Quando São Paulo chegará a ser assim?

O assumpto que tem merecido da imprensa os mais zelosos commentarios tem sido, de um anno para cá, aquelle que se refere á solução do problema de transito na cidade. Com o repentino augmento dos vehiculos em poucos mezes tivemos a opportunidade de assistir a um phenomeno imprevisto: o atravancamento do centro da cidade, que desde logo assumiu proporções asssutadoras e é hoje a chronica dôr de cabeça da nossa Inspectoria de Vehiculos. Longe, porém, de nos entristecermos com o problema, devemos nos alegrar, pois elle é o advento de uma éra de engrandecimento.

Os aspectos nova-yorkinos que ha dez annos nos deixavam perplexos – hoje não mais conseguem emocionar os nossos sentidos. Temol-os por aqui, já em formação promissora, aquelles phantasticos congestionamentos, e tanto esperamos, que já conhamos equalal-os um dia…

A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1926
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

O fim do mundo… (1926)

Na rua Augusta um bonde espatifou um automovel, por causa dos “nove pontos”…

O lamentavel estado do auto n. 2.258

Positivamente, si continuarmos como vamos, dentro em pouco, em S. Paulo, não mais existirá um homem vivo, mas em compensação, nem um automovel em perfeito estado. Todos os dias temos a registrar mortes e desastres gravissimos, quando não, por lastima, o escangalhar de um carro de luxo, que foi de encontro a um bonde ou a um pedestre sonso, que não sabe o seu lugar e pouca dá pela integridade de um auto de alto preço…

Agora, tambem os bondes deram para espatifar os automoveis. Ante-hontem, foi na rua do Gazometro, e hontem, na rua Augusta.

Por volta das 20 1/2 horas, rebocando a Chevrolet n. 3.317, descia o caminhão Ford n. 2.258, aquella via publica, guiado pelo motorista Nicolino Nogueira. Porque trazia os pharóes do reboque apagados, numa esquina, foi intimado a parar pelo “grillo” Americo Moura. A explicação foi immeditamente dada; os pharóes do reboque se achavam apagados porque o carro estava quebrado, e o Ford que o puxava tinha as suas luzes sufficientemente claras, para evitar qualquer desastre.

Essas explicações todas estavam sendo dadas, quando, subindo a rua Augusta, em desabalada carreira, surgiu o bonde 1.112, da linha “Augusta”, que avançou para o miseravel Ford, atirando com elle e mais o seu reboque, para o meio do passeio, completamente em pedaços.

Foi tão violento o choque, que o estribo do bonde saltou a uma distancia de dez metros!

Felizmente o “chauffeur” e o “grillo”, vendo a velocidade do bonde e sabendo que não podiam salvar os dois vehiculos, trataram de saltar rapidamente para o lado, nada mais soffrendo que um formidavel susto.

O desastrado motorneiro foi preso em flagrante.

A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 17 de dezembro de 1926
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

A Estação da Southern São Paulo Railway vai ou não vai abaixo? (1925)

SANTOS, 27 — Apesar de todo o barulho que se tem feito, a barraca que serve de estação á Southern São Paulo Railway, avenida Anna Costa, continua de pé. É um escarneo, realmente, o que se verifica. Numa das mais movimentadas arterias da cidade, não é natural que tal absurdo se verifique, o que têm interesses ligados á zona servida por aquella estrada.

Como já tivemos opportunidade de referir, a Camara Municipal, por diversas vezes, tem abordado o palpitante assumpto, sendo unanime a condemnação dos srs. vereadores ao [ilegível] barracão, que afeta a avenida Anna Costa. Ha pouco, ainda, o sr. vereador Alfaya propoz que fosse aquella estação demolida, sem mais formalidades, uma vez que a Southern tem desrespeitado diversas intimações da Camara.

No emtanto, nada tem adeantado as providencias tomadas.
A Companhia persiste no seu proposito de não demolir a estação. E lá permanece, para escarneo geral, aquella indecencia.

