Para melhorar o tráfego na Av. Rangel Pestana (1948)

Imponente viaduto de concreto transporá o leito da ferrovia

Terá a largura da artéria e 220 metros de comprimento, sendo de suave elevação – Apresentar-se-á num bloco de grande suntuosidade, sem causar a menor dificuldade de ordem técnica

O sr. Pedro de Andrade Lemos, chefe dos Serviços de Eletrificação dos Subúrbios de S. Paulo projetou uma forma de solução para o tradicional problema do Brás, as porteiras da avenida Rangel Pestana.

Na tarde de ontem o prefeito Paulo Lauro reuniu em seu gabinete os representantes da imprensa da Capital a fim de demonstrar a maneira de resolver o grave problema de trânsito e a ligação entre o Brás e o centro da cidade de S. Paulo. Exibindo mapas e fotografias da “maquette” do projeto que mandara realizar, esclareceu que será ele prontamente enviado à Câmara Municipal, como medida preliminar para a sua execução.

UM VIADUTO DE CONCRETO

Não quis os sr. Paulo Lauro que S. Paulo assistisse mais uma passagem de aniversário sem que tivesse sido encontrada uma fórmula definitiva para esse tão velho e grave problema. Dessa forma apressou a elaboração do projeto, agora concluído. S. Paulo, cidade de viadutos e das largas e novas avenidas, terá em breve mais um grande viaduto de concreto, que, com rampas em suave elevação, transporá o leito de ferrovia, em toda a largura atual da avenida Rangel Pestana.

Nada menos que 220 metros terá a nova realização arquitetônica, e com a largura de 30 metros e um alinhamento a outro. O Viaduto “Adhemar de Barros”, pois esse será o seu nome de batismo, terá três vãos livres, sendo um central, de 22 metros de largura e seis de altura, abrangendo todo o espaço presentemente utilizado pela Estrada Santos-Jundiaí, e dois vãos de 17 metros de largura por 8 de altura, para o trânsito das ruas laterais e paralelas ao leito da estrada.

NENHUMA DIFICULDADE DE ORDEM TÉCNICA

Em seguida o governador da cidade passou a examinar a questão de problemas de ordem técnica que por ventura deveriam surgir. Explicou pormenorizadamente à reportagem, que a forma de solução para o problema não apresenta senão vantagens: não dificultará nem impedirá o sistema de redes de força elétrica dos trens e bondes; não modificará o atual sistema de transportes naquela artéria, pois os veículos poderão transpor com facilidade as rampas suaves, sem interrupção do tráfego; nenhum problema surgirá no que diz respeito ao sistema de águas pluviais e esgotos, e isso em virtude de poder ser o viaduto aterrado nas duas terças partes iniciais, a leste e oeste, dado o seu declive de 7,5 por cento, apenas; seus três vãos livres de abertura mínima de utilização exigem estrutura simples e permitir a construção das dependências laterais em alvenaria de tijolos e colunas de concreto, independentes do sistema do conjunto.

MAIS SUNTUOSIDADE E BELEZA AO LOCAL

Prosseguindo na sua exposição, disse o sr. Paulo Lauro que o Viaduto “Adhemar de Barros”, além da sua grande utilidade, concorrerá para dar maior suntuosidade e beleza ao local, pois, com as desapropriações das faixas laterais, poderá ser visto em conjunto e em toda a sua grandeza, como acontece com o Viaduto do Chá. Os terrações das dependências laterais do viaduto constituirão um excelente mirante sobre a zona baixa da cidade.

Falando das vantagens da utilização do Viaduto “Adhemar de Barros”, salientou o prefeito da Capital que as faixas laterais de 30 metros, ocupando terrenos a serem desapropriados, viriam a facilitar o acesso de veículos à Estação Roosevelt, assim como o retorno de veículos dentro das leis do trânsito dirigido. A largura do viaduto, igual à da Avenida Rangel Pestana, não apresentaria congestionamento, dando livre transposição aos veículos e pedestres.

Além de todas as suas vantagens, acrescentou o sr. Paulo Lauro, há a possibilidade da instalação de um posto de Radio Patrulha e Assistência Pública na parte inferior, para atender às necessidades da zona além-ferrovia, de uma agência de Correios e Telégrafos, agência de informação dos sistemas de transportes estadual e urbano, e instalações sanitárias, amplas e higiênicas.

Diário da Noite, São Paulo, 24 de janeiro de 1948.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

O Caso das Máscaras de Chumbo

No dia 20 de agosto de 1966, no Morro do Vintém, região próxima a Niterói, os corpos de dois homens em estado de decomposição foram encontrados. As circunstâncias bizarras que permeiam os últimos dias de vida de Miguel José Viana e Manuel Pereira da Cruz, bem como o local onde seus corpos foram encontrados e as investigações acerca de sua morte, eternizaram o Caso das Máscaras de Chumbo como um dos maiores mistérios da história do Brasil no século XX.

A seguir, apresento-lhes um texto composto por uma coletânea de reportagens e fotografias que abordaram o caso à época dos acontecimentos.

Miguel e Manuel

A asma tomou conta do corpo do menino Miguel José Viana quando ele ainda cursava o primário. A doença, que lhe proibia qualquer esforço físico, fê-lo arredio, distante dos colegas quando fora da sala de aulas. Sempre que tentava juntar-se aos outros meninos, nas brincadeiras do recreio, o esforço lhe provocava uma nova crise asmática. Seu divertimento era a leitura das revistas de histórias em quadrinhos, cujos heróis começaram a povoar a sua infância, isto até os doze anos. Quando ainda não havia completado os catorze, o pai surpreendeu em seu quarto, numa das gavetas da pequena escrivaninha, vários envelopes selados: é que o filho de há muito passara a receber lições por correspondência de uma “escola de eletrônica” de São Paulo. Lições que eram pagas com o produto das revistas que, depois de lidas, o menino Miguel ia vender, por metade do preço, na calçada da igreja principal de Campos. Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Foi anos depois, quando estagiava numa empresa de aparelhos elétricos e eletrônicos, no Rio, que Miguel conheceu Manuel Pereira da Cruz. A amizade foi rápida — e seria duradoura. Com o transcorrer dos anos, ambos se tornaram profissionais conceituados, em Campos, e sua importância cresceu quando a cidade começou a retransmitir os programas de televisão das emissoras do Rio. Ampliava-se, assim, o campo de atividades dos dois técnicos. Quando se casaram, as respectivas mulheres se tornaram também amigas íntimas. Era como se a família de um fosse o prolongamento da família do outro.

Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana

Harmonia absoluta, entendimento completo. Apenas uma ou outra divergência, quando Miguel mostrava-se inclinado a converter-se ao espiritismo, de que seu pai era crente fervoroso e obstinado. Além de “seu” Amaro, seu pai, Miguel passou a sofrer, nos últimos anos, a influência de um outro kardecista, Hélcio Correia Gomes, que dentro em pouco se fazia íntimo dos dois. A ascendência do espírita Hélcio sobre seu marido começou a preocupar não apenas D. Elza, mas também D. Neli, mulher de Manuel Pereira da Cruz. Reclamavam ambas, particularmente, contra o fato de Hélcio entrar a qualquer hora na casa dos amigos, mesmo quando estes ali não se encontravam.

Muitas vezes, Miguel, Manuel e Hélcio demoravam-se conversando horas seguidas, e já então, como D. Elza certa vez surpreendera, a conversa não era mais apenas sobre problemas de eletrônica, mas sobre assuntos espíritas. Por várias vezes, nessas conversas, fôra feita referência, por Hélcio e Miguel, ao “planeta de muitos sóis”; e noutra ocasião, Miguel disse ao pai:

Estou certo de que a Terra não é o único planeta habitado. Muitos outros planetas também o são. Atualmente venho fazendo estudos a respeito e estou cada vez mais convicto de que as possibilidades de o homem chegar a um outro mundo habitado são muito maiores e mais fáceis do que se imagina.

Miguel José Viana

As longas conversas dos três — que sentiam a hostilidade de D. Elza e D. Neli — já não se realizavam na casa de Miguel ou Manuel, mas no jipe dos dois técnicos, estacionado em frente à residência de Miguel. E a confabulação noturna muitas vezes varava a noite, até o nascer do sol. Instintivamente, D. Elza e D. Neli começaram a perceber que o plano ou projeto, o que quer que fosse que Miguel, Manuel e Hélcio traziam na cabeça, estava prestes a se consumar.

A explosão de Atafona

Em 13 de junho de 1966, uma forte explosão, na residência de Manuel, aumentou ainda mais a inquietação das duas mulheres. A formidável explosão, acompanhada de intensa luminosidade, registrada na praia de Atafona foi ouvida num raio de dez quilômetros. E tal foi o seu impacto que chegou a sacudir o prédio da Prefeitura de São João da Barra, cinco quilômetros além.

Sabe-se, mais, que, poucos dias antes da explosão em Atafona, a bela Isabel, irmã de Miguel José Viana, deste ouviu a mesma frase que ouviria dois meses depois, poucos dias antes dos acontecimentos no Morro do Vintém. A frase é esta:

Muito em breve vou cumprir uma missão muito importante. Mas é segredo que não posso revelar a ninguém.

Miguel José Viana

Sim, alguma coisa estava prestes a acontecer. Alguma coisa da maior seriedade. É o que mostravam a fisionomia grave de Miguel e Manuel, a presença já agora arredia de Hélcio e, também, as misteriosas experiências que horas seguidas, dias seguidos prendiam Miguel e Manuel no pequeno laboratório improvisado na casa do primeiro. Enquanto isso, faziam-se mais assíduas as visitas de Manuel Pereira ao Centro Espírita Bom Jesus, em Campos. E na sua estante, os livros sobre eletrônica já se misturavam às obras de Allan Kardec e Chico Xavier.

Foi na sexta-feira, 12 de agosto, que Fernando José, vizinho e velho amigo de Miguel e Manuel, surpreendeu-os, na oficina instalada na casa do último, martelando um cano de chumbo. Curioso, perguntou de que se tratava. A princípio, os dois técnicos guardaram silêncio. Mas, ante a insistência do vizinho, lhe dão uma resposta um tanto nebulosa:

Estamos criando qualquer coisa que evitará o fim do mundo, em 1968, quando do grande ciclone que arrasará grande parte do nosso planeta.

E nada mais disseram. Naquela noite mesma, quando D. Neli foi à oficina, encontrou Miguel e Manuel provando diante de um espelho alguma coisa que se assemelhava a máscaras de chumbo.

Ida a São Paulo

A partir de então, os acontecimentos se precipitam. Na terça-feira, dia 16, Manuel acorda D. Neli, metade da noite, e lhe informa da viagem que fará a São Paulo, no dia seguinte, em companhia de Miguel. E lhe pede que conte o dinheiro — dois milhões e trezentos mil cruzeiros — e o acomode num pequeno saco de plástico, destinado à compra em São Paulo de um Volkswagen.

Precisamos, eu e Miguel, de um carro para melhor atender aos fregueses. Vamos comprá-lo em São Paulo.

No dia seguinte, 17, os dois seguem para a rodoviária, no centro de Campos, onde tomarão o ônibus das 9 horas. Lá já se encontra Hélcio Gomes, que chegara minutos antes. Nem Miguel nem Manuel levam qualquer bagagem, fato que deixou intrigada D. Neli. E é sem bagagem que ambos chegam a Niterói, na tarde daquele mesmo dia.

