O estadio paulista no valle do Pacaembú

Em entrevista ha dias concedida a um matutino, affirmou o major Fonceca uma cousa que merece contestação.

Não desejamos affirmar, em absoluto, que o d. presidente da Camara Municipal de S. Paulo tenha deixado escapar, conscientemente, uma inverdade.
Mas s. s., que no inicio do caso da pacificação andou por caminho errado, por não estar ha muito enfronhado nas tricas e futricas do esporte, naturalmente pela mesma razão deu àquelle jornal uma informação mal segura.

Fel-o quando affirmou que “si até agora o Governo do Estado não procedeu á construcção de um estadio, deve-se isto á dissidencia existente no esporta paulista. Posso assegurar que, logo que se tenha verificado a pacificação, serão tomadas as providências necessarias para a edificação desta obra que todos nós desejamos. O respectivo terreno foi doado pela Cia. City, em um optimo local do Pacaembú, já estando passada  a competente escriptura, o que não póde deixar duvidas a respeito do que affirmo”.

Si nos permitte o major Fonceca, vamos narrar o que de exacto ha sobre o assumpto.
Esse caso da doação de um terreno pela Cia. City, ao governo do Estado, para a construcção obrigatoria de um estadio, é mais velho do que se pensa, e não é o dissidio que tem impedido a sua effectivação.

Sinão, vejamos.

Já em 1921, nos ultimos mezes do anno, doou aquella companhia, dos seus terrenos situados no Pacaembú, uma area ao governo do Estado — na época presidido pelo dr. Washington Luis — para a construcção de um estadio.
O presidente do Estado incontinente nomeou para cuidar do assumpto uma commissão composta de tres membros: o dr. Benedicto Montenegro, presidente da Associação Paulista de Esportes Athleticos, na época a unica entidade dos esportes terrestres em S. Paulo; sr. Antonio Prado Junior, presidente do C. A. Paulistano, e o dr. Alfredo Braga, engenheiro-director das Obras Publicas da Secretaria da Agricultura.

Em uma assembléa da A. P. E. A. foi solicitada permissão para que essa entidade dispendesse até cem contos do seu patrimonio em propaganda, caução no thesouro e premios para as plantas do futuro estadio — o que por ella foi concedido.

A commissão organisada visitou o terreno, doado e fizeram-se varias publicações a respeito, havendo o governo promettido que a pedra inaugural do estadio seria lançada pelo centenario da proclamação da nossa independencia politica.
Não se sabe porque, infelizmente a ideia não foi levada adiante, e a commissão foi dissolvida.

Durante o anno passado o Palestra desejou obter o terreno do governo, ficando com a obrigação de fazer o estadio que construiria com o producto da venda do Parque Antarctica.
Mas o Paulistano tambem, na occasião, poz-se a desejar para si o terreno, para fazer o seu novo campo.
E a Companhia City fez questão de que o alvi-rubro tivesse preferencia no negocio. Assim, mandou consultar o presidente do E. C. Syrio sobre a permuta do campo do Jardim America, avaliado em 3 mil contos, pelo terreno do club Syrio, avaliado em 1000 contos, voltando naturalmente a differença o gremio do sr. Dabague.
O E. C. Syrio, achando difficil levantar cerca de dois mil contos, não acceitou o negocio.
Assim, o Paulistano ficou no Jardim America, o Syrio, na Ponte Grande, o Palestra resolveu fazer o seu estadio mesmo no Parque Antarctica, e o terreno do Pacaembú abandonado, aguarda melhores dias…

É esta a verdade sobre o caso.

