Constituiu acontecimento de singular expressão para quasi todo o país o estranho caso ocorrido com o atleta japonês Géo Omori, que se celebrizou em “rings” brasileiros como bravo lutador de “jiu-jitsu”. Acometido, subitamente, de impressionante, enfermidade, que o deixou prostrado, cego, surdo, mudo e louco, sobre o leito de um manicomio, esteve quasi sete dias sem fazer o menor movimento, em angustiante imobilidade, sem embargo dos desesperados recursos da ciencia para fazê-lo voltar á razão.
E mais impressionante se fazia a molestia por ser até agora de origem desconhecida, conquanto prevaleça até hoje a primeira hipotese formulada, de que o mal sobreviera a dificuldades financeiras, grandes, que atormentavam o espirito do “fighter”.
TRESENTOS CONTOS QUE SE DESBARATAM
Realmente, quem conhece a vida passada de Omori, desde que chegou ao Brasil, pode avaliar a triste situação em que ele hoje se encontra, vivendo apenas do dinheiro que lhe advem do emprego de zelador do aquario da Feira Permanente de Amostrar de Belo Horizonte. Omori, ao deixar sua partia, o Japão, dirigiu-se aos Estados Unidos. Já era então um grande campeão, detentor da “faixa preta”, que no Imperio do Sol Nascente classifica o lutador que jámais foi vencido em combate. Ia disposto a fazer fortuna. E fê-la.
Na temporada que realizou na terra dos dollars, propícia a toda sorte de lutadores, conseguiu juntar bastante dinheiro, a ponto de dispôr de mais de tresentos contos de réis, ao saltar no Rio, para onde então se encaminhara disposto a descansar.
Onde procurava descanso, entretanto, só encontrou trabalho. Decidido a abandonar o violento sport a que dedicara toda a sua vida, resolveu tentar outra sorte de ocupação e foi assim que, de campeão de jiu-jitsu, se transformou em modesto comerciante. Estabeleceu-se em São Paulo, com uma casa de peixes raros e de fantasia. Já em sua patria mostrava predileção por essa especie de negocio, tão conforme, aliás, ao seu temperamento sossegado, um tanto apatico, amigo do silencio.
Foi infeliz. O estabelecimento não lhes correspondeu á expectativa. Deu prejuizo. Pessoas que privavam de sua intimidade por essa época dizem que Omori não demonstrou ser bom negociante. O cliente lhe fazia mais exigencias que Omori a ele. E o japonês acabava por ser convencido, desfazendo-se do que tinha mais para satisfazer aos que procuravam que para ganhar dinheiro. Coração bonissimo, revelava-se incapaz de uma exigencia teimosa, pertinaz.
Por outro lado, o genero de comercio que escolhera era dos mais ingratos. Morriam-lhe os delicados peixinhos ás duzias. Faliu por fim.
NO RIO
Um dia Omori apareceu no Rio. O jiu-jitsu era praticamente desconhecido entre nós. O campeão não quis aproveitar a excelente oportunidade logo. Antes de nada, cuidou de sua velha paixão. Estabeleceu-se com os peixinhos, no antigo edificio de “O País”, na avenida Rio Branco. A “guigne” o perseguia. Os maus negocios continuaram. E novamente Géo Omori faliu, com prejuizos ainda maiores e mais graves.
Novamente foi para São Paulo e novamente se estabeleceu. Era já uma mania. Reconhecia ser o ambiente ingrato. Poucas pessoas visitavam seu estabelecimento, e assim mesmo querendo levar por preço baixo as preciosidades que Omori colecionava com verdadeira paixão. Os tresentos contos se desbaratavam, iam pouco e pouco desaparecendo. Um dia chegou a penuria, a triste penuria do campeão. para não passar por privações, voltou ao sport, aceitando o convite que lhe fazia a administração do Circo Irmão Juliriolo.
RESSURGE O LUTADOR!
O aparecimento de Omori em “rings” brasileiros foi um acontecimento de extraordinaria expressão sportiva. Modalidade de sport quasi ainda sem cultores no país ‒ existiam apenas os irmãos Gracie ‒ conquistou a simpatia, o entusiasmo popular. As primeiras exibições de Omori o consagraram.
Longo tempo de retraimento, de ausencia dos “rings” não tinham arrefecido o vigor do campeão. Era ainda o bravo, o inconfundivel Omori, o homem da “faixa preta”.