O roteiro de Miguel e Manuel em Niterói, no dia 17, já foi o seguinte:

Às 15 horas, ambos estiveram na Casa Brasília, um armarinho da Rua Coronel Gomes Machado, onde adquiriram duas capas impermeáveis, para chuva, e pelas quais pagaram Cr$ 18.000. Às 15h30m, entram na loja de ferragens de Ernane Carvalho Filho, conhecido de Manuel, e ao qual informam da viagem a S. Paulo — não mais para comprar o “fusca”, mas material para aparelhos de televisão, que não é encontrado no Rio. Quando Ernane tenta prolongar a conversa com os dois técnicos, Manuel despede-se, rápido:

Até outra vez, meu caro. Estamos com pressa.

Manuel Pereira da Cruz

Às 16h30m, os dois entram no Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, e são atendidos por Lourdes, a bela adolescente filha do dono da casa, a quem pedem uma garrafa de água mineral, bem gelada. Nenhum dos dois bebe da garrafa, ali no bar, levando-a consigo e prometendo devolver depois o casco. “Os dois pareciam muito nervosos”, dirá mais tarde aos policiais a jovem Lourdes.

São exatamente 16h35min quando Miguel e Manuel deixam o Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, em Niterói. Não seriam mais vistos, a não ser três dias depois, quando seus corpos foram encontrados bem no alto do Morro do Vintém, conforme a denúncia anônima que o Comissário Oscar recebeu pelo telefone na tarde chuvosa do dia 20 de agosto.

Corpos encontrados

Era uma tarde de sábado, 20 de agosto. Na pequena sala dos detetives do 2.° Distrito Policial, em Niterói, o cigarro esquecido no canto da boca, os pés estendidos sobre a escrivaninha, o Comissário Oscar, velho e experimentado policial, Durante todo o dia, o plantão se arrastara monótono, e assim prometia continuar noite adentro, quando, de repente, o telefone tocou. Sem pressa, o comissário recolheu os pés, jogou a ponta de cigarro no chão, amassando-a com o pé, e atendeu:

— Segundo Distrito.
— Da delegacia, não é? Pois tenho uma informação a dar. Dois homens foram assassinados no Morro do Vintém, bem lá no alto. Um deles é um famoso jogador de futebol.
— Mas, onde exatamente? Qual jogador? Alô? Quem está falando? Alô!…

Como resposta, o comissário ouviu o ruído característico do telefone que acabara de ser desligado. Durante meia hora, aguardou inutilmente que o aparelho voltasse a tilintar. Como o aparelho não voltou a tocar, decidiu ir até o local indicado pelo informante anônimo. Aos policiais que o acompanhavam disse apenas que se tratava de uma diligência de rotina no alto do Morro do Vintém. Mas galgar o morro era proeza que o comissário viu logo ser-lhe impossível. A subida é íngreme. A solução era apelar para o corpo de bombeiros.

Morro do Vintém, Niterói.
Morro do Vintém, Niterói.

Quando os bombeiros alcançaram o cume do morro — “bem lá no alto”, após uma caminhada de mais de uma hora, conforme a indicação telefônica (e também de um policial que fora informado por garotos que empinavam pipa na região e avistaram os rapazes) — encontraram, de fato, os corpos de dois homens que os primeiros indícios (começo de putrefação) mostravam terem sido mortos havia já várias horas. Os mortos estavam bem vestidos, trajando ternos, sapatos de sola de borracha, gravatas, e sobre ligeiramente cobertos pelo mato, e nenhum deles apresentava qualquer sinal de violência. Sobre eles, também estavam as duas capas impermeáveis, adquiridas dias antes na Casa Brasília. A princípio, evidenciou-se que não se tratava de um latrocínio, pois os mortos traziam consigo, intactos, além de razoável soma em dinheiro, os seus pertences: óculos, alianças de ouro e relógios de pulso. No entanto, o dinheiro encontrado não chegava a 10% da quantia com que os dois rapazes deixaram Campos. E o maior mistério, um detalhe insólito: junto aos corpos, ao lado de uma garrafa de água mineral Magnesiana, e um pacote com duas pequenas toalhas., achavam-se duas máscaras de chumbo grotescamente modeladas.

Os corpos no momento em que a perícia chegou ao local

Também foi encontrado no local um lenço comum, branco, com as iniciais A.M.S. bordadas. Um outro problema, descobrir seu dono. Fósforos, cigarros, escova de dente e um jornal do dia, também foram encontrados no local.

Recolhidas nos bolsos interiores de suas vestes, as carteiras deram a identidade dos mortos: Miguel José Viana, de 34 anos; e Manuel Pereira da Cruz, de 32 anos.

Bombeiros verificando os corpos

Além das máscaras, foram encontrados com os cadáveres do Morro do Vintém algumas estranhas anotações, inclusive equações que à primeira vista, ao entendimento leigo, pareciam símbolos cabalísticos. Uma dessas anotações dizia:

Às 16h30m — estar no local determinado.
Às 18h30m — ingerir cápsulas. Após efeito, proteger metade do rosto com máscaras.
Aguardar sinal marcado.

Noutro pedaço de papel, vinha escrito:

Domingo, uma cápsula após a refeição.
Segunda-feira, uma cápsula ao amanhecer, em jejum.
Terça-feira, uma cápsula após a refeição.
Quarta-feira, uma cápsula ao deitar.

As anotações misteriosas

Um terceiro papel trazia escrito este lembrete: “Comprar tubo de linha de 500 metros.” Encontrou-se, ainda, ao lado do corpo de Miguel, uma grande folha de papel prata-azul, idêntico aos usados nas embalagens de chocolate; e também tabelas comparativas de valores de equações eletrônicas. Uma delas era esta:

(Tal equação foi, mais tarde, identificada por um matemático como a expressão básica da Lei de Ohm, representando a energia movida por uma resistência).

Uma segunda fórmula, encontrada no mesmo local, vinha assim expressa:

É obvio que se trata de uma agenda com instruções para os rapazes. O “ingerir cápsula” chegou a confundir os entendidos, que acreditavam ter Miguel e Manuel tomado algum remédio, que poderia ter causado suas mortes, tendo para isso levado a garrafa de água mineral. Mais um mistério para ser resolvido: a letra em que foi escrita esta pequena agenda não pertence nem a um nem a outro dos dote rapazes mortos. Teria sido um terceiro personagem o autor deste bilhete?

As máscaras estavam lá. Típicas para proteção dos olhos contra luz intensa. Talvez calor exagerado ou mesmo radiação. As capas impermeáveis, absolutamente desnecessárias naquele dia. Todos os requisitos para um bom caso policial.

As Máscaras de Chumbo

Reconstituindo-se os passos dos dois, verificou-se que eles deixaram Campos às 9h da manhã, chegaram à rodoviária de Niterói às 14h30min, compararam as capas às 14h45min e a água mineral às 15h15min. Cinco minutos depois, iniciavam a subida do morro, para estar lá em cima às 16h30min. Se não pararam no caminho, seguindo sempre em frente, eles chegaram na clareira da morte sem um minuto de atraso, uma vez que a subida, para quem já conhece o lugar, leva exatamente 1h10min. Tudo cronometrado como numa experiência de eletrônica.

Corpos sendo retirados do Morro do Vintém

Seguindo esta hipótese, a morte dos dois deve ter ocorrido por volta das 18h30min, do dia 17. O bilhete mandava ingerir as cápsulas a essa hora. E, após o efeito, proteger o rosto com as máscaras de chumbo – e aguardar o sinal marcado. As máscaras , que poderiam ter sido levadas no bolso do paletó, estavam caídas ao lado direito dos corpos. Logo, ou o efeito matou os dois, ou eles morreram na hora do sinal, porque as máscaras já se encontravam em suas mãos, fora dos bolsos.

Máscaras, anotações e recibos

A investigação

Inicialmente, a polícia acreditou que a vinda deles a Niterói se devesse a um encontro com um terceiro personagem. No entanto, faltou base nas investigações. Um latrocínio explicaria alguns detalhes, mas deixaria muitos outros sem explicação. Dois milhões e pouco estavam envolvidos no caso e haviam desaparecido. Bilhetes, máscaras e fórmulas secretas teriam sido deixados no local para confundir a Polícia.

Investigações no local em que os corpos foram encontrados

Mas, como os cadáveres não apresentavam sinais de agressão e a “causa mortis” ainda era desconhecida, foi afastada esta possibilidade, voltando-se então para homicídio. O suposto encontro com um terceiro personagem, a viagem interrompida para São Paulo, a pressa com que Manuel e Miguel subiram ao morro, como se estivessem em cima da hora, reforçam esta possibilidade. Mas como teriam sido mortos? Uma experiência, no ramo da eletrônica, mal sucedida? Seriam eles induzidos a tomar alguma substância que lhes foi letal? O certo é que os cadáveres apresentavam uma cor rosada e não se constatou carbonização, o que certamente teria acontecido se tivessem levado uma descarga elétrica violenta.

Quatro outras hipóteses foram levantadas, dentro de um quadro de homicídio. Uma delas era o contrabando. Os dois teriam sido liquidados por elementos de uma ou de outra organização. Aquele morro é sabidamente um reduto de contrabandistas, e os dois sempre mostraram interesse em peças estrangeiras, difíceis de ser encontradas.

Logo após a descoberta dos corpos, Dr. Venâncio Bittencourt, delegado-titular do 2º Distrito afirmou:

Todo crime praticado por homens fatalmente será elucidado por outros homens. Além do mais, nem se sabe ainda se foi mesmo crime. Pode ter sido um pacto de morte. Logo veremos.

Dr. Venâncio Bittencourt
Dr. José Venâncio Bittencourt

Encolhido num canto da sala, o cigarro esquecido no canto da boca, o Comissário Oscar escutava. Mas a sua equipe já estava em ação.

Crime? Suicídio? Ninguém sabia ao certo. A segunda hipótese levantada era a de espionagem. Segundo o correspondente de uma agência estrangeira, para quem a coisa não tinha mistérios: trata-se do “assassinato de dois espiões que pretendiam instalar nas proximidades do Rio transmissores de alta potência”. A possibilidade de espionagem não foi abandonada, mas os fatos provaram que os rapazes não possuíam meios de estar ligados a organizações internacionais. Os adeptos de James Bond sofreram com isso um revés, mas insistem afirmando que um bom espião é aquele cujas atitudes são perfeitamente normais e não levantam suspeitas.

Uma terceira hipótese afirmava que os rapazes eram homossexuais e teriam sido mortos por conta de sua relação. Entretanto, logo de início esta hipótese foi descartada porque, segundo matéria publicada no Jornal do Brasil, em 24 de agosto de 1966, foi levantada por um investigador do tempo das ceroulas, que desconhecia a existência do slip, zazá e brigite, considerada concepção moderna de cuecas nos anos 1960.

A quarta hipótese, e que agradava mais aos policiais, era a de que se tratava de uma experiência científica. Fórmulas secretas, máscaras de chumbo (chumbo-lençol, maleável), grande conhecimento de eletrônica e ausência total de problemas financeiros, levavam à polícia apostar suas fichas nesta hipótese.