Trecho extraído da Folha da Manhã, 13 de junho de 1929.
Fonte: Acervo Folha

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Legenda das imagens:

Esquerda: fotografia aérea da região do vale do Pacaembu. Sem data. Fonte: Acervo Cia City. http://www.ciacity.com.br/

Direita: Google Maps (2020)

 

A morte do carvalho do largo do Palacio (1929)

Succumbiu ao martyrio lento a que o submetteu o prefeito Pires do Rio ‒ Desappareceu, assim, um vegetal contemporaneo do velho São Paulo

Já não existe mais o velho carvalho do largo do Palacio. O machado da Prefeitura Municipal, empenhada cada vez mais em aformosear a cidade, remodelando tudo sob o criterio lunar do sr. Pires do Rio, deu afinal cabo da arvore vetusta, que ali no historico planalto nos falava de um outro S. Paulo, bem diferente do S. Paulo de hoje.

O bello e venerando vegetal, que era conhecido por “carvalho da Republica”, dava ao tranquillo recanto da cidade em que Anchieta ergueu o collegio dos Jesuitas, um ar mais tranquillo ainda, arredondando sobre o asphalto um circulo de sombra acolhedor e refrigerante…

Mas a administração do municipio, que admitte por ahi verdadeiros monstrengos urbanos, achou que o antigo carvalho era inconveniente e indesejavel ás leis do transito, pois que se levantava quasi ao centro da extincta via publica, que se chamou Travessa da Fundição…

Mas antes de destruir a arvore do largo do Palacio, o sr. Pires do Rio resolveu submettel-a a um lento martyrio. Isolou-a, com surdos rancores. Matratou-a, com podas irracionaes. Circumdou o tronco numa áreazinha de terra secca, além da qual era só asphalto e parallelepipedo…

Agora, o jardineiro que cuida das plantas rachiticas da esplanada governamental, recebeu ordem de dar o golpe de misericordia no pobre carvalho.

Lá está elle, pois, com os ramos decepados; o tronco escalavrado, na base, rente com o sólo; as raizes á mostra pela excavação recente que lá fizeram. Nada mais resta da arvore imponente, que representava uma verdadeira tradição paulistana. O que lá está, neste momento, desafiando a curiosidade dos transeuntes, é uma triste reminiscencia vegetal. Sem cópa, parece sem cabeça. E continúa de pé. Imaginem o que seria um homem sem cabeça, tentando dizer qualquer cousa aos que passam…

“CARVALHO DA REPUBLICA”

Sempre ouvimos dizer que a velha arvore era o “carvalho da Republica”. Da Republica por que? Teria se dado ali, sob a sua fronde amiga, algum acontecimento de vulto que se relacionasse com a Republica brasileira? Ou seria uma designação sugerida apenas pela proximidade nem sempre recommendavel do palacio do governo?

Para pôr tudo isto a limpo resolvemos ouvir qualquer pessôa conhecedora de S. Paulo de outros tempos e estudiosa de nossas cousas. Lembramo-nos do dr. Aureliano leite, advogado e jornalista nesta capital. Telephonamos-lhe, perguntando-lhe o motivo do nome popular “carvalho da Republica”, dado ao vegetal do largo do Palacio.

‒ Aquella arvore deve ser mais antiga que a Republica ‒ respondeu-nos o dr. Aureliano Leite. Lembra-me que em 1900 ella já era adulta, e o carvalho em 10 annos ‒ que era o quanto contava então a Republica, ‒ não attinge áquellas proporções. Eu, quando garoto, catei ao pé della muita bolóta, que ella então já produzia sem usura… Mas isto é pouco. Vou colher mais alguma informação a este respeito e o que houver lhe transmittirei com muita satisfação.

1908 (data do carimbo), sem editor. Fonte Delcampe
Cascata do Palácio, 1908 (data do carimbo), sem editor. Extraído de site de leilões.