Não póde haver duas opiniões a respeito do assumpto. A Estação precisa ser demolida, por constituir um aleijão. Além do mais, as pessoas que precisam embarcar para Juquiá e outros logares, em dias de chuva, não tem, siquer, onde se abrigar.

Não póde, pois, persistir tal estado de coisas. É necessário que o barracão seja demolido. A Camara deve fazer cumprir as suas determinações.

A Gazeta, São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 1925
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Estação da Southern São Paulo Railway em 1925.

O Corso da Avenida Paulista (1928)

Todos criticam, todos falam do corso, mas vão… Compreendo essas contradições. O que eu não posso compreender, porém, é que, estando a Avenida Paulista no estado miserável em que se acha, crivada de buracos e depressões, ainda há quem se aventure a rodar por aquelle asphalto remendado, como a roupa de um pobretão. Principalmente, nesses dias de chuva, em que a gente se arrisca a levar uma ducha lamacenta, extra-programma…

Avenida Paulista em 1928. Cartão postal.
Avenida Paulista em 1928. Cartão postal.

Para neutralizar a censura dos outros, o chic aos domingos, agora, é fingir que não se está fazendo o corso… Os automoveis “chispam”, sáem da fila, apostam corrida. Quando se é obrigado a diminuir a marcha, então, afim de tornar áquelle fingimento mais evidente, nem se olha… Todos duros, impertigados, tesos, pensando em cousas longinquas. Quem quizer adquirir uma noção exacta do que seja o celebre “amuo” paulista o melhor que tem a fazer é ir ao corso. A impressão que elle dá é a de que todos estão treinando para acompanhar um enterro, em que só falta o defunto, mas em que, para compensar, quasi todos parecem mumias.

O que se nota de uns tempos a essa parte, na Avenida, é a existencia de vendedores de balões de gomma elastica. São uns meninões de buço, de catadura syria, muito morenos, terrivelmente mal vestidos. Parecem pobres que usam o artificio de venderem bolas coloridas para disfarçarem a profissão.

No meu modo de vêr essas criaturas deveriam usar um uniforme brando, á maneira dos vendedores de sorvete. O avental dar-lhes-ia um aspecto menos “pobre”, menos compromettedor da atmosphera aristocratica do corso. Por outro lado, tornaria os vendedores mais sympathicos. Não ha nada como a limpeza para attrahir compradores. Assim como estão, elles offerecem um contraste desagradavel para os olhos dos que vão á Avenida gozar de graça um prazer esthetico.

Já que a organização capitalista da sociedade não pode impedir a miseria, a pobreza e a sujeira, escondamos, pelos menos aos domingos, que são dias de festa, essas tristes e desolantes couzas.

SUB-URBANO (Pseudônimo de Guilherme de Almeida)

Diário Nacional, 12 de dezembro de 1928

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*A grafia original foi preservada em sua integralidade, respeitando as regras gramaticais vigentes à época da publicação.

O estadio paulista no valle do Pacaembú

Em entrevista ha dias concedida a um matutino, affirmou o major Fonceca uma cousa que merece contestação.

Não desejamos affirmar, em absoluto, que o d. presidente da Camara Municipal de S. Paulo tenha deixado escapar, conscientemente, uma inverdade.
Mas s. s., que no inicio do caso da pacificação andou por caminho errado, por não estar ha muito enfronhado nas tricas e futricas do esporte, naturalmente pela mesma razão deu àquelle jornal uma informação mal segura.

Fel-o quando affirmou que “si até agora o Governo do Estado não procedeu á construcção de um estadio, deve-se isto á dissidencia existente no esporta paulista. Posso assegurar que, logo que se tenha verificado a pacificação, serão tomadas as providências necessarias para a edificação desta obra que todos nós desejamos. O respectivo terreno foi doado pela Cia. City, em um optimo local do Pacaembú, já estando passada  a competente escriptura, o que não póde deixar duvidas a respeito do que affirmo”.

Si nos permitte o major Fonceca, vamos narrar o que de exacto ha sobre o assumpto.
Esse caso da doação de um terreno pela Cia. City, ao governo do Estado, para a construcção obrigatoria de um estadio, é mais velho do que se pensa, e não é o dissidio que tem impedido a sua effectivação.

