem lido e visto num curto período, que não precisa ser de quinze anos.

Toma o cidadão um bonde e encontra letreiros chamando-lhe a atenção: “É proibido fumar nos três primeiros bancos”. E mesmo ao seu lado, há um passageiro soltando no ar, ou melhor, jogando-lhe na cara, densas baforadas de charuto.
Se se dispões a viajar de ônibus, o que ‒ para afirmar como um juiz desta capital, referindo-se ao ato de atravessar as ruas do Rio ‒ também constitui um ato de bravura, encontra o passageiro, logo acima da cabeça do chauffeur esta advertência:
“É proibido conversar com o motorista”.
Mas quantos bate-papos animados os homens do volante não mantêm com seus amigos, conhecidos ou companheiros de trabalho.

Mente-se muito, mente-se desadorada e cinicamente no Brasil.
São as plataformas de govêrno, os planos administrativos, as entrevistas de encomenda, as satisfações ao povo dados pelas autoridades.
Surge uma irregularidade, um desfalque numa repartição pública, um alcance numa autarquia, um crime qualquer?
‒ Vem o alarma da imprensa, no Parlamento, os representantes da oposição formulam requerimentos, elevam protestos. Depois aparecem as notas oficiais:
“Será aberto rigoroso inquérito (o qualificativo aí é bem significativo da frouxidão e da desídia reinante, como se fôsse possível estabelecer-se uma gradação nas medidas para apurar crimes de quem quer que seja) e os culpados serão punidos”

A mentira do peixe abundante ainda está fresca: é da Semana Santa. A verdade é que a maioria dos cariocas teve de se contentar, durante a páscoa, com sardinha enlatada e bacalhau.
A carne verde sem osso é vendida a Cr$14,00.
E já estamos em perspectiva de mais um espetacular 1º de abril ‒ o da carne barata, a preços populares…
E, por aí vai.

Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de abril de 1951.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.