O HISTORICO DA VELHA ARVORE

De facto, dahi a momentos o dr. Aureliano Leite nos convidava a uma visita á sua residencia, onde nos relataria o que tinha colhido com referencia ao extinto carvalho. Recebeu-nos com deferencia e nos disse:
‒ Para completar o que eu sabia a proposito da arvore do largo do Palacio me communiquei com o dr. Affonso de Freitas, que é, sem contestação, das maiores autoridades em historia paulistana. Trocando impressões, reavivando factos, chegámos á conclusão de que o nome de “carvalho da Republica”, dado ao mais bello especime vegetal do planalto em que assenta o palacio do governo de S. Paulo é uma criação fantasiosa. Elle foi mandado plantar pelo conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, quando presidente da provincia. Era contemporaneo da fonte que alie existe ou existia e do remodelamento do palacio e dos jardins da cidade.

Por esse tempo, apreciavam-se as plantas exoticas e só a esse criterio obedeceu o plantio de carvalhos, plátanos, etc., em S. Paulo, em detrimento de nossas arvores, como a quaresmeira, o ipê, o pau Brasil, e outras arvores, hoje grandemente aproveitadas.

O “assassinio” do velho carvalho ‒ proseguiu o dr. Aureliano Leite ‒ não resta duvida que foi uma injustiça e um acto de inconsciencia. Ele vinha de 86. Veiu de Portugal, mas se “naturalizou” paulista. Assistiu á evolução da nossa capital na sua fase decisiva. Numa cidade como esta, cuja transformação de aldeia provinciana para o centro cosmopolita que é hoje, foi processada fulminantemente, se devia conservar com maiores razões tudo o que diga do S. Paulo que desappareceu.

Creio que não vae nisto nem um pouco de sentimentalismo, mas uma noção muito pratica da necessidade de se conhecer o que fomos para maior certeza do que seremos… Ha raridades que devem entrar para o nosso patrimonio historico, a augmentar o cabedal dos nossos conhecimentos. A destruição da velha igreja dos jesuitas, por exemplo, que deu lugar á actual secretaria do Interior, não foi obra nem de intelligencia nem de patriotismo. Apesar de todos os argumentos em contrario, estou convicto de que haveria sempre modos de conserval-a como reliquia do passado piratiningano.

OUTROS VEGETAIS ANTIGOS DO LARGO DO PALACIO

Continuando na sua exposição observou o dr. Aureliano Leite: ‒ O carvalho que desappareceu não era o unico vegetal historico do largo do palacio. Nos fundos deste existia, e ainda restam tres exemplares, ‒ um renque de casuarinas mandadas plantar pelo então presidente da provincia, dr. Nabuco de Araujo, em 1853.

Já houve quem attribuisse o plantio da mais velha dellas ao padre José de Anchieta!

“CARVALHO DA MONARCHIA”

‒ Voltando ao carvalho ‒ disse o dr. Aureliano ‒ elle poderia ter sido chamado “Carvalho da Monarchia”, porque della foi contemporaneo e contemporaneo de S. Paulo velho.

De qualquer modo, sua abatida foi impiedosa.

Foram estas declarações do dr. Aureliano Leite, que se mostrou muito interessado pelo assumpto que nos approximou de sua pessoa.

Agora, sabendo da existencia das casuarinas de Nabuco de Araujo, o dr. Pires do Rio, por uma questão de coherencia, deve mandar abatel-as tambem.

Diário Nacional, 2 de janeiro de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*A grafia original foi mantida em sua integralidade.

Urbanismo em São Paulo: Zoning

QUEM CONSTRÓE A SUA RESIDENCIA NÃO SABE QUE ESPECIE DE VIZINHOS TERÁ

E A VIZINHANÇA INCOMMODA PÓDE ROUBAR-LHE O AR, A LUZ, O VALOR DO EDIFICIO…

A legislação do “zoning” na cidade organizada

zoning

O livro do dr. Luiz Anhaia sobre urbanismo, de que hontem demos noticia, traz interessantes soluções ao problema de organização das cidades, de que até agora temos prescindido. Entre essas soluções, uma das que merecem maior attenção do legislador moderno é a da legislação do “zoning”, que é, numa cidade organizada, “Um padrão differencial, uma regulamentação que divide a cidade em districtos, impondo, sobre a propriedade privada de cada um desses disctrictos, restricções uniformes mas variaveis de um para outro”.