Sinão, vejamos.

Já em 1921, nos ultimos mezes do anno, doou aquella companhia, dos seus terrenos situados no Pacaembú, uma area ao governo do Estado — na época presidido pelo dr. Washington Luis — para a construcção de um estadio.
O presidente do Estado incontinente nomeou para cuidar do assumpto uma commissão composta de tres membros: o dr. Benedicto Montenegro, presidente da Associação Paulista de Esportes Athleticos, na época a unica entidade dos esportes terrestres em S. Paulo; sr. Antonio Prado Junior, presidente do C. A. Paulistano, e o dr. Alfredo Braga, engenheiro-director das Obras Publicas da Secretaria da Agricultura.

Em uma assembléa da A. P. E. A. foi solicitada permissão para que essa entidade dispendesse até cem contos do seu patrimonio em propaganda, caução no thesouro e premios para as plantas do futuro estadio — o que por ella foi concedido.

A commissão organisada visitou o terreno, doado e fizeram-se varias publicações a respeito, havendo o governo promettido que a pedra inaugural do estadio seria lançada pelo centenario da proclamação da nossa independencia politica.
Não se sabe porque, infelizmente a ideia não foi levada adiante, e a commissão foi dissolvida.

Durante o anno passado o Palestra desejou obter o terreno do governo, ficando com a obrigação de fazer o estadio que construiria com o producto da venda do Parque Antarctica.
Mas o Paulistano tambem, na occasião, poz-se a desejar para si o terreno, para fazer o seu novo campo.
E a Companhia City fez questão de que o alvi-rubro tivesse preferencia no negocio. Assim, mandou consultar o presidente do E. C. Syrio sobre a permuta do campo do Jardim America, avaliado em 3 mil contos, pelo terreno do club Syrio, avaliado em 1000 contos, voltando naturalmente a differença o gremio do sr. Dabague.
O E. C. Syrio, achando difficil levantar cerca de dois mil contos, não acceitou o negocio.
Assim, o Paulistano ficou no Jardim America, o Syrio, na Ponte Grande, o Palestra resolveu fazer o seu estadio mesmo no Parque Antarctica, e o terreno do Pacaembú abandonado, aguarda melhores dias…

É esta a verdade sobre o caso.

Trecho extraído da Folha da Manhã, 13 de junho de 1929.
Fonte: Acervo Folha

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Legenda das imagens:

Esquerda: fotografia aérea da região do vale do Pacaembu. Sem data. Fonte: Acervo Cia City. http://www.ciacity.com.br/

Direita: Google Maps (2020)

 

A morte do carvalho do largo do Palacio (1929)

Succumbiu ao martyrio lento a que o submetteu o prefeito Pires do Rio ‒ Desappareceu, assim, um vegetal contemporaneo do velho São Paulo

Já não existe mais o velho carvalho do largo do Palacio. O machado da Prefeitura Municipal, empenhada cada vez mais em aformosear a cidade, remodelando tudo sob o criterio lunar do sr. Pires do Rio, deu afinal cabo da arvore vetusta, que ali no historico planalto nos falava de um outro S. Paulo, bem diferente do S. Paulo de hoje.

O bello e venerando vegetal, que era conhecido por “carvalho da Republica”, dava ao tranquillo recanto da cidade em que Anchieta ergueu o collegio dos Jesuitas, um ar mais tranquillo ainda, arredondando sobre o asphalto um circulo de sombra acolhedor e refrigerante…

Mas a administração do municipio, que admitte por ahi verdadeiros monstrengos urbanos, achou que o antigo carvalho era inconveniente e indesejavel ás leis do transito, pois que se levantava quasi ao centro da extincta via publica, que se chamou Travessa da Fundição…

Mas antes de destruir a arvore do largo do Palacio, o sr. Pires do Rio resolveu submettel-a a um lento martyrio. Isolou-a, com surdos rancores. Matratou-a, com podas irracionaes. Circumdou o tronco numa áreazinha de terra secca, além da qual era só asphalto e parallelepipedo…

Agora, o jardineiro que cuida das plantas rachiticas da esplanada governamental, recebeu ordem de dar o golpe de misericordia no pobre carvalho.

