Monumento à Independência: o projeto não escolhido.

O centenário da independência do Brasil mobilizou grandes comemorações e a concretização de diversas obras escultórias, em que artistas nacionais e estrangeiros competiam por suas encomendas. A mais emblemática é o Monumento à Independência, um dos maiores conjuntos escultóricos do país, instalado no Parque da Independência, no bairro Ipiranga, em São Paulo, local em que fora a declarada a Independência do país em relação a Portugal, no dia sete de setembro de 1822. Erguido por meio de concurso público internacional ocorrido entre 1919 e 1920, foi a peça central dos festejos centenários em São Paulo, que por meio dessa obra era alçada a competir com o Rio de Janeiro, capital do país, como sede simbólica das comemorações (MONTEIRO, 2018).

Entre os principais projetos participantes do concurso estava o de Roberto Etzel, brasileiro, arquiteto, e Luigi Contratti, italiano, escultor.

Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.

Uma matéria publicada na revista A Cigarra em 1920 nos fornece detalhes do projeto de Etzel-Contratti:

O projecto Etzel-Contratti, que a “Cigarra” apresenta aos seus leitores, é sem duvida , um dos mais interessantes do concurso que o Governo abriu para o monumento da Independencia, devendo ser brevemente franqueado ao publico.

Imaginada e desenhada pelo jovem arquiteto paulista Etzel, apresenta originalidade, seja quanto á concepção geral, na qual sobresahem significação e sentimento de eminente sabor nacional, como quanto á forma plastica complexa, traductora do ideal expresso.

É evidente tambem a “monumentalidade, que desabrocha do massiço unico que forma o conjuncto, bem como a harmonia das linhas e blocos com que a esculptura e arquitetura, bronze e granito se entrelaçam deixando perceber bello effeito polychromo.

Orçado em mil contos, o projecto Etzel Contratti canta no bronze o drama secular que creou a nossa Independencia, universalmente considerada, abrangendo a lucta contra a força bruta da natureza inerte (civilisação) e a lucta contra os invasores, despotas, dominadores (política). É a glorificação do passado creador da Independencia, onde são enaltecidos os leitos heroicos capitaes e característicos da lucta secular, synthetisada nos episodios mais belos que a historia registra. Civilisação: a cathechese, (o inicio da lucta), os Bandeirantes (pioneiros); a Fundação do Rio de Janeiro (apotheose); politica: o genio brasileiro que meditou, a alma que aspirou, o braço que luctou e a Lei brasileira sanccionadora do accontecimento, interpretados plasticamente com a glorificação de José Bonifácio, e dos epicos episodios de Tiradentes, dos “Independentes do Norte” e do grito do Ypiranga. Completa este maior bloco de bronze que a historia da esculptura regista a glorificação do valro dos nossos soldados, manifestado nestas luctas travadas nos sertões e nos mares.

No alto, o bronze canta a consequencia da Independencia, glorificação do futuro almejado o PROGRESSO da nação republicana e democratica, enaltecendo a força complexa e natural que crea o passo firme, vigoroso, tenaz, irresistivel, ascendente, do Brasil para o seu alto destino.

O autor, por considerações de ordem esthetica, historica, politica, social, economica, symbolica, literarias explicados num recente opusculo publicado, traduziu plasticamente a sua concepção representando um allegorico carro triumphal, tirado por touros e circumdado pelas forças vivas da democracia base da vida social, pelas forças vivas naturaes, base da vica economica, fontes e garantias do progresso.

Altiva e soberana domina como imagem tutelar e estatua colossal da Independencia.

A nossa maravilhosa naturesa é enaltecida com as figurações dos Rios (Amazonas e Paraná) que dão pretexto para as 2 fontes lateraes, por onde pasará o “Ypiranga”, e da fauna e da flora brasilica os autores tirarão os elementos indispensaveis para uma digna e nacional decoração.