Diz o distincto urbanista em seu valioso estudo: “Em cidades onde não ha “zoning”, o cidadão que, á custa de sacrificios, muitas vezes, edifica a sua residencia, não sabe qual será o seu vizinho, se outra residencia como a sua, que não a desvalorize portanto, ou uma garage barulhenta, um armazem, um predio altissimo de apartamentos, por exemplo, com um muro de oitão de divisa, que roube de seu modesto lar a luz, o ar, o valor.”

é um aspecto facilmente encontradiço, em nossa cidade, esse da desordem de distribuição dos edificios e da irregularidade das construcções. Predios ha de nove, dez andares, ao lado de casas escarrapachadas ao rez do chão. Innumeros males, constituindo outros tantos problemas insoluveis para o legislador desavisado, surgem, prejudiciaes á collectividade pelo lado da hygiene, pelo lado da circulação, pelo lado da esthetica, etc. A politica do “zoning”, hoje victoriosa nos Estados Unidos, onde 70% da população urbana vivem protegidos pelas suas medidas, precisa ser diffundida aqui, e ser tomada em consideração para que os nossos problemas citadinos tenham solução inteligente efficaz.

Já que actualmente se cogita da organização de um plano para a cidade, plano de conjuncto, que deve abranger todos os problemas urbanos, não será mau que se vá preparando a opinião publica, em certos pontos intolerante, para que receba a intervenção do Estado na propriedade como coisa necessaria ao bem estar collectivo, ao desenvolvimento racional da cidade, á expansão da urbs moderna com todos os seus numerosos importantes problemas. E como a discussão dos problemas que o “zoning” irá resolver não é prematura nos dias que correm.

São as seguintes as vantagens do “zoning” resumidas pelo notavel urbanista norte-americano Morris Knowles, citado pelo dr. Luiz Anhaia:

1) ‒ Estimula um desenvolvimento urbano prospero e bem organizado;

2) ‒ Torna possivel um programa pratico de traçado e desenvolvimento do systema de vias de communicação e de todos os serviços collectivos, porque determina com antecedencia o uso e as necessidades dos districtos;

3) ‒ Impede a mudança rapida e prematura do caracter desses districtos;

4) ‒ Impede a intromissão de edificios improprios ou de usos improprios de edificios naquellas situações em que seriam prejudiciaes;

5) ‒ Estabiliza e protege valores e capitaes determinando de antemão o caracter das propriedades;

6) ‒ Simplifica e resolve o problema da circulação, regulando altura e volume dos edificios e portanto o congestionamento das ruas;

7) ‒ Assegura afinal melhores condições de hygiene e esthetica para o bem geral.

Diário Nacional, São Paulo, 11 de junho de 1929

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Pinheiros – Uma interessante história Paulista

Por muito tempo se suppoz que o proverbio “Aquelle anda em busca do ouro dos Pinheiros” tinha origem na tradicional povoação. Um manuscripto em latim, achado no concento de S. Bento, do Rio de Janeiro, esclareceu as origens do vago proverbio.
E assim se veio a apurar o seguinte:

Nos primeiros annos da fundação de S. Paulo havia duas familias igualmente poderosas ‒ os Ramalhos e os Pinheiros. Ambas andavam empenhadas em continuas lutas. E as cousas tinham tomado tal feição, que nenhuma pessoa dos dois partidos se atrevia, mesmo em pleno dia, a andar só. Ambas as familias disputavam a hegemonia. E em 1553 a preponderancia pertencia, de facto, aos Ramalhos, cujo primogenito, descendente directo do velho João Ramalho, era alcaide mór da Villa de Sto. André. O primogenito dos Pinheiros allegava, como direito á preponderancia da sua familia em S. Paulo, haver sido seu pae o primeiro a construir uma casa nos campos do Piratininga em seguida aos jesuitas.