Lá está elle, pois, com os ramos decepados; o tronco escalavrado, na base, rente com o sólo; as raizes á mostra pela excavação recente que lá fizeram. Nada mais resta da arvore imponente, que representava uma verdadeira tradição paulistana. O que lá está, neste momento, desafiando a curiosidade dos transeuntes, é uma triste reminiscencia vegetal. Sem cópa, parece sem cabeça. E continúa de pé. Imaginem o que seria um homem sem cabeça, tentando dizer qualquer cousa aos que passam…

“CARVALHO DA REPUBLICA”

Sempre ouvimos dizer que a velha arvore era o “carvalho da Republica”. Da Republica por que? Teria se dado ali, sob a sua fronde amiga, algum acontecimento de vulto que se relacionasse com a Republica brasileira? Ou seria uma designação sugerida apenas pela proximidade nem sempre recommendavel do palacio do governo?

Para pôr tudo isto a limpo resolvemos ouvir qualquer pessôa conhecedora de S. Paulo de outros tempos e estudiosa de nossas cousas. Lembramo-nos do dr. Aureliano leite, advogado e jornalista nesta capital. Telephonamos-lhe, perguntando-lhe o motivo do nome popular “carvalho da Republica”, dado ao vegetal do largo do Palacio.

‒ Aquella arvore deve ser mais antiga que a Republica ‒ respondeu-nos o dr. Aureliano Leite. Lembra-me que em 1900 ella já era adulta, e o carvalho em 10 annos ‒ que era o quanto contava então a Republica, ‒ não attinge áquellas proporções. Eu, quando garoto, catei ao pé della muita bolóta, que ella então já produzia sem usura… Mas isto é pouco. Vou colher mais alguma informação a este respeito e o que houver lhe transmittirei com muita satisfação.

1908 (data do carimbo), sem editor. Fonte Delcampe
Cascata do Palácio, 1908 (data do carimbo), sem editor. Extraído de site de leilões.

O HISTORICO DA VELHA ARVORE

De facto, dahi a momentos o dr. Aureliano Leite nos convidava a uma visita á sua residencia, onde nos relataria o que tinha colhido com referencia ao extinto carvalho. Recebeu-nos com deferencia e nos disse:
‒ Para completar o que eu sabia a proposito da arvore do largo do Palacio me communiquei com o dr. Affonso de Freitas, que é, sem contestação, das maiores autoridades em historia paulistana. Trocando impressões, reavivando factos, chegámos á conclusão de que o nome de “carvalho da Republica”, dado ao mais bello especime vegetal do planalto em que assenta o palacio do governo de S. Paulo é uma criação fantasiosa. Elle foi mandado plantar pelo conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, quando presidente da provincia. Era contemporaneo da fonte que alie existe ou existia e do remodelamento do palacio e dos jardins da cidade.

Por esse tempo, apreciavam-se as plantas exoticas e só a esse criterio obedeceu o plantio de carvalhos, plátanos, etc., em S. Paulo, em detrimento de nossas arvores, como a quaresmeira, o ipê, o pau Brasil, e outras arvores, hoje grandemente aproveitadas.

O “assassinio” do velho carvalho ‒ proseguiu o dr. Aureliano Leite ‒ não resta duvida que foi uma injustiça e um acto de inconsciencia. Ele vinha de 86. Veiu de Portugal, mas se “naturalizou” paulista. Assistiu á evolução da nossa capital na sua fase decisiva. Numa cidade como esta, cuja transformação de aldeia provinciana para o centro cosmopolita que é hoje, foi processada fulminantemente, se devia conservar com maiores razões tudo o que diga do S. Paulo que desappareceu.

Creio que não vae nisto nem um pouco de sentimentalismo, mas uma noção muito pratica da necessidade de se conhecer o que fomos para maior certeza do que seremos… Ha raridades que devem entrar para o nosso patrimonio historico, a augmentar o cabedal dos nossos conhecimentos. A destruição da velha igreja dos jesuitas, por exemplo, que deu lugar á actual secretaria do Interior, não foi obra nem de intelligencia nem de patriotismo. Apesar de todos os argumentos em contrario, estou convicto de que haveria sempre modos de conserval-a como reliquia do passado piratiningano.