Os cronistas esportivos dedicaram-lhe longas colunas de noticiario, glosando a excelencia de seus conhecimentos tecnicos. Foi um sucesso. Em São Paulo não se falava de outro “sportsman”. Decoraram-lhe o nome até as crianças, embevecidas diante daquelas quédas espetaculares, emocionante, do campeão.
No Rio os irmãos Gracie introduziram a novidade do jiu-jitsu. Omori foi convocado a participar da temporada que se inaugurava. Veiu, venceu e consagrou-se. A fortuna sorriria-lhe novamente. Mas…
Enquanto lutava, só tinha uma preocupação: o comercio dos peixinhos. Assim que pôde, começou a examinar as possibilidades de reabrir o estabelecimento. Em São Paulo, com os quatros contos que lhe pagava o circo, tinha prosseguido nos negocios, perdendo sempre. Lutador de fibra, achou, porém, que ainda devia insistir. E foi assim que surgiu novamente o comerciante Omori. Sua casa, na rua Gonçalves Dias, tornou-se o ponto de atração dos “sportsmen” e cronistas. Falava-se ali mais de jiu-jitsu que de peixes…
Vieram patricios de Omori, tambem lutadores de jiu-jitsu, atraidos pelo sucesso que ele alcançava. E os “rings” cariocas vibraram ao rumor daqueles “matches” emocionantes. O sport niponico empolgou a cidade. Os irmãos Gracie abriram uma academia, na rua Marquês de Abrantes. Não se falava de outra coisa. E até o malandro do morro ia deixando o “rabo de arraia” ao abandono, desprezando a “rasteira” secular e legitimamente brasileira, para tentar aprender “tesouras”, “chaves de braço”, “gravatas”, etc.
A velha tapona, incisiva, contundente, humilhante, cedeu logar á aristocratica chave de braço, á discreta pancadinha sobre os rins, que ninguem se pejava de conhecer, mesmo nos salões elegantes.
Parlamentares austeros, sizudos, iam ás escondidas presenciar o espetaculo. E até um sacerdote, não menos digno que os mais, que conciliava os interesses da Igreja com os da Politica, se permitiu a liberdade de anunciar publicamente que iria aprender o “jiu-jitsu”, afim de resolver quaisquer embaraços que porventura surgissem no harmonioso ritmo de sua carreira pela Camara dos Deputados…
GLORIA
Omori, Gracie, Miaki, Iano e tantos outros constituiram então a pleiade maravilhosa. Ditadores da simpatia publica, viam seus nomes enchendo paginas dos jornais e a boca do povo. Em qualquer rincão da cidade que se citasse um desses nomes todos o conheciam. E o primeiro, principalmente, se cercava de uma verdadeira aureola.
Mas… a casa dos peixinhos continuava. Ponto de atração dos lutadores niponicos, lá ia como barquinho de papel pela vida fóra.
Muitas vezes os jornalistas surpreendiam por detrás do balcão um rosto feminino, sempre sorridente. Não dizia uma palavra em português, mas sorria tão á brasileira que todos a compreendiam.
Cetuko, a esposa de Omori. Meiga, carinhosa, não abandonava jamais o companheiro. Quando Géo tinha negocios a resolver fóra, lutas a combinar, ela alí permanecia, vigilante, sorrindo apenas para os que chegavam e saiam.
Géo se considerava feliz. A tempestade lhe levara tudo ‒ mas a vida não estava alí, á sua frente, ainda risonha? Lutaria, procuraria conseguir a prosperidade passada. Forças não lhe faltariam.
Para cumulo de contentamento, dois olhinhos de amendoas num rosto palido e mimoso vieram encher o lar do lutador ‒ Kimika, florzinha graciosa que brotara daquele amor tão constante.
OCASO
Não ha gloria sem ocaso. O de Omori veiu por fim. Teve de passar o negocio adiante. As lutas escassearam. A idade pesava-lhe e outros concorrentes apareciam na liça, a disputar-lhe a popularidade. Raro em raro, o nome vinha nos jornais. Era a “debacle”.
NOS ESTADOS
O tempo correu, fazendo crescer as dificuldades. Desesperançado de reconquistar a boa situação passada, Omori resolveu sair do Rio. Foi para os Estados, realizar lutas avulsas. E assim se encontrava agora em Belo Horizonte, quando o colheu a fatalidade.