Em vão, os jesuitas procuravam estabelecer a concordia entre as duas familias. Mas uns e outros respondiam, á maneira dos indios: “A arvore do esquecimento não póde crescer em chão regado de sangue”.

E assim as lutas entre os dois partidos proseguiam, continuas e sangrentas. As autoridades civis eram impotentes para manterem a ordem. Uma vez, havendo sido preso em flagrante assassinio um dos Pinheiros e sendo condemnado á forca, os adeptos da sua familia reuniram-se e com armas na mão, libertaram o sentenciado.

Em vão, tambem, o bom bispo soltava, uma atrás de outra, severas excommunhões.

Até que o governador achou um expediente que poz em pratica, por meio de um sacerdote habil, o padre Raphael de Macedo, companheiro de Anchieta. Consistia em facilitar as ambas as familias as expedições pelo sertão da capitania. O padre Raphael falou com os cabeças de ambas as familias. Excitou-lhes a cubiça. E elles deliberaram partir. Os Ramalhos apromptaram 75 homens. Os Pinheiros 80. E ambos os grupos bem armados, se arremessaram pelo sertão em busca de thesouros. Os Ramalhos desceram o Tietê. Os Pinheiros, seguiram por via terrestre, em direcção a Minas Gerais.

E a população de S. Paulo respirou, finalmente. Era o socego. era a ordem. Iam agora viver, pelo menos, alguns mezes em descanço.

Por muito tempo não se ouviu falar dos expedicionarios. Varias lendas começaram a correr. Diziam que tinham morrido ás mãos dos indios. Affirmavam que tinham ficado num paiz encantado. E os expedicionarios deram thema a diversas historias interessantes.

Assim se passaram tres annos, quando um dia, uma canoa abordou perto da serra de Mantiqueira, trazendo dentro de um homem de pelle bronzeada que pareceia um indio. Mas, pelos trapos que trazia, reconheceu-se tratar-se de um europeu. E logo o acontecimento se propalou por S. Paulo inteiro. No dia seguinte, o homem entrava em S. Paulo. Era José Maciel Cabral, pertencente á familia Pinheiros, que appareceu na praça publica rodeado dos seus partidarios.

Os Ramalhos tambem compareceram e exigiram explicações. Os Pinheiros, rodeando o seu chefe, recusaram-lhas. mesmo, estas eram bem lugubres, no dizer do sobrevivente. Todos haviam morrido atacados de doença e feridos pelos indios. Elle sobrevivera e sabia da existencia de minas de ouro como nunca se ouvira falar no Brasil.

Os Ramalhos berravam. Queriam que tudo fosse explicado. Os Pinheiros recusaram-se. E travou-se uma luta feroz entre ambos os partidos, sendo gravemente ferido o expedicionario sobrevivente, que mal podia andar.

O velho Pinheiros, com a espada traçando circulos de aço, combatendo sempre, em vão lhe pedia detalhes. O morimbundo não podia falar. E não os deu, porque morreu. Então, furioso, o Pinheiros precipitou-se de espada em punho sobre os adversarios. Uma estocada no coração prostrou-o. Sem chefe os Pinheiros, a luta terminou. Cada familia levou comsigo os feridos. Na manhã seguinte fizeram-se os funeraes. O segredo perdera-se. E os Pinheiros, em chefe, acabaram por perder a sua influencia, retirando-se de S. Paulo para Taubaté.

E assim terminou a velha luta das duas familias mais poderosas de S. Paulo antigo, dando origem ao proverbio.

Talvez dessa familia venha o nome do rio e aldea, porque em Pinheiros, no dizer de todos, nunca existiram pinheiros, existe um facto que comprove esse nome.