OUTROS VEGETAIS ANTIGOS DO LARGO DO PALACIO

Continuando na sua exposição observou o dr. Aureliano Leite: ‒ O carvalho que desappareceu não era o unico vegetal historico do largo do palacio. Nos fundos deste existia, e ainda restam tres exemplares, ‒ um renque de casuarinas mandadas plantar pelo então presidente da provincia, dr. Nabuco de Araujo, em 1853.

Já houve quem attribuisse o plantio da mais velha dellas ao padre José de Anchieta!

“CARVALHO DA MONARCHIA”

‒ Voltando ao carvalho ‒ disse o dr. Aureliano ‒ elle poderia ter sido chamado “Carvalho da Monarchia”, porque della foi contemporaneo e contemporaneo de S. Paulo velho.

De qualquer modo, sua abatida foi impiedosa.

Foram estas declarações do dr. Aureliano Leite, que se mostrou muito interessado pelo assumpto que nos approximou de sua pessoa.

Agora, sabendo da existencia das casuarinas de Nabuco de Araujo, o dr. Pires do Rio, por uma questão de coherencia, deve mandar abatel-as tambem.

Diário Nacional, 2 de janeiro de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*A grafia original foi mantida em sua integralidade.

Urbanismo em São Paulo: Zoning

QUEM CONSTRÓE A SUA RESIDENCIA NÃO SABE QUE ESPECIE DE VIZINHOS TERÁ

E A VIZINHANÇA INCOMMODA PÓDE ROUBAR-LHE O AR, A LUZ, O VALOR DO EDIFICIO…

A legislação do “zoning” na cidade organizada

zoning

O livro do dr. Luiz Anhaia sobre urbanismo, de que hontem demos noticia, traz interessantes soluções ao problema de organização das cidades, de que até agora temos prescindido. Entre essas soluções, uma das que merecem maior attenção do legislador moderno é a da legislação do “zoning”, que é, numa cidade organizada, “Um padrão differencial, uma regulamentação que divide a cidade em districtos, impondo, sobre a propriedade privada de cada um desses disctrictos, restricções uniformes mas variaveis de um para outro”.

Diz o distincto urbanista em seu valioso estudo: “Em cidades onde não ha “zoning”, o cidadão que, á custa de sacrificios, muitas vezes, edifica a sua residencia, não sabe qual será o seu vizinho, se outra residencia como a sua, que não a desvalorize portanto, ou uma garage barulhenta, um armazem, um predio altissimo de apartamentos, por exemplo, com um muro de oitão de divisa, que roube de seu modesto lar a luz, o ar, o valor.”

é um aspecto facilmente encontradiço, em nossa cidade, esse da desordem de distribuição dos edificios e da irregularidade das construcções. Predios ha de nove, dez andares, ao lado de casas escarrapachadas ao rez do chão. Innumeros males, constituindo outros tantos problemas insoluveis para o legislador desavisado, surgem, prejudiciaes á collectividade pelo lado da hygiene, pelo lado da circulação, pelo lado da esthetica, etc. A politica do “zoning”, hoje victoriosa nos Estados Unidos, onde 70% da população urbana vivem protegidos pelas suas medidas, precisa ser diffundida aqui, e ser tomada em consideração para que os nossos problemas citadinos tenham solução inteligente efficaz.

Já que actualmente se cogita da organização de um plano para a cidade, plano de conjuncto, que deve abranger todos os problemas urbanos, não será mau que se vá preparando a opinião publica, em certos pontos intolerante, para que receba a intervenção do Estado na propriedade como coisa necessaria ao bem estar collectivo, ao desenvolvimento racional da cidade, á expansão da urbs moderna com todos os seus numerosos importantes problemas. E como a discussão dos problemas que o “zoning” irá resolver não é prematura nos dias que correm.