No dia seguinte a notícia da morte dos dois técnicos, residentes na cidade e ali bastante conhecidos, tomou conta de Campos. Nas esquinas, nos bares (diante da “batida” feita com a esplêndida cachaça local), nas portas das lojas, os campistas falam sobre o assunto, discutem-no, sugerem hipóteses e os grupos se dividem: uns afirmam tratar-se de assassinato; outros, de suicídio. E nalguns pontos da cidade a discussão já se acalora, enquanto as emissoras transmitiam de instante a instante pormenores do caso e os quatro jornais locais esgotam suas edições.

Mas, na residência dos mortos, duas mulheres, D. Elza, viúva de Miguel José Viana, e D. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz, mantinham-se silenciosas. Assim um repórter as encontrou, caladas, fechadas no luto recente, os olhos circundados por olheiras a denunciarem seguidas noites insones. Em torno sete crianças, o ar espantado diante dos estranhos que nos últimos dias sitiavam suas casas, vez por outra perguntavam, em tom choroso, quando papai iria voltar.

D. Neli, viúva de Manuel, na companhia dos filhos Maxwell e Rosangela

Na casa de D. Neli o repórter procurava obstinadamente arrancar qualquer coisa de “seu” Pereira, pai de Manuel, um dos mortos. Conseguiu, finalmente, quando “seu” Pereira o levou pelo braço até um dos aposentos da casa e lhe mostrou fragmentos de um material que dizia ser explosivo.

Dias atrás, meu filho Manuel encontrava-se aqui em casa na companhia de Miguel e Hélcio, amigo dos dois, quando ouvimos uma explosão. Uma coisa horrível. Parecia que o mundo ia acabar.

Seu Pereira
Seu Pereira
O irmão de Manuel em seu laboratório.

Na casa de D. Elza, viúva de Miguel, “seu” Amaro, espírita convicto, também procura vafurtar-se a qualquer comentário. O repórter insistia, a conversa arrastava-se, vaga, cortada de cuidadosas reticências. Mas, às tantas, Isabel, filha de “seu” Amaro, interveio no diálogo que parecia cada vez mais impossível. Num desabafo, a voz rouca, ela disse:

Eu sei, eu sei o que aconteceu. Muitas vezes Miguel me falou a respeito de uma experiência muito importante que iria fazer. Nos últimos dias, como ele se mostrasse calado, a fisionomia preocupada, compreendi logo que chegara o momento. Depois, foi aquela viagem súbita, na companhia de Manuel? Porque? Não sei ainda bem o que aconteceu, mas sei que tudo está ligado às coisas aparentemente sem sentido de que ele costumava me falar”.

Isabel, filha de “seu” Amaro
O irmão, a mãe, as irmãs e o pai de Miguel.

A autópsia a que foram submetidos os mortos do Morro do Vintém não revelou qualquer anormalidade, concluindo que a causa da morte foi parada cardíaca sem razão aparente. Nenhuma violência, tampouco qualquer indício de que a morte fora provocada por envenenamento. A causa mortis continuava, assim, sendo um denso mistério — mais um nessa sucessão de mistérios que é o estranho caso das máscaras de chumbo.

Até então, apenas um suspeito havia sido detido pela polícia. Exatamente Hélcio Correia Gomes, um dos figurantes do misterioso trio de Campos, e que acompanhou Miguel e Manuel à rodoviária de Campos quando os dois seguiram para a sua última viagem. Interrogado horas seguidas, Hélcio repete sempre a mesma história:

Sempre fui amigo dos dois. D. Elza pode testemunhar a respeito. Miguel, seu marido, era íntimo meu. Quanto a Manuel, sabíamos que atravessava um mau momento — não financeira, mas moralmente falando — e procurávamos trazê-lo de volta ao bom caminho. Como kardecista crente, procurei colocá-lo em contato com os bons espíritos, e foi com essa intenção que o levei a algumas sessões no Centro. É só. Quando me despedi deles, na rodoviária, estava certo de que iriam mesmo a São Paulo. A partir daquele dia, nada mais sei.

A mulher de Manuel, Neli Pereira da Cruz, fez sérias acusações a Hélcio Gomes, informando que há tempos houve um desentendimento entre ele e o seu marido. E ouviu perfeitamente quando Hélcio ameaçou matar Manuel, somente não o agredindo dada a sua interferência.

Durante as investigações, Hélcio chegou a ser preso e conduzido para interrogatório, no entanto, foi solto por força de um habeas-corpus impetrado por um advogado misterioso, chamado Luis Carlos da Silva, que segundo o próprio Hélcio, era um desconhecido.

Hélcio Pereira Gomes

Posteriormente, o acusado apresentou álibi ao comprovar que, na tarde em que morreram Miguel e Manuel, Hélcio encontrava-se a 400 quilômetros de distância, comprando peças para o seu Volkswagen, no balcão da firma Veículos e Acessórios S. A., da Rua Conselheiro Tomás Coelho, 87, em Campos, informação comprovada pela nota fiscal 21.303, apresentada por ele.

Gomes, no momento em que era detido

Um outro depoimento, a respeito do comportamento de Miguel, desta vez fornecido por Arialdo Santos Viana, seu cunhado, marido de sua irmã Elza, afirmava que o técnico em eletrônica era um homem muito estranho e que, nos últimos 10 anos, somente conseguiu conversar com ele umas duas ou três vezes.

E acrescentou:

Ele era tão esquisito que quando ia à casa de mamãe apanhar minha irmã, ficava do lado de fora, olhando para o céu. E quando era convidado a entrar, recusava, sem falar, balançando apenas com a cabeça.

Arialdo Santos Viana

]Mais de dez dias após Manuel e Miguel terem sido encontrados mortos, a polícia não sabia se os mesmos haviam sido assassinados ou se se suicidaram. Ignorava-se, também, o destino dos milhões que um deles levou consigo, quando ambos deixaram Campos, no dia 17 de agosto. Se foi crime — quem os matou? E com que arma? Se, suicídio de que maneira se suicidaram? Que misteriosa droga teriam ingerido?

Extraterrestres?

Em plena era espacial, em que os foguetes eram notícia, não faltaram aqueles que afirmavam ter sido Miguel e Manuel mortos por um raio de alta potência de origem extraterrena. A profissão dos dois, técnicos de TV, estaria de alguma forma relacionada à experiência que levariam a efeito para captar sinais e mensagens de outros planetas. Os fãs de Flash Gordon vibraram com as declarações de D. Gracinda Barbosa Coutinho de Souza e seus filhos, moradores nas redondezas, que afirmaram ter visto um objeto de forma arredondada, cor laranja, envolto por uma faixa vermelho-brilhante, mais ou menos às 19 horas do dia 17, sobrevoando o morro onde foram encontrados os cadáveres. O disco-voador teria permanecido sobre o local alguns minutos, exatamente na hora tida como da morte dos rapazes.

A família que avistou o suposto disco-voador

A Sra. Gracinda de Souza, esposa de um funcionário da Bolsa de Valores, em Niterói, procurou a polícia para relatar uma estranha ocorrência, de que ela e sua filha, uma menina de 7 anos, dizem ter sido testemunhas:

Foi no dia 17, ao cair da tarde, quando eu e Denise (sua filha) percebemos um objeto estranho sobrevoando o Morro do Vintém. Era uma “coisa” redonda, com uma marca vermelha ao lado.

O objeto, segundo a testemunha, realizava subidas e descidas (por vezes rápidas, por vezes lentas), encontrava-se no espaço, um pouco acima do Morro do Vintém, e ali permaneceu, durante uns três ou quatro minutos, num movimento vertical, sempre emitindo raios azulados.

O disco conforme que o viu

A Sra. Gracinda, casada com o Sr. Paulo Roberto Coutinho de Sousa, mãe de três filhos e cunhada do escrivão Tales, da Primeira Vara Criminal de Niterói, à época, era considerada uma mulher equilibrada, bem conceituada na região onde morava, e ninguém duvidaria das suas informações. Seus filhos confirmaram sua versão e um deles com a ajuda dos outros dois, fez até o desenho do objeto estranho para a polícia.

D. Gracinda e seus filhos

Telepatia?

O General Caio Miranda, professor e diretor de várias academias de ioga, chegou a afirmar, à época, que uma experiência de telepatia poderia ter causado a morte dos dois técnicos em eletrônica. Após eliminar as especulações sobre a levitação e a catalepsia, o General informou que nas experiências telepáticas de maior intensidade, as pessoas, não raro, usam um alcaloide, como o SLD-25 ou a mescalina, que aumenta a acuidade mental e a frequência vibratória do cérebro, “para alongar o alcance de sua onda”.

Considerou, porém que o SLD-25 somente pode ser ingerido em quantidade nunca superior a 25 miligramas, “como indica a sua própria nomenclatura”. “Passando daí – acrescentou – pode causar a morte, pela força de seu efeito.

Explicando o uso das máscaras, o General afirmou que ele se justificaria por uma medida de precaução “já que, numa prova de tão intensa onda vibratória, quereriam os rapazes premunir-se, como os radiologistas que usam avental de chumbo, contra os efeitos de vibrações capazes de atingi-los e fulminá-los”. Mais:

A ingestão de drogas revigora a hipótese de que foi uma experiência de telepatia.

General Caio Machado

Parapsicologia

Outra contribuição que fez referência à possibilidade de se tratar de uma experiência paranormal foi a manifestação do Padre Oscar Quevedo, da Faculdade Anchieta, de São Paulo, professor de parapsicologia, trazendo subsídios importantes sobre outro ângulo pelo qual se poderia ver o caso do Morro do Vintém.

A parapsicologia que estuda, a prática do ocultismo, fenômenos chamados psíquicos, aponta situação em que não é impossível advir a morte, quando da realização de uma experiência em busca de contatos. Dois tipos de experiência podem ser feitas no campo parapsicológico. O da psigama e o da hiperestesia. Em ambos, teoricamente – explica Padre Quevedo – existe a necessidade de que o físico esteja como que num estado de debilidade.

Padre Oscar Quevedo

No primeiro caso, de caráter eminentemente extra-sensorial, o experimentador procura, liberar a alma, na busca de captações espirituais. Já na segunda, os nervos, hiperexcitados, são o instrumento pelo qual o homem procura sentir aspectos sutis da realidade que o cerca.

O Padre Oscar Quevedo frisou que, para o êxito de qualquer uma dessas experiências, é indispensável muito exercício e perfeito estado físico. “É fora de dúvida – acentuou – que, tanto hiperexcitado como no transe psigama, o experimentador sofre o impacto da menor vibração: luz, som e até outras formas de movimento que a Física ainda não conseguiu definir. Isto provoca, independentemente da vontade do “dotado”, tal dispêndio de energia que não seria absurdo admitir que chegue a causar a morte”.

Marcianos

Um outro depoente afirmou que Manuel e Miguel se preparavam para estabelecer contatos com Marte, pois acreditavam existir lá uma civilização superior. Disse também, ter presenciado a descida de uma forma luminosa na Praia de Atafona e que desapareceu minutos depois com forte estampido.

Os experimentos

Coincidência, imaginação, verdade, ficção, nada podia ser desprezado, até que alguma coisa ficasse confirmada com provas. Que os rapazes eram dados a essas tentativas não havia dúvidas. Viviam tentando contato com outros mundos ou com forças sobrenaturais. Eram dados a práticas místicas. Faziam experiências estranhas, barulhentas e perigosas.