LOUCO, CEGO, SURDO E MUDO!
Na capital mineira deram-lhe o emprego de zelador do aquario da Feira de Amostras Permanente, com 1:400$000 mensais. Era ainda a velha paixão ‒ de que nunca pôde livrar-se. Para um outro qualquer, o ordenado satisfaria. Mas para Omori, era uma tortura. Apagado, sentia estiolar-se naquela vida pacata e pouco rendosa. Não lutava quasi e, lembrando-se da esposa que ficara no Rio, a tristeza aumentava-lhe, tomava-lhe todo o coração.
Morava com um companheiro dos tempos aureos. Mossoró, “sportsman” português, que se afeiçoara intensamente ao antigo campeão. Era o unico confidente daquela magua, que, entretanto, pouco transparecia. Na infelicidade, Omori conservava a reserva de sempre. Sorria ainda, mas, quem lhe pudesse ver a alma, se assombaria com o esforço de que resultava aquele sorriso.
Um dia, ao recolher-se, Mossoró passou pela Feira de Amostras. Preocupado com a tristeza do amigo, queria vê-lo acompanhá-lo á pensão em que residiam. Não o viu no logar costumeiro. Procurou e foi então encontrá-lo estirado, inerte, sobre um banco.
Inquietou-se. Chamou pelos outros empregados da Feira e soube que havia mais de seis horas o campeão se achava alí deitado, sem um movimento siquer. Sacudiram-no. Não se mexeu. Falaram-lhe. Não respondeu. Puseram-no de pé. Ia caindo, se o não amparam.
Angustiado, Mossoró pegou Omori ao ombro e saiu a correr com ele até á pensão. E chamou imediatamente medicos, que fossem soccorrer os companheiros.
NO MANICOMIO
Os proprios medicos se impressionaram com o que se passava. Omori estava louco, cego, surgo e mudo! Por que? Aplicaram-lhe injeções, deram-lhe massagens, inutilmente. A imobilidade, pavorosa, persistia.
Não havia outro recurso sinão remover incontinenti o lutador para um hospital, o Instituto Raul Soares. O diretor, Dr. Galba Moss Veloso, julgou o caso singularissimo. A que se devia? A libação alcoolica? A demasiado esforço no “ginr”? A desgostos profundos?
CETUKO E KIMIKA
Cetuko e Kimika, avisadas do doloroso fato, foram correndo a Belo Horizonte. Nada puderam fazer. As lagrimas da esposa de nada valeram para o lutador adormecido. Não ouviu as meigas palavras, sussurradas, em angustia, aos seus ouvidos.
Foi Cetuko quem esclareceu aos medicos a causa do mal de Omori. Atribuia-o mesmo ás dificuldades financeiras. E, por intermedio de Iano, o lutador niponico que tambem estava á cabeceira do enfermo, revelou que ha muito notara aquele acabrunhamento no companheiro, cada vez mais intenso. Omori não se conformava com a situação que o destino lhe reservara. Depois de ter tanto dinheiro, a salvo de quaisquer privações, via-se reduzido a viver do proprio ordenado, a cortar as despesas com a familia. E então, o cerebro o traiu, fazendo-o tombar imovel, cego, surgo, mudo e louco.
A MORTE
Omori, o formidavel lutador, o homem de musculos elasticos e possantes, que derrubara centenas de mestres na sua arte, cujo coração resistira aos mais tremendos embates, jazia no leito, abatido, destroçado. Era uma grande criança inerme, sem vontade definida e, ademais, desprovido de seus mais preciosos atributos físicos. Os medicos tudo fizeram para salvá-lo. Assistiram-no desveladamente, com empenho especialissimo, tanto mais que não puderam caracterizar com segurança rigorosa, sua molestia.
Então, veiu o fim. Omori, aos 40 anos de idade, morreu, deixando viuva e a filhinha orfã. Omori, invencivel campeão, perdeu em luta com uma molestia fulminante, arrasadora. Venceu-o a morte por golpe inapelavel.
Honra a Géo Omori, lutador leal, perfeito cavalheiro, bom esposo e otimo pai.
A Noite – Ilustrada, 1938.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
¹O texto original foi transcrito mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.