São as seguintes as vantagens do “zoning” resumidas pelo notavel urbanista norte-americano Morris Knowles, citado pelo dr. Luiz Anhaia:

1) ‒ Estimula um desenvolvimento urbano prospero e bem organizado;

2) ‒ Torna possivel um programa pratico de traçado e desenvolvimento do systema de vias de communicação e de todos os serviços collectivos, porque determina com antecedencia o uso e as necessidades dos districtos;

3) ‒ Impede a mudança rapida e prematura do caracter desses districtos;

4) ‒ Impede a intromissão de edificios improprios ou de usos improprios de edificios naquellas situações em que seriam prejudiciaes;

5) ‒ Estabiliza e protege valores e capitaes determinando de antemão o caracter das propriedades;

6) ‒ Simplifica e resolve o problema da circulação, regulando altura e volume dos edificios e portanto o congestionamento das ruas;

7) ‒ Assegura afinal melhores condições de hygiene e esthetica para o bem geral.

Diário Nacional, São Paulo, 11 de junho de 1929

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Pinheiros – Uma interessante história Paulista

Por muito tempo se suppoz que o proverbio “Aquelle anda em busca do ouro dos Pinheiros” tinha origem na tradicional povoação. Um manuscripto em latim, achado no concento de S. Bento, do Rio de Janeiro, esclareceu as origens do vago proverbio.
E assim se veio a apurar o seguinte:

Nos primeiros annos da fundação de S. Paulo havia duas familias igualmente poderosas ‒ os Ramalhos e os Pinheiros. Ambas andavam empenhadas em continuas lutas. E as cousas tinham tomado tal feição, que nenhuma pessoa dos dois partidos se atrevia, mesmo em pleno dia, a andar só. Ambas as familias disputavam a hegemonia. E em 1553 a preponderancia pertencia, de facto, aos Ramalhos, cujo primogenito, descendente directo do velho João Ramalho, era alcaide mór da Villa de Sto. André. O primogenito dos Pinheiros allegava, como direito á preponderancia da sua familia em S. Paulo, haver sido seu pae o primeiro a construir uma casa nos campos do Piratininga em seguida aos jesuitas.

Em vão, os jesuitas procuravam estabelecer a concordia entre as duas familias. Mas uns e outros respondiam, á maneira dos indios: “A arvore do esquecimento não póde crescer em chão regado de sangue”.

E assim as lutas entre os dois partidos proseguiam, continuas e sangrentas. As autoridades civis eram impotentes para manterem a ordem. Uma vez, havendo sido preso em flagrante assassinio um dos Pinheiros e sendo condemnado á forca, os adeptos da sua familia reuniram-se e com armas na mão, libertaram o sentenciado.

Em vão, tambem, o bom bispo soltava, uma atrás de outra, severas excommunhões.

Até que o governador achou um expediente que poz em pratica, por meio de um sacerdote habil, o padre Raphael de Macedo, companheiro de Anchieta. Consistia em facilitar as ambas as familias as expedições pelo sertão da capitania. O padre Raphael falou com os cabeças de ambas as familias. Excitou-lhes a cubiça. E elles deliberaram partir. Os Ramalhos apromptaram 75 homens. Os Pinheiros 80. E ambos os grupos bem armados, se arremessaram pelo sertão em busca de thesouros. Os Ramalhos desceram o Tietê. Os Pinheiros, seguiram por via terrestre, em direcção a Minas Gerais.

E a população de S. Paulo respirou, finalmente. Era o socego. era a ordem. Iam agora viver, pelo menos, alguns mezes em descanço.

Por muito tempo não se ouviu falar dos expedicionarios. Varias lendas começaram a correr. Diziam que tinham morrido ás mãos dos indios. Affirmavam que tinham ficado num paiz encantado. E os expedicionarios deram thema a diversas historias interessantes.

Assim se passaram tres annos, quando um dia, uma canoa abordou perto da serra de Mantiqueira, trazendo dentro de um homem de pelle bronzeada que pareceia um indio. Mas, pelos trapos que trazia, reconheceu-se tratar-se de um europeu. E logo o acontecimento se propalou por S. Paulo inteiro. No dia seguinte, o homem entrava em S. Paulo. Era José Maciel Cabral, pertencente á familia Pinheiros, que appareceu na praça publica rodeado dos seus partidarios.