Simples, quasi austeras, as linhas architectonicas no monumento tornam-se caprichosas na systhematisação que tratá tambem, em grupos bronzeos a glorificação da Unidade Nacional.

Maquete do monumento e da sistematização. Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.
Maquete do monumento exposto no Palácio das Industrias. Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.

Apesar da grandiosidade do projeto proposto por Etzel e Contratti, ele não foi o vencedor. O concurso foi vencido por Ettore Ximenes, que apresentou um projeto de características neoclássicas, que tinha em sua face principal um grande alto relevo em referência ao quadro “Independência ou Morte” de Pedro Américo.

Ettore Ximenes, Painel Independência ou Morte, Monumento à Independência, 1922. São Paulo.
Fotografia: Michelli C. S. Monteiro.
Pedro Américo, Independência ou Morte!, 1888, 4,15 × 7,60, Acervo do Museu Paulista da USP.
Projeto de Ettore Ximenes. Fotografía: Zanella, São Paulo.

Referências:

Monteiro, Michelli Cristine Scapol. “Mercado e Consagração: o Concurso Internacional do Monumento à Independência do Brasil”. H-ART. Revista de historia, teoría y crítica de arte, n.o 4 (2019). http://dx.doi.org/10.25025/hart04.2019.05

Revista A Cigarra, edição 131, ano 7, 1920. Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

A origem do obelisco do Piques

[…] em face da documentação existente, não pode haver divergencia quanto á origem e significação do monumento do Piques: a pyramide foi erecta para comemorar o zelo ao bem publico demonstrado pelo triumvirato que governou São Paulo entre 21 de agosto de 1813 a 8 dezembro de 1814, composto, na phrase meticulosa de Daniel Muller, de “S. Exc. e Senhorias” d. Matheus de Abreu Ferreira, ouvidor d. Nuno Eugenio de Lossio e intendente de Marinha Miguel José de Oliveira Pinto. Em agosto de 1814 o triumvirato governativo incumbiu o, então tentene coronel Daniel Pedro Muller de construir a chamada “Estrada do Piques” que era o inicio da estrada de Pinheiros, construcção essa que deveria consistir principalmente na captação de uma nascente que do alto do Anhangavahy se espraiava na baixada até a Ponte de Lorena, uma muralha de arrimo e nivelamento da já então chamada ladeira do Piques, hoje rua Quirino de Andrade.

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Fotografia: Paredão do Piques, Ladeira da Consolação e Rua da Palha (Hoje 7 de Abril), Militão Augusto de Azevedo, 1862. Pintura: Piques 1860, Henrique Manzo, 1945.

Não se pode affirmar se a idéa do levantamento do obelisco, do monumento propriamente dito, partiu do governo ou do constructor Muller, pois os documentos divulgados nada esclarecem; – o que é certo é que tanto elle como as demais obras incluidas no triangulo da Memoria foram executadas ás pressas, de atropelo, porquanto, tendo sido concluidas em dezembro de 1814, ainda em fins de outubro do mesmo anno não haviam sido começadas.

Na primitiva construcção, o obelisco emergia de uma meia bacia de cimento, sempre cheia de agua e hoje entupida para servir de piso em redor da grande agulha de granito: da bacia a agua era recolhida por um aqueduto de alvenaria ao reservatorio, situado no vertice do triangulo voltado para o lado do Piques, onde os moradores da redondeza se iam abastecer.

Trecho extraído de palestra realizada por Affonso A. de Freitas na 17ª sessão regimental do Instituto Histórico (IHGSP) de 1919, publicada no Correio Paulistano em 21 de outubro de 1919.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Enchente de 1919: Relato

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Efeitos da enchente [rua não identificada]. Fonte: A Vida Moderna, 12 fev. 1919.
“Logo no início de janeiro de 1919, os temporais vieram com uma violência implacável. As enchentes foram torrenciais. Ao redor da área de confluência dos rios Tamanduateí e Tietê, densamente povoada, as consequências do dilúvio foram calamitosas. O cronista ‘P.’ se decidiu a fazer a crônica da tragédia.