Quando Miguel e Manuel, na companhia de Hélcio, provocaram o fenômeno que resultou na tremenda explosão na praia de Atafona, várias casas das redondezas ficaram ligeiramente danificadas. E durante algum tempo não se falava noutra coisa no lugar. Neste mesmo contexto, surgiu uma versão de que um disco voador teria caído na praia.

Essa história e outras de igual calibre constam de vários depoimentos de pessoas intimamente ligadas aos dois experimentistas. Isso, portanto, está mais do que provado. Testemunhal e materialmente, porque as sobras dos fenômenos eram eventualmente recolhidas por pessoas e foram confiscadas pela polícia. Pedaços de canos galvanizados, fios, pólvora, espoletas etc. Sim, porque as experiências não passavam na realidade de detonação de bombas caseiras.

Bomba caseira, feita de tubo galvanizado

Todas essas passagens constam dos depoimentos tomados em cartório, de: d. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz; Sebastião da Cruz, pai de Manuel; Aluísio Batista Azevedo, amigo de ambos; Elza Gomes Viana, viúva de Miguel José Viana; e muitos outros. Eles faziam segredo de tais práticas, e só um grupo reduzido sabia. Um círculo pequeno de amigos.

Pai de Manuel, Sebastião da Cruz

Todos espíritas, que realizavam sessões, reuniões e trabalhos, ora na casa de um, ora na casa de outro. Deles, Miguel, um dos mortos, e Hélcio eram os mais ativos e empolgados. Já Manuel vivia “entre a cruz e a caldeirinha”: acreditava desconfiando. Miguel insistia com o companheiro Manuel para convencê-lo. Uma vez convidou-o a assistir a uma “prova” no quintal de sua casa. Fogos correram pelo chão e culminaram num estrondo. Posteriormente o pai de Manuel, que a tudo assistira da janela, recolheu no local os restos da “prova”.

Um pedaço de cano galvanizado espatifado e fios, que mostrou ao filho, advertindo-o de que estava sendo estupidamente enganado. Mas a dúvida permaneceu, tanto que num dos depoimentos há uma referência a que Manuel, em dia próximo ao de sua morte, teria dito:

Vou assistir a uma experiência definitiva. Depois dela, eu digo se acredito ou não.

Eletrônica + Umbanda

Houve também um outro fato que contribuiu para que o Dr. Venâncio compreendesse que Hélcio Gomes tinha “culpa no cartório”. Curioso em questões de eletrônica, Hélcio era conhecido na cidade como umbandista, e muitos afirmam que ele tinha Miguel, crente convicto, em suas mãos. Inúmeras vezes havia “tratado” da asma do rapaz e, provavelmente, convencera-o, e ao amigo, a realizar algum trabalho misterioso, misturando eletrônica à “macumba“. No entanto, nada pôde ser provado contra o rapaz e é possível que esta teoria tenha sido fruto do preconceito com o qual as religiões de matriz africanas sofriam (e ainda sofrem).

A primeira máscara de chumbo

Houve ainda o surpreendente depoimento do Sr. José de Souza Arêas, morador à Rua Cônego Goulart, 120, na capital fluminense, que procurou o Comissário Oscar para lhe contar a seguinte história:

Em 1962, aqui mesmo em Niterói, aconteceu coisa parecida com a morte dos dois homens de Campos. Um técnico de televisão, apareceu morto no alto do Morro do Cruzeiro. E o senhor sabe o que foi que encontraram ao lado do seu corpo? Uma máscara de chumbo.

José de Souza Arêas

Segundo o depoimento do Sr. José, o homem se chamava Hermes, era pesquisador de eletrônica e trabalhava com um francês, cujo nome José afirmava não se recordar. Hermes, segundo o francês, declarou por ocasião da autópsia – prosseguia narrando José de Sousa Arêas –, fôra ao morro para fazer uma experiência no sentido de captar sinais de televisão sem ser necessário qualquer aparelho, e, como parte da experiência, ingerira um comprimido redondo, que tinha marcas semelhantes às que as cozinheiras fazem com garfo nos bordos de pastéis. Segundo ainda José, o francês declarara, na ocasião, que Hermes morrera porque não estava fisicamente preparado para a empreitada, que oferecia possibilidade de vida ou morte. Na época do fato, finalizou José, o delegado de Neves era Hélio Estrela, que fora afastado anos depois.

O Comissário Oscar Nunes, à época, enumerou o seguintes pontos de coincidência entre o primeiro caso e o dos dois campistas:

1 – a ser verdadeira a informação de José, de que o francês dissera ter Hermes morrido por falta de saúde para suportar a experiência, com Miguel e Manuel pode ter ocorrido o mesmo, de vez que o primeiro era asmático e o segundo sofria de crônica dor no ventre;

2 – só mesmo para uma experiência poderiam ter subido o Morro do Vintém, com máscaras de chumbo para proteger os olhos;

3 – de acordo com informação do subdelegado de Santa Maria, 18º Distrito de Campos, Sr. Henry Caldeira, Manuel já estivera fazendo pesquisas sobre televisão em morros das cidades de Colatina, Alegre e Mimoso, no Espírito Santo, sendo entusiastas de experiências, tanto que recusou o convido do amigo Orlando Cunha para montarem uma fábrica de televisão, alegando que não tinha tempo.

À época das investigações, alguns técnicos em eletrônica do Estado do Rio foram chamados para o que os investigadores fluminenses diziam ser “um bate-papo sobre a matéria da especialidade deles”.
Na opinião de um deles, ambos os rapazes foram mortos por um raio, não o da radiofrequência, que mata sem deixar vestígios, mas a faísca elétrica da atmosfera. E lembra que, na quarta-feira, 17, chovia em Niterói. Os corpos teriam sofrido ligeiras queimaduras, que não foram constatadas pelos médicos legistas porque se desfizeram com a decomposição.

Dúvidas

Se Miguel e Manuel planejavam viajar à São Paulo para realizar a compra de um Volkswagen, por que não levaram consigo nem mesmo uma maleta de roupas, uma vez que empreenderiam longa viagem.

Outro ponto que intriga a policia é ter sido encontrado, perto do local onde os dois técnicos morreram, um papel no qual estava escrito o nome de “Nico Polícia”, policial que tem centro espírita na Rua Maricá, próximo ao Morro do Vintém.

O Morro em que os rapazes foram encontrados possuía, pelo menos, três pontos de acesso: dois por Santa Rosa (Ruas Gastão Gonçalves e Andrade Pinto) e um por Cubango.

Alguns garotos chegaram a alertar a Polícia acerca da presença dos dois homens no morro. Acostumados a andar pelo mato à procura de caça ou para apanhar pipas, na quinta-feira, vieram correndo, mato afora, na caça de uma preá – e informaram ao patrulheiro Antônio Guerra de Castro, da presença de dois homens “que dormiam no mato”. O policial, entendeu que eram dois marginais que se escondiam. E não foi lá imediatamente por dois motivos: porque estava só, e porque achou que ao chegar ao local não mais os encontraria.

No sábado, os mesmos garotos passaram pela clareira – e viram os dois ainda dormindo. Ao descer informaram mais uma vez: “Os dois continuam dormindo”. Antônio Guerra começou a achar que os homens dormiam demais. E para ver de perto, foi buscar reforço no seu companheiro e vizinho, Camerino Guimarães. E lá estavam os dois, dormindo o sono da morte.

O laboratório

Um laboratório de 3 x 4 metros era onde Miguel aplicava seu tempo em consertos de aparelhos de TV e estudos de eletrônica. Possuía bastante material para sua especialidade, lotando prateleiras. Nenhum elemento elucidativo da sua morte, entretanto, ali foi encontrado. Através de Nélson Silva, radiotécnico, ficou-se sabendo que ele entregara a Miguel 200 mil cruzeiros para compra de válvulas.

Nélson Silva

A família de Miguel José Viana negou terem sido escritos por ele os bilhetes recolhidos no Morro do Vintém, pois, não era compatível com sua caligrafia. Também não reconheceram como pertencendo a um dos dois o lenço com as iniciais AMS, encontrado no morro.

Uma pasta de couro marrom não foi aberta, por imposição da família de Miguel, alegando que era material de trabalho externo. Os dois técnicos em eletrônica foram sepultados no dia 23 de agosto de 1966, às 10h30min, fazendo-se presença o então prefeito Carlos Peçanha.

Mistério no ar

Boatos, versões extraterrenas e sobrenaturais são sempre a tônica de casos de difícil solução. Geralmente tratam de fatos apoiados em depoimentos, nunca em provas reais. É uma faixa de perigoso trato, onde qualquer resvalo pode conduzir ao ridículo. Entretanto, nunca podem ser desprezadas, pois constituem invariavelmente uma possibilidade viável. Neste já famoso caso das Máscaras de Chumbo, essas hipóteses vingam na não determinação da causa mortis. E o problema toma dimensões que já ultrapassam os limites do Estado do Rio. Trata-se de um enigma que desafia a técnica policial brasileira.

Se foi crime, teria que haver um terceiro personagem na história. Inicialmente todas as suspeitas recaíam sobre Hélcio Gomes, porém nada ficou que pudesse lhe lançar a mais leve culpa. Nem mesmo a possibilidade de latrocínio, na qual o terceiro homem poderia ser alguém absolutamente desconhecido. Suicídio, nem se pode cogitar, por falta total de base. Sobra ainda a versão de acidente. Um bilhete fala em “ingerir cápsulas”. Eles teriam tomado alguma droga letal com a finalidade de buscar transcendência. Mas o diabo é que isso não aparece nos exames toxicológicos. O que eram as tais cápsulas? Quem as forneceu? Quem as manipulou? Perguntas que, se respondidas, poderiam trazer muita luz ao caso.

Dr. Venâncio

O delegado Venâncio e seus comandados esgotaram os meios, sem nada conseguir. A conclusão a que todos chegam é que somente a determinação da causa da morte pode trazer a solução definitiva. Até mesmo os Serviços Secretos do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal foram envolvidas nas investigações, porém sem resultados frutíferos.

Novas investigações

À época, o secretário de Segurança, dr. Homero Homem, o comissário Luisinho, oficial de gabinete, o delegado Sérgio Rodrigues e o delegado Idovã formaram uma linha de ataque ao problema. Novas diligências foram feitas nas cidades de Campos e Macaé. Outro levantamento de local, mais minucioso e cuidadoso. Reinquirição de todas as testemunhas já ouvidas. Depoimentos de novas testemunhas. Enfim, uma arrancada para a elucidação total e satisfação da sociedade. Prova alguma, porém, surgiu que pudesse atribuir a responsabilidade a alguém pelas mortes de Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana. Cada vez mais se concretizava a ideia de que a chave do mistério residia na identificação da causa mortis. Convictas disso, as autoridades, em agosto de 1967, exumaram os dois corpos. Os drs. Sebastião Faillace e Adalberto Otto colheram mais material para exame. Com a colaboração de mais dois médicos legistas da Guanabara, fizeram um belíssimo trabalho de medicina legal.

Momento da exumação dos corpos

Infelizmente, a presença de formol nos corpos exumados prejudicou sensivelmente o trabalho dos legistas. O embalsamamento pôs por terra grande parte da chance, porque certas substâncias tóxicas não puderam ser testadas.

Num balanço das medidas tomadas, temos os seguintes resultados:
Exames de Local, da época e de dois anos após: nada que determinasse morte violenta ou não.
Laudo de Necropsia da época: nada que pudesse determinar a morte.
Exame Toxicológico do Local: nada que pudesse causar a morte.
Exame Toxicológico na época e na exumação em 1967: nada responsável pela morte.
Exame Grafotécnico: os bilhetes foram escritos por Miguel.