Os Ramalhos tambem compareceram e exigiram explicações. Os Pinheiros, rodeando o seu chefe, recusaram-lhas. mesmo, estas eram bem lugubres, no dizer do sobrevivente. Todos haviam morrido atacados de doença e feridos pelos indios. Elle sobrevivera e sabia da existencia de minas de ouro como nunca se ouvira falar no Brasil.

Os Ramalhos berravam. Queriam que tudo fosse explicado. Os Pinheiros recusaram-se. E travou-se uma luta feroz entre ambos os partidos, sendo gravemente ferido o expedicionario sobrevivente, que mal podia andar.

O velho Pinheiros, com a espada traçando circulos de aço, combatendo sempre, em vão lhe pedia detalhes. O morimbundo não podia falar. E não os deu, porque morreu. Então, furioso, o Pinheiros precipitou-se de espada em punho sobre os adversarios. Uma estocada no coração prostrou-o. Sem chefe os Pinheiros, a luta terminou. Cada familia levou comsigo os feridos. Na manhã seguinte fizeram-se os funeraes. O segredo perdera-se. E os Pinheiros, em chefe, acabaram por perder a sua influencia, retirando-se de S. Paulo para Taubaté.

E assim terminou a velha luta das duas familias mais poderosas de S. Paulo antigo, dando origem ao proverbio.

Talvez dessa familia venha o nome do rio e aldea, porque em Pinheiros, no dizer de todos, nunca existiram pinheiros, existe um facto que comprove esse nome.

Diário Nacional, São Paulo, 19 de abril de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Tiros no Cine Meia-Noite

Uma senhora, após disparar varios tiros num cinema, pelo que foi detida, suicidou-se na Central, precipitando-se de uma altura de quinze metros

A scena imprevista que hontem se registrou no cinema Meia Noite, á rua Formosa, não podia senão deixar em cada testemunha uma grande impressão de tristeza, tanto mais quanto, pouco depois, um desfecho de todo inesperado veiu ainda mais augmentar a violenta sensação de quantos vieram a conhecel-o.

Eram 22 horas, mais ou menos, quando appareceu na referida casa de diversões, denotando extrema agitação, a senhora Nair Werneck de Souza Lima, de 30 annos de idade, casada, moradora á rua Albuquerque Lins, 196.
Essa senhora, que ha algum tempo vivia separada do espozo, tinha uma filhinha de 11 annos de idade, talvez o pomo da discordia que persistia entre os conjuges, mesmo após a separação.

OS TIROS

Vendo a agitação daquella senhora desconhecida, o porteiro Manuel Januario de Carvalho, de 45 annos de idade, casado, residente á rua Biguá, n.º 41, achou prudente vedar-lhe a entrada.

31-05-1927 tiros no cine meia noite s
Manuel Januario de Carvalho. Fonte: Diario da Noite, 31-05-1927

Com essa prohibição mais ainda cresceu a agitação daquella mulher, de tão extranhas attitudes. Inesperadamente ella sacou de um revólver e olhando fixamente para alguem que permanecia no botequim do cinema, deu ao gatilho varias vezes. As successivas detonações produziram grande reboliço na casa e immediações. Numerosas pessoas trataram de sahir do local, precipitadamente, e, entre ellas, houve um homem que, desabando o chapéo e erguendo a gola do casaco, esquivou-se no meio dos populares alarmados.

A PRISÃO DA TRESLOUCADA

Entrementes varios populares, auxiliando um policial, effectuaram a prisão de d. Nair Werneck, que então, foi tomada de violenta crise nervosa chorando copiosamente. Procurando acalmal-a, os populares fizeram com que ella seguisse, sem mais escandalo, para a Central, afim de prestar declarações.

Desarmada, d. Nair Werneck ficou numa das salas da repartição, aguardando a chegada do dr. Gilberto de Andrade e Silva. Sua agitação não diminuira, antes, crescia progressivamente, exigindo a vigilancia dos guardas.