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A Rua Tapajós, transformada em “grande canal”. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Fui ontem com alguns amigos, ver a enchente do Tietê, sobre a qual corriam pavorosas versões na cidade, chegando-se até a dizer que a Ponte Grande viera abaixo… Fomos, como toda gente por mera curiosidade. Há tempo não se registrava uma enchente assim!

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Um aspecto da Avenida da Cantareira. Fonte: Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

O tipo de gente que acorreu para ver o mar de água barrenta, que como por um nefando prodígio se formara num instante ao sopé da cidade, era da mais variada, como se podia notar pelos seus recursos de acesso. Parte fora de carro, parte de bondes e outros a pé. Todos se apertavam e se acotovelavam no alto da Ponte Grande, que afinal e felizmente não ruíra, para alcançar o maior panorama possível. Dali, ‘P.’ continua a narrar suas impressões.

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De volta para a casa, depois do trabalho. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Cansados os olhos da água monótona, a correr violentamente sob a ponte e a se espalhar até muito longe, a gente se arranca, afinal, a esse espetáculo.

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O serviço de transportes na Rua Tapajós. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Assim os magotes de espectadores vão se revezando na balaustrada da Ponte Grande, como na galeria de um grande teatro ao ar livre, num entre-e-sai fervilhante. Mas a missão de ‘P.’ é de outra natureza, e ele se demora pelos arredores.

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Nas imediações da Ponte Grande, milhares de pessoas desabrigadas. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Eu não me dou por satisfeito. Quero ver ainda umas ruas vizinhas à Ponte Grande e à Ponte Pequena, onde habitam famílias das mais pobres e humildes da cidade. Mal dou alguns passos porém e sou abordado por um italiano que não sei por que me reconheceu. E sem que lhe perguntasse nada, o pobre homem conta-me a sua desgraça: a casa inteira invadida pelas águas, todos os trastes perdidos – até 120 mil-réis que guardara tão bem guardado! Para cúmulo, ainda a mulher está doente, desde que lhe nasceu o quinto filho, e todos estão desabrigados sem saber para onde ir, nem o que comer… – Che disgrazia, signore! Che disgrazia… E, ao saber que muitas famílias foram colhidas pela mesma desventura, e que em algumas houve mesmo mortes – só então me arrependo da despreocupação e da indiferença com que há instantes olhava a enchente, e só então me revolto contra as troças divertidas que os curiosos faziam na Ponte Grande e até contra os lindos versos de Alberto de Oliveira que um de nós murmurava tranquilamente, sem um pensamento para os desgraçados…

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Um aspecto na Ponte Pequena, por onde se pode avaliar o volume das águas. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Também a autoridade pública ignorava por completo a sorte dos flagelados. À parte uma ou outra iniciativa dos bombeiros para salvar alguns indivíduos ou famílias totalmente ilhadas, ou tentar resgatar vítimas de desabamentos, nada mais havia. Nenhum plano de prevenção das enchentes ou para minimizar suas consequências, nenhum socorro ou acolhimento provisório dos desabrigados, nem rações de alimentos, nem roupas, nem banhos, nem vacinas, nada, simplesmente indiferença. Como se o sinistro houvesse acontecido em outro lugar do globo, ou num outro tempo remoto, envolvendo gente completamente estranha e distante […].”.

Uma excelente matéria a respeito das enchentes de 1919 pode ser conferida no site Sampa Histórica, do nosso colega Felipe Alexandre Herculano.

Fontes:

Texto
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.29-30.

A crônica citada por Sevcenko e assinada pelo cronista “P.” pode ser conferida em:
A Enchente. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 fev. 1919. Coisas da cidade, p.5.

Imagens

As enchentes em S. Paulo, A Cigarra, São Paulo, 15 fev. 1915, p.19.
Effeitos da enchente, A Vida Moderna, São Paulo, 12 fev. 1919, p.24.