Restava ainda o último cartucho. A última chance, pela determinação da causa da morte. Uma sugestão feita pelo dr. Sérgio Rodrigues e prontamente aceita pelo secretário de Segurança. A remessa de material para o Instituto de Energia Atômica, no Estado de São Paulo. Lá existia um aparelho denominado Análise de Ativação por Nêutrons, cuja ação radioativa, através de exames próprias, poderia identificar substâncias tóxicas nas vísceras. O material foi remetido, mas o parecer dos cientistas foi inconclusivo.

Reabertura do caso: a loura

Dois anos e meio depois do ocorrido, uma nova denúncia gerou a reabertura do caso das Máscaras de Chumbo.

Segundo a denúncia de uma “mulher loura”, moradora de Campos, cujo nome foi omitido, um homem de nacionalidade lituana, também radiotécnico teria sido o responsável pela morte dos dois rapazes em 1966. Ainda segundo a denúncia, o suspeito trabalhava em Niterói e frequentava centros espíritas com os radiotécnicos. Apesar da reabertura do caso, nada se pôde concluir a partir da denúncia da “loura”.

Confissão!?

Ainda em 1969, uma nova pista sacudiu a polícia carioca quando Hamilton Dezani, presidiário cumprindo pena por latrocínio em São Paulo contou a um juiz que três homens teriam assassinado os dois técnicos, em 1966, e que os radiotécnicos foram obrigados, sob a mira de armas, a beber veneno, fato que lhe havia sido contado por um dos matadores. Ao fazer tal declaração, Dezani pediu ao juiz que desse garantias de vida para sua família, que estaria sendo ameaçada por um dos homens que ele acusa da autoria do crime.

Segundo Dezani, ele teria acompanhado três homens, conhecidos apenas como Wilson “Alemão”, Acácio de tal e “Espanhol”, todos “puxadores” de automóveis, integrantes de uma quadrilha que age na Guanabara, Rio e São Paulo, a um centro espírita no Cubango. No citado centro, de propriedade de uma mãe-de-santo chamada Helena, encontraram Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana, tendo sido tratados negócios relacionados com compra e venda de automóveis.

Do centro espírita embarcaram num automóvel e partiram para um local ermo e não muito distante, onde os dois radiotécnicos foram obrigados a saltar, tendo ficado apenas ele, segundo afirma, no interior do carro.

Passados vários minutos voltaram apenas os três, Wilson “Alemão”, Acácio e “Espanhol, o qual, interrogado sobre os dois que faltavam, declarou: “Nós os fizemos beber veneno”. E partiram dali para a Guanabara, onde se separaram.

No entanto, o caso sofreu nova reviravolta quando Hamilton Dezani, ao chegar ao Rio de Janeiro, modificou o depoimento anterior, que prestara em São Paulo, levantando suspeitas de que na verdade tudo se tratava de uma versão fictícia elaborada pelo preso para que pudesse fugir durante sua transferência a Niterói.

Banzai?

Em junho de 1969, o delegado de Homicídios, João Antônio da Silva, afirmou que a polícia fluminense estava em posse de uma nova pista que ajudaria a solucionar o caso das Máscaras de Chumbo. A chave do mistério estaria na palavra japonesa “banzai”, muito utilizada em experiências mediúnicas e no baixo espiritismo, segundo o delegado.

Esta é provavelmente uma das pistas mais “sem noção” apresentadas na história do caso e, obviamente não agregou nada ao caso.

AMS

Ainda em 1969, a polícia chegou a anunciar um novo suspeito: o professor Ramayana Alexandre Santos da Selva Neto, cujo nome verdadeiro era Alexandre Monteiro da Selva Neto: AMS.

Mais uma pista sem qualquer fundamento e possibilidade de comprovação.

Todas as versões serão possíveis, até as sobrenaturais e extraterrenas. Uma pergunta sem resposta. Que tipo de morte esteve no Morro do Vintém, na noitinha de 20 de agosto de 1966? Deste planeta; de outros espaços; de outra dimensão? Que morte que levou duas almas, sem justificar? Que não deixou nada que a identificasse, porque velo mascarada? Com duas Máscaras de Chumbo…

23 anos depois

Em matéria do jornal O Globo, publicada em 1989, o caso é relembrado e novas entrevistas são publicadas.

Para Aurélio Zaluar, jornalista e estudioso de objetos voadores não-identificados, a morte de Miguel e Manuel estava ligada ao fenômeno dos discos voadores:

É certo que os dois eram estudiosos e queriam muito manter contato com outros planetas, através, por exemplo, da aceleração da frequência das ondas cerebrais. É assim como ligar um rádio e captar uma estação. Até admito a hipótese do latrocínio, mas não acredito nela.

Aurélio Zaluar

Para a família de um dos dois técnicos o mistério continuava. Nos 23 anos que separaram o caso da entrevista, Elza Gomes Viana, de 55 anos, viúva de Miguel, criou os quatro filhos que, coincidentemente, seguiram a mesma profissão do pai.

– Sofri muito nas mãos da Polícia e dos repórteres. Parecia que eu e Neli – viúva do Manuel – tínhamos a chave do mistério. Todo dia aparecia um repórter na minha casa. Fui a vários programas do Flávio Cavalcanti, do Homem do Sapato Branco e até um detetive da Interpol me interrogou. Para se ter uma ideia da loucura, hoje, 23 anos depois, ainda me procuram para saber do caso.

D. Neli, à época do falecimento de seu marido

Para o Detetive Saulo Soares de Souza – que trabalhou no caso entre 1966 e 1969 – os técnicos morreram em consequência da ingestão de curare (uma droga de origem indígena utilizada com reservas pela homeopatia), durante uma experiência espiritualista. Apesar de utilizado no tratamento de contrações e espasmos, como na Doença ou na Dança de São Vito, o curare, se absorvido em altas doses, pode paralisar o sistema nervoso central, causar atelectasia pulmonar e matar.

O texto acima foi elaborado com base nas reportagens de Carlos Marques (Manchete), Sônia Beatriz (Cruzeiro), Jorge Audi (Cruzeiro) e nas matérias publicadas pelos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e O Fluminense.

Fotografias por: Nelson Santos e Fernando Seixas

Todos os créditos são devidamente atribuídos aos seus autores originais.

Esta matéria possui finalidade educativa / informativa, sem qualquer intenção de lucro ou monetização sobre o trabalho das entidades mencionadas acima.

Está exigindo uma reforma o velho Museu do Ipiranga

Não está em condições de receber visitas, o imponente edifício – Até hoje, não foi dotado de eletricidade

A administração paulista através da Comissão do IV Centenário, já está dando providências no sentido de revestir de brilho os festejos que assinalarão a passagem do quarto século de fundação da cidade de São Paulo. Verbas têm sido votadas nas casas legislativas, inclusive a necessária para a instalação da Comissão que cuidará de orientar as comemorações. Tudo indica, pois, que São Paulo, embora não com a suntuosidade esperada – que se tornaria descabida numa época de economia como a atual – irá festejar, condignamente, o seu quarto centenário.

ESQUECIDO

Ao que parece, porém, dos melhoramentos previstos para as cerimônias cívicas que então serão assinaladas, o Museu do Ipiranga está sendo totalmente esquecido. Entretanto, trata-se de um setor que os responsáveis não deveriam olvidar, por ser tratar de local onde se encontram depositadas verdadeiras jóias não só da história de São Paulo, mas também, do Brasil.

LASTIMAVEL

O estado atual do Museu do Ipiranga – qualquer pessoa o poderá constatar – é deploravelmente lastimavel. Dir-se-ia estar relegado ao mais completo abandono. Ao que parece, a atual administração do Museu luta com a falta de verbas e, consequentemente, ver-se-ia tolhida, na tarefa de cuidar como devia das relíquias que lhe foram confiadas. A exposição das mais interessantes peças da nossa história é desordenada, não obedecendo à técnica de Museu. A etiquetagem é velha e lacônica. muitas peças expostas não possuem sequer etiquetas explicativas ou simplesmente elucidativas. Tem, o visitante, a impressão de que nada se faz no sentido de preservar os objetos históricos da ação do tempo.
Uma simples vista de olhos pela sala de armas confirmará a assertiva. A generalidade dêsses objetos está tomada pela ferrugem e não se nota qualquer demonstração de cuidado para evitar a ação corrosiva.

ABANDONO

Observou a reportagem que no porão do edificio, atualmente em reforma, estão relegados ao abandono verdadeiras reliquias. Vêem-se ali quadros, celas e até ferragens com as quais, na época da escravatura, os fazendeiros prendiam os escravos. Assim, encontram-se amontoados a um canto do porão, correntes, pesos e algemas, documentos vivos de uma época da história. Esse material talvez permitisse a organização de uma “Sala da Abolição”, por exemplo.

Ainda no porão do Museu, onde a reportagem penetrou sem ser pressentida, vêem-se ferragens antigas ali depositadas sem o menor cuidado

IRREGULARIDADES

Embora muita gente o ignore, o edificio do Museu do Ipiranga não é dotado de luz elétrica! Os funcionarios, geralmente, são obrigados a deixar o serviço pouco depois das 16 horas, quando o dia começa a escurecer, pois, dada a falta de luz, o trabalho se torna impossivel.

Para clarear parte do edificio, existem varias claraboias. A principal, colocada bem ao centro do prédio, sobre uma escada de mármore – autêntico mármore de Carrara o mais fino em matéria de mármores – está completamente quebrada. Quando chove, o alvo mármore fica completamente alagado e os funcionários penam para retirar dele a ferrugem desprendida do teto estragado.

Esta é a claraboia central do edifício do Museu do Ipiranga, que não é dotado de energia elétrica. Está com os vidros quebrados, por onde penetra chuva, que vai manchar a alva escada de autêntico mármore de Carrara

Durante a administração anterior, foram construidos varios reservados sanitarios para uso dos visitantes. Atualmente, esses aparelhos sanitarios, embora em bom estado, foram interditados inexplicavelmente, causando, não raro, embaraços a muitas pessoas, especialmente crianças, que visitam o Museu.

PROVIDENCIAS

Do conjunto, ressalta que é deploravel a situação do Museu do Ipiranga, ponto dos mais importantes para a visita do turista, em 1954. Se providencias adequadas não forem tomadas em tempo, ali estará uma fonte de comentarios desairosos sobre a nossa capacidade de avaliar nossas obras históricas.

O Museu do Ipiranga não está em condições de ser visitado agora, quanto mais em 1954, a continuar nesse estado. Aliás, o próprio govêrno, segundo parece, já se apercebeu da situação.

Diário da Noite, São Paulo, 3 de dezembro de 1951.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Quando São Paulo chegará a ser assim?

O assumpto que tem merecido da imprensa os mais zelosos commentarios tem sido, de um anno para cá, aquelle que se refere á solução do problema de transito na cidade. Com o repentino augmento dos vehiculos em poucos mezes tivemos a opportunidade de assistir a um phenomeno imprevisto: o atravancamento do centro da cidade, que desde logo assumiu proporções asssutadoras e é hoje a chronica dôr de cabeça da nossa Inspectoria de Vehiculos. Longe, porém, de nos entristecermos com o problema, devemos nos alegrar, pois elle é o advento de uma éra de engrandecimento.