O INTERROGATÓRIO

Quando o dr. chegou, não lhe foi possivel interrogar immediatamente a mulher, devido ás suas condições nervosas. Ella estava impossibilitada de dizer a propria identidade, num alheiamento de doida, sempre soluçando amargamente, o que causava penosa impressão.

Também presente, o porteiro declarou que lhe parecia ter sido alvejado por d. Nair, o que, entretanto, não podia positivar. Ella disparou, depois, varios tiros visando alguem, no interior do predio. Os projecteis, entretanto, não attingiram pessoa alguma, felizmente.

O DESFECHO INESPERADO

Burlando a vigillancia que sobre ella exerciam, d. Nair Werneck, correu célere, para o parapeito da esplanada, precipitando-se sobre a pavimentação que fica a 15 metros abaixo.
Sua morte foi instantanea, em consequencia do esmagamento do craneo.

a gazeta
Cadáver de Nair Werneck no necrotério da rua 25 de março. Fonte: A Gazeta, 31-05-27.

O ESCLARECIMENDO DO FACTO

Com as investigação a que o “Diario da Noite” procedeu em torno do suicidio de Nair Werneck, perde o caso boa dóse de aspecto com o que se recobria a principio.
Está mais ou menos averiguado que d. Nair não procurou, no cinema, um encontro com o marido, com quem não mais se incommodava, pois ia ultimamente, levando existencia de aventuras romanescas.

Assim sendo, não se trata, como a principio parecia, de uma vingança premeditada por uma esposa abandonada contra o marido que a atirára á miseria e ao vilipendio.
Ao contrario, a suicida levava existencia folgada, tanto que era possuidora de joias valiosas, presentes de seus intimos.

Nair Werneck, acalentava, entretanto, a idéa de suicidio, talvez arrependida da vida a que se entregára, uma vez separada do esposo.
Prova-o um recado escripto por ella no verso da photographia de um de seus intimos, em que, entre outras coisas, dizia ella que, se ninguem quizesse tratar de seu enterro, uma vez que resolvesse suicidar-se, “elle poderia providenciar a respeito”.

A scena violenta que provocou no cinema, disparando tiros contra o porteiro, que é pessoa de bons costumes e de confiança, foi unicamente porque elle vedou-lhe a entrada na casa, visto Nair estar só, o que não é permittido ás senhoras que frequentam o cinema. Além disso, notou o porteiro as attitudes inconvenientes da moça, que, á viva força, queria entrar, promovendo o escandalo e insultando o emrpegado, para afinal, fóra de si, disparar a arma que trazia comsigo.

Diário da Noite, São Paulo, 31 de maio de 1927

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Morte no Carandiru

ENCONTRADO MORTO

Nas obras da nova Penitenciaria

1920-03-12 - S. Paulo Illustrado Penitenciaria
Obras da nova Penitenciaria. Fonte: S. Paulo Illustrado, 12 de março de 1920.

Pelos operarios que trabalham nas obras da nova Penitenciaria, foi hoje encontrado em uma choupana situada nos fundos daquella construcção, o cadaver de um desconhecido.
Immediatamente, o dr. João Baptista, delegado de serviço na Central, acompanhado do escrivão Bertrand e do dr. Libero, dirigiu-se para o local.

O cadaver, que ainda não apresentava rigidez, estava collocado em uma cama de ferro, sendo que, nos cantos dos labios, havia uma porção de sangue já coagulado.
Depois de diversas diligencias, o dr. João Baptista apurou que se tratava do preto Antonio Joaquim de Souza, de 22 annos presumiveis e que havia fugido da Santa Casa, onde fôra internado por soffrer de molestia incuravel.

Já por não apresentar lesão alguma o corpo e já por ter soffrido de grave molestia, presume-se que a morte de Souza tenha sido proveniente de falta de assistencia.
Apesar disso, o dr. Libero fará hoje um exame no cadaver, que foi transportado para o necroterio da policia.

A Gazeta, 20 de fevereiro de 1914

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.