Diário Nacional, São Paulo, 19 de abril de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Uma história de horror

O que eu vou contar parecerá a muitos um conto phantastico, tirado de reminiscencias das leituras de Poe, Hoffman ou L’Isle Adam. Eu proprio, na tarde daquelle domingo, perguntei varias vezes a mim mesmo si sonhara, e só me convenci da verdade dois dias depois, quando a tragedia, presenciada em seu prologo terrivel já se consumara, ainda mais barbaramente do que suppunha.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Nessa época, eu cursava o terceiro anno de medicina e trabalhava no serviço do professor X em uma das enfermarias da Santa Casa. Aos domingos, era commum demorar-me depois da visita, e aproveitava a manhã livre de aulas para alguma pequena intervenção cirurgica onde treinasse a minha actividade profissional. Por isso, quando chegou á enfermaria o academico Z, naturalmente que me encontrou na sala, onde só havia, além dos doentes, um dos assistentes do professor.

Z, era nessa occasião, tambem interno do Intituto Pasteur, e por essa razão não estranhamos o motivo de sua chegada. Em seu serviço se apresentara um homem, com os sympthomas já manifestos da hydrophobia, e elle o acompanhara á Santa Casa para internal-o no “quadro forte”. Pediu o nosso auxilio, assegurando que, embroa francamente hydrophobo, o doente se continha. E nós tres descemos até á “sala do banco”, onde começa, verdadeiramente, a parte tragica de meu conto.

Lá, entre dois guardas, deparou-se-nos um homem ainda moço, trinta e cinco annos no maximo, alto, forte, e com uma expressão de doçura nos olhos que nunca mais esquecerei: talvez pelo contraste com o esgazeado que de minuto a minuto traduzia a sua agitação.

Descendo as escadas, soubemos da sua historia. Para salvar um cãozinho de morte cerca, arrancara-o de sob as rodas de um trem. O animal, sentindo-se preso á sua mão, mordera-o.

Haviam passado tres mezes quando, naquella manhã clara de domingo, os primeiros accessos de dispnéa e a crise consequente o assaltaram. O conhecimento de um caso de hydrophobia esclareceu-lhe o mal. E, elle, dentro do circulo do horror dessa revelação, não querendo ser nocivo além de desgraçado, sahira de casa, despedindo-se da mulher e de cinco filhinhos, dera-lhes todo o dinheiro que tinha ‒ uma migalha ‒ e procurara o Instituto, para que lhe amenizassem a morte, já que sabia não poderem jugular o seu mal.

Naquelle instante de lucidez em que o encontramos, esse homem singular, tão cruelmente ferido pelo destino, ainda agarrou as nossas mãos, em uma supplica:
‒ Si não me podem salvar, matem-me para não soffrer! E si quizerem, doutores, podem esperimentar em mim qualquer remedio. Talvez assim, possam depois evitar a outro a desgraça que vai me acontecer.

Eu e meus dois collegas mal podiamos guardar a frieza profissional deante daquelle quadro. Eu, mais moço, e menos affeito, ainda, aos espectaculos de dor, confesso que senti os olhos humidos de lagrimas. Foi por isso, talvez, que alvitrei ministrarmos um alivio. E, com tanto calor defendi essa misericordia, que o nosso assistente se resolveu a pedir uma ampoula de morphina.

Mas, nós não tinhamos pensado nas difficuldades de fazer o bem… Ordens severas, rígidas disposições administrativas, impediram nossa tentativa. Transportal-o até a nossa enfermaria, onde nosso poder era mais amplo, seria perigoso, dada a imminencia da crise.

Tentamos persuadil-o de que entrasse no “quarto forte”.
Nenhum de nós, comtudo, embora familizarizados com o velho hospital, conheciamos aquella dependencia. Ficava ella, então, e creio não ter mudado aos fundos do corredor que dá para a 1ª enfermaria, de molestias de olhos, no pavimento terreo. De quarto só tinha o nome. Era um cubiculo formado pelo angulo de duas paredes, a que outras duas quadraram. Nunca dessas ultimas, havia uma porta pequena, onde se abria, por fóra, um por fóra, um postigo. Ao fundo, uma janella, fechada, com pesados trincos, e o chão de ladrilhos, eis o que era.