Os aspectos nova-yorkinos que ha dez annos nos deixavam perplexos – hoje não mais conseguem emocionar os nossos sentidos. Temol-os por aqui, já em formação promissora, aquelles phantasticos congestionamentos, e tanto esperamos, que já conhamos equalal-os um dia…

A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1926
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira.

*A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Sete famílias moram sob o Viaduto Santa Ifigenia (1946)

UM CADAVER SÔBRE A MESA – SOB A CHUVA, O SOL E O FRIO, MOÇOS E VELHOS VIVEM NA MAIOR DAS MISERIAS – DE PERNAMBUCO A SÃO PAULO A PÉ

Aspecto do local em que vivem as sete familias. Os cacarecos, amontoados desordenadamente pelo chão, e os homens sentados aqui e acolá, oferecem um quadro que entristece e comove. Ao sabor dos caprichos do destino, êstes infelizes sofrem as maiores amarguras e desgraças, mas a dor que os irmana tornou-os apaticos e indiferentes, pouco se importando com isto ou aquilo, com a vida ou com a morte.

Quem se dirigir à ala esquerda do Viaduto de Santa Ifigenia, partindo da Praça do Correio assistirá a um espetaculo que, não fôra a realidade cruciante das suas cenas, nos faria duvidas da propria verdade. Sete familias vivem, ali, as suas amarguras diarias, abandonando-se já a sí mesmas, aos vai-e-vens do destino, esperando de “alguem” ou de “alguma coisa” melhores fados. Já não se importam com a vida, e muito menos com a morte. Tudo lhes é indiferente. Entre o choro das crianças, com fome e com frio, os adultos evidenciam a apatia que deles se apoderou. Tudo é dor, é miseria, é desgraça.

O reporter chegou, atravessou todos aqueles cacarecos que atravancam os baixos do Viaduto Santa Efigenia, que se encontrava naquele momento deserto, e dirigiu-se para um deposito da Prefeitura que ali existe. Avistava-se, de longe, seis velas ardendo sobre uma mesa, e figuras humanas ao seu redor. Muitas crianças rastejavam sobre aquele chão imundo. Aproximamo-nos, e vasculhamos com os olhos o recinto. O cadaver de uma criancinha estava sobre a mesa. Não tinha caixão, e apenas um pano azul, em cujos bordos colocaram alguns pedaços de renda barata, cobria o corpo. Ninguem chorava. Indagamos o que acontecera.
– “Esse é o Antonio Carlos, respondeu-nos uma preta gorda. Tem apenas cinco meses. Estava com tosse comprida, e com a chuva dessa noite morreu. Sua mãe chama-se Neusa, veio de Sorocaba há seis meses. Ficou durante um mês no Albergue Noturno, de onde a enxotaram quando teve a criança. Desde aquela época vivem aqui, sob a “ponte”. O senhor precisa ver, moço, quanto sacrificio foi preciso para trazer o cadaver do pobrezinho aqui pro deposito. O fiscal não queria, sob pretexto algum, que ele ficasse aqui. Durante muito tempo esteve aí jogado no chão. Mas um reporter que esteve aqui fez com que o fiscal mudasse de opinião. Mas ninguem sabe onde é que o menino deve ser enterrado, e nem dinheiro para comprar um caixãozinho para ele nós temos. Estamos angariando auxilio para que, ao menos, ele não seja enterrado assim”.
As palavras da preta velha saiam cansadas, mas com indiferença. A dor tornara-se, entre eles, uma coisa comum e de todos os instantes.

“UM DIA VEIO UM HOMEM”

Indagamos do nome da nossa interlocutora.
– “Maria Cecilia dos Santos. Vem de Porto Feliz, há algum tempo. Moravamos, meu marido e meus filhos […] na rua Diogo de Faria, lá na Vila Mariana. Mas um dia, faz já alguns meses, veio um homem e disse que nós teriamos que mudar. Naquele local ia ser construida uma fabrica. Desde então começou nosso martirio. Procuramos durante muito tempo uma casa, um quarto para morar. Mas a resposta era sempre a mesma: “Com crianças é impossivel, não aceitamos”. Tivemos que vir pra cá, porque nem no Albergue Noturno não se aceitam crianças. E aqui já estamos há varios meses, sujeitos ao frio, ao sol e à chuva, comendo o que Deus nos dá e como os homens querem. Nós vamos ficandi aqui até que nos mandem embora ou então até morrer. Eu só peço a Deus que tenha dó das minhas crianças”.

OS FILHOS SEMPRE OS FILHOS

Irene Maria dos Santos veio de Itajubá no Estado de Minas, há 10 anos, a fim de empregar-se em São Paulo. Trabalhava numa casa de “granfinos”. Mas teve um filho. Isto há três anos. A patrôa disse-lhe que com a criança ela não podia ficar ali, despedindo-a. Deu ao pequeno Wilson, esse é o nome do seu garoto mais velho, a uma comadre, e procurou outro emprego. Há um ano, porem dera à luz mais um bebê. E novamente foi despedida. Seu ultimo recurso foi dirigir-se ao Viaduto. Haveria de arranjar um lugarzinho para si e para o seu David. E assim aconteceu: há seis meses que habita os baixos do Viaduto Santa Ifigenia, irmanada pela dor ás demais familias que ali moram.
– “Que é que eu posso fazer? Quero trabalhar e não posso. O pais dos meninos não liga nem para eles e nem para mim. Eu tenho que ficar aqui até que alguma coisa venha mudar tudo, para melhor ou para pior. A vida é assim mesmo, seu reporter – hoje a gente está aqui, amanhã ali. Nesta vida ou na outra, pouco importa”.

Vitalina Alves dos Santos tambem veio de Minas. De Lambari.
– “Disseram-me que a vida aqui em São Paulo era facil. Que aqui tudo eram bom. E há seis meses que estou na cidade. Há seis meses que estamos, meus filhos e eu, passando fome e miseria. Morando debaixo desse viaduto. Pedi emprego inumeros lugares. Mas ninguem quer empregadas com filhos. A minha filha que tem agora 3 anos, fui obrigada a dar ao meu compadre. Este que está aqui comigo é o Washington Luiz, e tem um ano. De vez em quando arranjo algum servicinho para ganhar algum dinheiro. Mas mandam logo a gente embora, porque não pode dormir no emprego: e dormir na casa do patrão com filhos eles não querem. A gente tem que ir vivendo desse jeito mesmo. Outro remedio não tem”.

“EU VOU VOLTAR PARA O INTERIOR”

Maria Aparecida Ribeiro é jovem ainda. Tem apenas 24 anos. Separou-se do marido, que mora em Piracicaba, e há dois meses que vive sob o viaduto. Dorme com seus dois filhinhos – Salvagete e Maria Eunice, com 6 e 2 anos de idade, num velho e rasgado colchão, que está colocado sobre uns caixões.
– “Trabalhar eu não posso, por causa das crianças. Vou passando como Deus quer. Alguns me dão alguma coisa para comer, outros alguns farrapos para vestir. Mas eu vou voltar para o interior. Lá eu nunca vi familia morar assim na rua, tomando sol, chuva, frio e vento, além de passar fome. Lá os homens possuem melhor coração. Todos ajudam a gente, e tambem se pode trabalhar mesmo com filhos. Aqui ninguem quer saber de crianças – parece que têm medo dos meninos”.

DE PERNAMBUCO A S. PAULO ANDANDO

Um homem moreno, de fisionomia decidida, mas fisicamente abatido, magro, tossindo secamente, estava, com as mãos na cabeça, sentado num caixão. Aproximamo-nos, e ele calmamente levantou-se, oferecendo-nos o lugar. Puxamos conversa. Ele falava pausadamente, mas falava bem. O seu linguajar era nordestino.
– José Correia é o meu nome. Minha mulher chama-se Maria José, assim como aquela menina que está sobre o seu colo e que tem um ano e meio de idade. Esta é minha filha tambem e chama-se Djanira e está com oito anos – diz ele apontando para uma garotinha magra e de olhos muito vivos. Nós somos de Brejeiras, que fica no Estado de Pernambuco. Saimos de lá há 28 dias e viemos a pé. Uma vez ou outra conseguiamos alguma “carona” numa carroça ou caminhão. Mas a maior parte do percurso foi feita andando. E as meninas andavam tambem. Soubemos, lá em Pernambuco, onde eu trabalhava na roça, que em São Paulo se vivia bem. A vida lá no nordeste está dificilima. Resolvemos vir para cá. Chegamos ontem. Procurei inutilmente um quarto ou qualquer outro alojamento no qual pudesse abrigar os meus. Foi impossivel encontrar. Tivemos que vir para cá. E aqui estamos sujeitos ao sol, à chuva e ao frio. Não temos dinheiro e procurei trabalho, ontem, mas nada consegui. Vou tentar novamente. Sei que é dificil. Mas ja estamos aqui e tenho que enfrentar a vida. Ou então morrer e deixar perecer os meus de fome.

UM QUADRO IMPRESSIONANTE

Para se imaginar a tristeza daquele quadro e daquelas vida, bastava observar as fisionomias de todos esses infelizes. Mas tudo o que ali estava reunido traduzia miseria. Os cacarecos esparramados pelo chão, velhas canastras, roupas sujas amontoadas em grandes trouxas, farrapos estendidos pelo chão a guisa de cama, tudo era pauperrimo Duas pedras e, sobre elas, atravessadas duas varetas de ferro serviam de fogão. Quatro deles existiam ali. Três estavam apagados e um fumegava. Olhamos o primeiro: uma espuma suja e gordurosa sobrenadavam a um liquido imundo e de côr de terra. Dentro se podia divisar alguns pés de porco, que ali deviam estar desde ontem. A panela era uma lata velha de banha. Esse seria o almoço e o jantar de toda uma familia. No segundo estavam uns restos de arroz e, ao lado, numa outra lata, pedaços de pasteis e de mortadela podre, que deveriam ser requentados e iriam servir de repasto a uma velha e duas crianças. No terceiro havia somente café – um café ralo e mal cheiroso. No ultimo, um pouquinho de feijão estava sendo requentado. Feijão e nada mais. Sobre uma tábua, proxima ao fogão, uns tomates podres iriam servir para a salada.
Isso é o que aquela gente come. Mulheres e crianças. Moços e velhos. Ali nos baixos do Viaduto Santa Ifigenia no coração de São Paulo.

Diário da Noite, 14 de março de 1946

* A grafia original do texto foi mantida, preservando-se quaisquer erros tipográficos.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Monumento à Independência: o projeto não escolhido.

O centenário da independência do Brasil mobilizou grandes comemorações e a concretização de diversas obras escultórias, em que artistas nacionais e estrangeiros competiam por suas encomendas. A mais emblemática é o Monumento à Independência, um dos maiores conjuntos escultóricos do país, instalado no Parque da Independência, no bairro Ipiranga, em São Paulo, local em que fora a declarada a Independência do país em relação a Portugal, no dia sete de setembro de 1822. Erguido por meio de concurso público internacional ocorrido entre 1919 e 1920, foi a peça central dos festejos centenários em São Paulo, que por meio dessa obra era alçada a competir com o Rio de Janeiro, capital do país, como sede simbólica das comemorações (MONTEIRO, 2018).

Entre os principais projetos participantes do concurso estava o de Roberto Etzel, brasileiro, arquiteto, e Luigi Contratti, italiano, escultor.

Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.

Uma matéria publicada na revista A Cigarra em 1920 nos fornece detalhes do projeto de Etzel-Contratti:

O projecto Etzel-Contratti, que a “Cigarra” apresenta aos seus leitores, é sem duvida , um dos mais interessantes do concurso que o Governo abriu para o monumento da Independencia, devendo ser brevemente franqueado ao publico.

Imaginada e desenhada pelo jovem arquiteto paulista Etzel, apresenta originalidade, seja quanto á concepção geral, na qual sobresahem significação e sentimento de eminente sabor nacional, como quanto á forma plastica complexa, traductora do ideal expresso.

É evidente tambem a “monumentalidade, que desabrocha do massiço unico que forma o conjuncto, bem como a harmonia das linhas e blocos com que a esculptura e arquitetura, bronze e granito se entrelaçam deixando perceber bello effeito polychromo.

Orçado em mil contos, o projecto Etzel Contratti canta no bronze o drama secular que creou a nossa Independencia, universalmente considerada, abrangendo a lucta contra a força bruta da natureza inerte (civilisação) e a lucta contra os invasores, despotas, dominadores (política). É a glorificação do passado creador da Independencia, onde são enaltecidos os leitos heroicos capitaes e característicos da lucta secular, synthetisada nos episodios mais belos que a historia registra. Civilisação: a cathechese, (o inicio da lucta), os Bandeirantes (pioneiros); a Fundação do Rio de Janeiro (apotheose); politica: o genio brasileiro que meditou, a alma que aspirou, o braço que luctou e a Lei brasileira sanccionadora do accontecimento, interpretados plasticamente com a glorificação de José Bonifácio, e dos epicos episodios de Tiradentes, dos “Independentes do Norte” e do grito do Ypiranga. Completa este maior bloco de bronze que a historia da esculptura regista a glorificação do valro dos nossos soldados, manifestado nestas luctas travadas nos sertões e nos mares.

No alto, o bronze canta a consequencia da Independencia, glorificação do futuro almejado o PROGRESSO da nação republicana e democratica, enaltecendo a força complexa e natural que crea o passo firme, vigoroso, tenaz, irresistivel, ascendente, do Brasil para o seu alto destino.

O autor, por considerações de ordem esthetica, historica, politica, social, economica, symbolica, literarias explicados num recente opusculo publicado, traduziu plasticamente a sua concepção representando um allegorico carro triumphal, tirado por touros e circumdado pelas forças vivas da democracia base da vida social, pelas forças vivas naturaes, base da vica economica, fontes e garantias do progresso.

Altiva e soberana domina como imagem tutelar e estatua colossal da Independencia.

A nossa maravilhosa naturesa é enaltecida com as figurações dos Rios (Amazonas e Paraná) que dão pretexto para as 2 fontes lateraes, por onde pasará o “Ypiranga”, e da fauna e da flora brasilica os autores tirarão os elementos indispensaveis para uma digna e nacional decoração.

Simples, quasi austeras, as linhas architectonicas no monumento tornam-se caprichosas na systhematisação que tratá tambem, em grupos bronzeos a glorificação da Unidade Nacional.

Maquete do monumento e da sistematização. Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.
Maquete do monumento exposto no Palácio das Industrias. Fonte: A Cigarra, edição 131, 1920.

Apesar da grandiosidade do projeto proposto por Etzel e Contratti, ele não foi o vencedor. O concurso foi vencido por Ettore Ximenes, que apresentou um projeto de características neoclássicas, que tinha em sua face principal um grande alto relevo em referência ao quadro “Independência ou Morte” de Pedro Américo.

Ettore Ximenes, Painel Independência ou Morte, Monumento à Independência, 1922. São Paulo.
Fotografia: Michelli C. S. Monteiro.
Pedro Américo, Independência ou Morte!, 1888, 4,15 × 7,60, Acervo do Museu Paulista da USP.
Projeto de Ettore Ximenes. Fotografía: Zanella, São Paulo.

Referências:

Monteiro, Michelli Cristine Scapol. “Mercado e Consagração: o Concurso Internacional do Monumento à Independência do Brasil”. H-ART. Revista de historia, teoría y crítica de arte, n.o 4 (2019). http://dx.doi.org/10.25025/hart04.2019.05

Revista A Cigarra, edição 131, ano 7, 1920. Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Patins, sucos, cabelos curtos — O jovem carioca em 1980

Alguns dos itens necessários para compor o jovem de hoje:

Patins — Item básico do equipamento do broto. De diversos tipos, variam de 3.000 a 20.000 cruzeiros. O mais transado é o Torlay (15.000 cruzeiros). Joelheiras e cotoveleiras (730) e munhequeiras (360) são indispensáveis. No Rio, patina-se no Canecão e no Roxy Roller, da Lagoa. São Paulo tem mais de dez pistas — surgidas apenas este ano —, cujo ingresso varia de 50 a 300 cruzeiros. As mais quentes são o Rink e o Roxy Roller.

Alimentação Natural — À parte sanduíches vegetarianos, o grande must são os sucos. De combinações as mais esdrúxulas — mamão com maçã, laranja com morango —, custam 40 cruzeiros. Pão caseiro e chás que curam tudo, de enxaqueca a gordura, são também muito consumidos.

Cabelos — Nas meninas, trancinhas e rabos-de-cavalo, presos por conchas do mar e outros berloques. Cara limpa, sem pinturas: no máximo, um lápis. Para os meninos, a nuca batida não pegou: o corte é convencional, estilo “Papai Mandou”.

Roupas — Ao contrário da geração anterior, a dos brotos de hoje se veste rigorosamente bem. Para meninas, as minissaias têm cores pastéis (azul-claro, verde-água), e os preços variam de 640 a 2.000 cruzeiros. Além disso, bermudões, sapatinhos de pano, chapeuzinhos, perfumes e cosméticos naturais, à base de ervas. Para garotos, camisetas com muita cor e inscrições em inglês (800). Para ambos, a calça baggy já caiu de moda: o quente é a nem muito larga nem muito justa, com a boca saindo reta. O sapato é o Top Sider (1.780 cruzeiros).

Música, dança — O aparelho de som é a “menina dos olhos”: todos procuram ter o seu. Sem ídolos em especial, os jovens gostam de escutar “um som” e assistem aos shows dançando o tempo todo. Com o fim das discotecas, a maioria fica só nas pistas de patins. No Rio, após o Canecão, estica-se no Pizza Palace, em Ipanema, ou no Caribe, em São Conrado.

Gírias — Algumas gírias que já se consagram entre os jovens:

Brotinho — Soa década de 50, mas é como estão sendo chamadas as da segunda geração de “cocotas”.
Dar valor — Preferir. “O baixo Leblon já era, dou valor ao Pizza Palace.”
Dragão, Jaburu — Menina feia.
Nas internas — Entre o grupo, “Isso a gente discute nas internas.”
Roupa — Cocaína. “Tem roupa aí?”
Salcero — Confusão. “Arrepiou o maior salcero no social do brotinho.” Ou, teve briga na festa da “gatinha”.
Social — Equivalente festivo do visual. Um campeonato de windsurf é um tremendo visual. A festa de comemoração, depois, é um social.
Rapeizes, Tchiurma — O grupo. Quem frequenta os mesmos sociais é da tchiurma. São os rapeizes, que incluem os dois sexos.

Matéria veiculada em 5 de novembro de 1980.
Fonte: VEJA SP

Breve história do Shopping D

O Shopping D ocupa uma área de 85.000 m², localizada no distrito do Pari, às margens da Marginal Tietê, tendo fácil acesso pelas zonas Norte, Leste e Central.

Até meados dos anos 1980, a região em que o Shopping hoje está instalado era propriedade da municipalidade, sendo uma antiga área devoluta da várzea do rio Tietê1.

Comparativa da região de várzea em 1958 e área ocupada pelo Shopping D em 2020.
Fontes: Geoportal Memória e Google.

A preparação do terreno para a construção do Shopping teve início no primeiro semestre de 1993, pela construtora Cyrela, conforme anúncio veiculado em O Estado de S. Paulo:

PARA LANÇAR UM SHOPPING TÃO ESPECIAL QUANTO O SHOPPING D, NÓS TIVEMOS QUE PREPARAR MUITO BEM O TERRENO.

Há algumas semanas saiu o último caminhão das obras de terraplenagem do Shopping D. Foram 50 mil caminhões de terra, que enfileirados ligariam São Paulo à Belo Horizonte. Foram milhares de horas, homens e máquinas para deixar o terreno perfeito para a construção do Shopping D. Quem passa pela Marginal Tietê na Ponte Cruzeiro do Sul, percebe que a força de atração que este novo ponto vai exercer sobre a cidade. Shopping D. O primeiro shopping center especializado em ofertas permanentes, preços baixos e venda direta ao consumidor. A Cyrela vem trabalhando firme para concretizar essa nova alternativa de negócios para a indústria e o comércio, e se empenhando para entregar cada etapa da obra em seu prazo. E fazer o Shopping D crescer a olhos vistos. Shopping D. O Shopping do Desconto.

Anúncio veiculado em 11 de maio de 1993 em O Estado de S. Paulo

Segundo anúncios da época, o Shopping D se destacaria por abrigar cerca de 300 estabelecimentos comerciais, entre eles “lojas de fábrica, pontas de estoque e outras formas de venda direta ao consumidor, oferecendo “ofertas permanentes e preços baixos”. O conceito buscado pelos empreendedores era o de shopping “self service”, dispensando intermediários e barateando custas nas vendas, visando atrair um público interessado em preços mais em conta, sem apostar em grandes marcas:

Seu projeto foi concebido para aumentar o poder de atração quem vende barato, sem aumentar seus custos de operação. Sua localização e acessos são privilegiados: Marginal Tietê, a dois minutos do centro de São Paulo. Implantado no eixo do sistema rodo-metroviário, o Shopping D vai atrair clientes de toda a cidade.

Anúncio veiculado em 4 de abril de 1993 em O Estado de S. Paulo

A fundação do Shopping ficou a cargo da SCAC:

Graças ao trabalho da SCAC, uma das maiores e mais especializadas empresas de fundações, o SHOPPING D está com toda a fundação pronta para receber a estrutura. É uma das etapas mais importantes da construção. Pena que só da pra ver neste anúncio. E enquanto você lê, a gente continua o trabalho. Afinal, daqui a pouco, todo mundo vai aproveitar os preços baixos, as ofertas permanentes e a estrutura do maior e mais inteligente shopping de venda direta do país. O Shopping D.

Anúncio veiculado em 28 de maio de 1993, em O Estado de S. Paulo
Fundações do Shopping D, 1993.

A estrutura do empreendimento ficou a cargo da Costa Previato:

A Costa Previato é a empresa de engenharia que está levantando a estrutura do Shopping D. Só para você ter uma idéia, a quarta laje já foi concluída bem antes do prazo, e com a maior qualidade, tecnologia e experiência. Em 5 meses serão 57.000 m². Mas você não precisa esperar para conhecer o mais completo shopping de ofertas e vendas direta do Brasil. É só passar pela Marginal Tietê, junto à Ponte Cruzeiro do Sul e ver que o Shopping D está crescendo a olhos vistos.

Anúncio veiculado em 17 de junho de 1993 em O Estado de S. Paulo
Shopping D em construção, 1993.

Antes mesmo de sua inauguração, já era possível encontrar anúncios informando algumas lojas que se instalariam futuramente no Shopping D. Entre elas estava:
Tennishop, Seis de Ouro Discos, Agência do Banco Bandeirantes, Dujô, G. Aronson, DB Brinquedos, Hering Têxtil, Teka, Le Postiche, Lupo, Mc Donald’s, Viajando, Pizzer, Toothpick, Birello entre outras.

Desenho exibindo fachada do Shopping D, 1993

Em 1994, prestes a inaugurar, a descrição do Shopping abrangia uma vasta gama de opções. Entre elas:

  • Lojas de fábrica: roupas e calçados;
  • Pontas de estoque: perfumaria e acessórios;
  • Eletrodomésticos;
  • Grandes lojas especializadas: brinquedos, artigos esportivos e discos;
  • Importados: Loja One Dollar e Loja One to Five Dollars;
  • Serviços: drogaria, banco, produtos veterinários e papelaria.
Shopping D em 1994.

A inauguração do Shopping estava prevista para o dia 5 de outubro (para lojistas) e 6 de outubro para o público em geral. O número de escadas rolantes e a quantidade de vitrines presentes no prédio figuravam entre as estatísticas divulgadas para a promoção do local:

Área total: 56.000 m²
Número de pisos: 2 de lojas e 3 de estacionamento
Escadas rolantes: 4
Elevadores panorâmicos: 3
Número de lojas: 320
Vitrines: 1,28 km
Restaurantes/lanchonetes: 20
Vagas do estacionamento: 1.300 para carro e 20 vagas para ônibus.
Tempo de construção: 2 anos

No dia 6 de outubro de 1994, finalmente o Shopping D foi inaugurado e sem surpresas, conforme noticiado, foi invadido por uma multidão de clientes curiosos:

SHOPPING D ABRE E É INVADIDO POR MULTIDÃO

Proposta é vender produtos a preços mais baixos porque todas as lojas são de fábricas.

Mal abriu suas portas, ao meio-dia de ontem, o Shopping D, que fica na Marginal do Tietê com entrada pela Avenida Cruzeiro do Sul, foi tomado de assalto por uma multidão que esperava desde as 10 horas para conhecer novidades e aproveitas ofertas. O movimento surpreendeu até os donos das lojas. A da Hering, por exemplo, teve que colocar funcionários na porta para regular a entrada das pessoas que disputavam os agasalhos de moleton, cotados a R$ 6,00.

O Shopping D (a letra se refere, segundo os idealizadores do empreendimento, a desconto, diferente, direto, dado e demais, entre outros adjetivos) não é exatamente um shopping, mas um outlet center ou centro de lojas de fábricas. Esse conceito foi lançado por empresários norte-americanos há 22 anos na cidade de Reading, Estado da Pensilvânia. A proposta do shopping, que possui 323 lojas e funciona das 9 horas às 22 horas, é vender produtos mais baratos, porque as mercadorias saem das mãos do fornecedor diretamente para o consumidor, eliminando-se a figura do intermediário.

Trecho extraído de artigo escrito por Rosa Bastos, publicado em O Estado de S. Paulo em 07 de outubro de 1994.
Shopping D, década de 2010.

Ao longo dos anos, o Shopping D perdeu as características iniciais de “outlet” visadas pelos seus idealizadores, abandonando o modelo self service e abrigando lojas que adotam modelos convencionais, com empregados para intermediar as compras, por exemplo.

Atualmente, embora o Shopping D permaneça ativo, a saturação do mercado varejista causada pelo construção de novos de shoppings na região norte de São Paulo, o crescente aumento do comércio online, e a também a degradação dos bairros em seu entorno, parecem ter contribuído para a diminuição de seu público frequentador.

Em 2019, o Shopping D completou 25 anos e não houve qualquer sinal de campanhas de marketing promovendo seu aniversário, promoções ou qualquer coisa do tipo. Até mesmo no período de festas de fim de ano, o Shopping tem demonstrado pouco esforço para atrair clientes, com decorações discretas e campanhas publicitárias praticamente inexistentes.

Aos 26 anos de idade, o Shopping D demonstra sinais de um declínio que não é de sua exclusividade, mas de grande parte dos Shopping construídos há mais de duas décadas. Diante deste cenário, só nos resta esperar para ver se, assim como nos EUA, os Shopping Centers atingirão seu limite, seguidos de um bruto colapso causando o fechamento de vários estabelecimentos desta categoria, ou se o caso brasileiro se diferenciará dos norte-americanos, conseguindo manter vivos seus shoppings.


Urge Salvar o Caiçara (1960)

ESTÁ MORRENDO À MINGUA SEM VIVERES NO LITORAL

Faltam alimentos e as crianças estão sem leite em pó ‒ Imperiosa a campanha para ajudar a população do litoral paulista ‒ Angustiante apelo ‒ A situação reinante em Ilha Bela e S. Sebastião.  

Através de sucessivas reportagens, ilustradas, vivas, pôde o povo de São Paulo conhecer de perto e ao nú, os cruciantes problemas, com que se debate o caiçara dessa região. Insulado, falto de recursos, subnutrido, está a exigir a atenção e os cuidados dos poderes publicos e dos particulares […].  

Sobretudo agora, necessita imperiosamente, mais do que nunca. Para nova cruzada, tão angustiante, quanto a que se apresenta, aos olhos de todos os brasileiros, dos flagelados do nordeste, esses irmãos que nasceram para o sofrimento.  

Noticiaram os jornais que, há um mês, se acham paralisadas as duas unicas barcas que fazem o suprimento da região, a “São Manuel” e a Sud America”, em virtude da greve deflagrada entre os arrumadores do Porto de Santos, motivada pelo pedido de reajustamento das tarifas não atendido, ainda, pelo Governo.  

Pode-se calcular os sofrimentos e as privações daquela gente, com os armazens desprovidos de viveres, as crianças sem leite em pó… e isto, tão perto de São Paulo. Impõe-se providencia imediata e energica, objetivando evitar-se que morram à mingua, sem alimento e sem viveres.  

Trechos de carta de Nilsa do Valle Costa, presidente da Assistencia do Pequeno Caiçara de São Sebastião”, dirigida a Edmundo Monteiro, diretor-geral dos “Diarios e Emissoras Associados.  

Carta publicada no Diário da Noite em 26 de abril de 1960.  

A ortografia da época foi mantida.

Vai desaparecendo umas das últimas profissões medievais (1950)

-“Abaixo a máquina”, resmunga o sapateiro
– Quase já não se vêem “remendões” na cidade – Preferem-se agora os consertos-relâmpago

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Nenhum sensacionalismo na notícia, apenas uma nota de melancolia: estão desaparecendo os sapateiros. Nenhum projeto-de-lei que proibisse os artesãos de trabalhar, nenhuma medida de caráter policial ou estático. Apenas o progresso e a substituição do artesão pelo assalariado da indústria.

DESAPARECEM OS SAPATEIROS

É com êsse tom desinteressado das primeiras palavras desta nota que um intelectual examina o desaparecimento dos sapateiros da capital paulista. E continua agora em tom mais afirmativo: evidentemente não é compatível com o sistema social e a evolução da máquina o artesão. Nos ramos em que o homem não é nem patrão nem empregado, pois êle próprio produz, raros são os casos em que se preservarão. Os médicos constituem um exemplo, assim mesmo, possivelmente, no futuro, terão sua profissão socializada. Das profissões medievais a de sapateiro é uma das que mais subsistiu e só agora vai desaparecendo de vez.

O QUE FAZEM OS SAPATEIROS

Do artesanato praticamente proibido pelas dificuldades de locais de trabalho e pela concorrência do serviço mecanizado que é realizado em preços mais acessíveis, o sapateiros passou a ser telefonista, ascensorista, porteiro de fábricas, ou se ocupa em qualquer outro trabalho mecânico que nada tem a ver com seu ofício. Evidentemente em muitos casos trabalha em fábricas de calçados ou em casas chamadas “Relâmpago” de conserto de sapatos.

“RELAMPAGO”

Em São Paulo quando se introduziu o bonde elétrico foi preciso até oferecer prêmios para que os transeuntes se interessassem pelo novo sistema de transporte. Quando se pretendeu tomar do sapateiro o trabalho de consertar sapatos foi preciso também uma idéia e um meio para consegui-lo. “Relampago” foi a idéia. Consertar os sapatos em poucos minutos, na presença do freguês à espera foi o meio. Outro atrativo também foi introduzido: preços mais baratos. Dessa forma foram as casas mecanizadas destruindo a possibilidade dos artesãos suportarem a concorrência. Hoje, em todo o centro da cidade, raramente são encontrados.

“MALDITA MÁQUINA”

Quando o reporter se põe à procura de um sapateiro para, em tôrno de sua vida, redigir uma nota não tem em mente o significado do ofício, sua utilidade, seus preços. Não. Procura apenas a figura bizarra do sapateiro, em geral um velho imigrado de distantes países. O corredor sombrio e incômodo onde êle trabalha, os fregueses que aparecem trazendo serviço, ou para reclamar a demora dos consertos, os “habitués” que aparecem para nada, são os aspectos que mais nos interessam. Mas se o dia é de sol nossa sorte não é das melhores, e o primeiro que encontramos, num bairro, nos recebe de mau humor:
– MALEDETO JORNALISTE!

E não nos foi possivel conversar com o homem. Já em outro ponto da cidade a recepção foi diferente. É um cidadão de cerca de trinta anos o sapateiro que encontramos. Magro e pálido.

Conversámos com o homem. Seu ódio impotente contra A MÁQUINA era de comover. O sapateiro abriu a boca contra a costuradeira, contra a polideira, contra tôdas as máquinas que afetam seu ofício. Explicou ao reporter que “elas fazem depressa, não há dúvida, mas o serviço não se aproveita, pois dura pouco, deforma o calçado, faz tragédias!”
Enquanto o sapateiro fala, o fotógrafo vai calmamente engrenando sua objetiva para o flash. Mas o homem não concorda com a idéia e não quer ser fotografado. Perguntamos a razão da atitude contra a fotografia. Não explicou bem, mas deu para entender que êle quer paz e a foto no jornal lhe parece um meio de criar caso com a polícia. Partimos sem maiores resultados.

OUTRO SAPATEIRO

Finalmente encontramos um sapateiro como desejavamos. É um dêsses tipos que sugerem fim de uma civilização e lembram os nosso dias líricos de infância no interior do Estado. Com êle esquecemo-nos de quanto é aborrecido e monótono ser reporter e conversamos longamente. O homem fala mal do govêrno, não o do Estado ou da República, do govêrno simplesmente. Fala mal dos funcionários públicos, dos tintureiros, dos bondes, da cidade paulista, fala mal de tudo.
Termina por nos convidar para almoçar. Mas já é tarde e preferimos deixar a reportagem para outra ocasião.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de agosto de 1950

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
*A grafia original do texto foi preservada.

Legenda da imagem 1: Não há muito tempo, eram comuns os homens atrás da pequena mesa fazendo ou remendando sapatos. Hoje, os poucos que há, estão espalhados nos arrabaldes.

Legenda da imagem 2: Em lugar dos humildes artesãos as máquinas e grupos de assalariados realizam em minutos os trabalhos que antes demandavam horas. Para o trabalhador em geral nenhum benefício houve, pois hoje é mais difícil do que antigamente ter dinheiro para o conserto do sapato.