Como era natural, o homem recusou entrar. Aquella jaula aterrorizou-o. Eu olhava tudo, pasmo de que se tratassem homens daquella maneira. Depois parecia-me sem a menor segurança a prisão, com as duas paredes construidas até a altura de dois metros apenas, e faceis, por consequencia de serem galgadas, maximé, por um louco ou um hydrophobo.

A situação complicava-se. Ao vis da “sala do banco” para o “quarto forte”, tivera elle de atravessar uma das vastas gallerias internas, abertas de espaço a espaço por portas em ogiva. Como é sabido, a luz e o ar incommodam, horrivelmente, o atacado de hydrophobia.

A inflammação terrivel da garganta, e a crescente necessidade de respirar causam-lhe, então padecimentos insupportaveis.
Eu vira aquelle homem, a cada porta que passava, e sob o clarão do sol e a corrente de ar, agarrar-se ás paredes em busca de sombra, subir por ellas ensanguentando as unhas na escalada impossivel.

Depois, já nos cercava um grupo de curiosos. Serventes brutaes e boçaes, rindo aparvalhados daquellas scenas, fugiam si o pobre delles se approximava. E elle, que ainda comprehendia, chorava e gritava que não fugissem que ainda estava bom, que não queria fazer mal a ninguem!

Nós estavamos parados em frente ao “quarto forte”, e eu deixei que elle repousasse a cabeça allucinada em meu hombro. Foi quando se chegou a irmã de caridade daquella ala da Santa Casa. Era já velha, magra, e seu sotaque francez tornara mais irritante a sua fala desgraciosa. Com pasmo de todos, a serva de Deus intimou-nos a enjaular o misero antes que uma crise o assaltasse. E sem que ouzassemos responder, a sua ordem foi comprida por dois serventes reforçados, que atiraram o homem para dentro do “quarto” e fecharam logo a porta.

Casa Maternal de Vila Clementino, autoria desconhecida, 1959c. (Foto sem ligação com o  texto)

Ainda ouvi os seus gritos. Mas, meus companheiros me levaram dali. Soube, mais, que o meu pedido para que lhe dessem comida e um lençol fôra desattendido. Podia se enforcar com o lençol, disseram, e a comida de nada adeantava porque o hydrophobo não come.

Como disse de inicio, eu mesmo pensei que tivesse sonhado. No dia immediato, porém, contei o occorrido ao meu professor de microbiologia. Elle manifestou desejos de saber como passara o homem. Creio até que tencionava tentar um tratamento, com dóses massiças de alcool, injectadas na espinha.

Na terça-feira, não sei porque, não fui á Santa Casa. Chegando a quarta-feira, logo cedo tomei informações.
O homem morrera. Naquelle domingo á tarde, conseguira saltar a parede baixa, e puzera em polvorosa toda a enfermaria. Fôra caçado a laço, e trancafiado de novo. Seu cadaver deveria estar sendo autopsiado.

Não parei ahi as minhas pesquizas. Indaguei o resultado da autopsia.
Ella positivara um caso de loucura. Aquelle homem não era um hydrophobo, mas um nevropatha que, enloquecido, se suppuzera atacado de hydrophobia. A lembrança de um caso, gravado em sua mente morbida, facilitara a reproducção do quadro symptomatico que um exame demorado talvez aclarasse. Isto não fôra possivel e elle morrera de loucura, ou de fome.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Ainda soube de mais um caso, do mesmo “quarto forte”. Uma menina, linda loira, de nove annos, que morrera hydrophoba, e que, no accesso, arranhara a cara de um medico piedoso, ao abrir este o postigo para observal-a.
O medico si tratara, em tempo, e evitara a molestia.

Mas, nunca mais pude esquecer aquelle louco, a quem devo a impressão mais dolorosa de meu contacto com a medicina.

Helio Silva

Correio Paulistano, São Paulo, 7 de abril de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira