-“Abaixo a máquina”, resmunga o sapateiro
– Quase já não se vêem “remendões” na cidade – Preferem-se agora os consertos-relâmpago
Nenhum sensacionalismo na notícia, apenas uma nota de melancolia: estão desaparecendo os sapateiros. Nenhum projeto-de-lei que proibisse os artesãos de trabalhar, nenhuma medida de caráter policial ou estático. Apenas o progresso e a substituição do artesão pelo assalariado da indústria.
DESAPARECEM OS SAPATEIROS
É com êsse tom desinteressado das primeiras palavras desta nota que um intelectual examina o desaparecimento dos sapateiros da capital paulista. E continua agora em tom mais afirmativo: evidentemente não é compatível com o sistema social e a evolução da máquina o artesão. Nos ramos em que o homem não é nem patrão nem empregado, pois êle próprio produz, raros são os casos em que se preservarão. Os médicos constituem um exemplo, assim mesmo, possivelmente, no futuro, terão sua profissão socializada. Das profissões medievais a de sapateiro é uma das que mais subsistiu e só agora vai desaparecendo de vez.
O QUE FAZEM OS SAPATEIROS
Do artesanato praticamente proibido pelas dificuldades de locais de trabalho e pela concorrência do serviço mecanizado que é realizado em preços mais acessíveis, o sapateiros passou a ser telefonista, ascensorista, porteiro de fábricas, ou se ocupa em qualquer outro trabalho mecânico que nada tem a ver com seu ofício. Evidentemente em muitos casos trabalha em fábricas de calçados ou em casas chamadas “Relâmpago” de conserto de sapatos.
“RELAMPAGO”
Em São Paulo quando se introduziu o bonde elétrico foi preciso até oferecer prêmios para que os transeuntes se interessassem pelo novo sistema de transporte. Quando se pretendeu tomar do sapateiro o trabalho de consertar sapatos foi preciso também uma idéia e um meio para consegui-lo. “Relampago” foi a idéia. Consertar os sapatos em poucos minutos, na presença do freguês à espera foi o meio. Outro atrativo também foi introduzido: preços mais baratos. Dessa forma foram as casas mecanizadas destruindo a possibilidade dos artesãos suportarem a concorrência. Hoje, em todo o centro da cidade, raramente são encontrados.
“MALDITA MÁQUINA”
Quando o reporter se põe à procura de um sapateiro para, em tôrno de sua vida, redigir uma nota não tem em mente o significado do ofício, sua utilidade, seus preços. Não. Procura apenas a figura bizarra do sapateiro, em geral um velho imigrado de distantes países. O corredor sombrio e incômodo onde êle trabalha, os fregueses que aparecem trazendo serviço, ou para reclamar a demora dos consertos, os “habitués” que aparecem para nada, são os aspectos que mais nos interessam. Mas se o dia é de sol nossa sorte não é das melhores, e o primeiro que encontramos, num bairro, nos recebe de mau humor:
– MALEDETO JORNALISTE!
E não nos foi possivel conversar com o homem. Já em outro ponto da cidade a recepção foi diferente. É um cidadão de cerca de trinta anos o sapateiro que encontramos. Magro e pálido.
Conversámos com o homem. Seu ódio impotente contra A MÁQUINA era de comover. O sapateiro abriu a boca contra a costuradeira, contra a polideira, contra tôdas as máquinas que afetam seu ofício. Explicou ao reporter que “elas fazem depressa, não há dúvida, mas o serviço não se aproveita, pois dura pouco, deforma o calçado, faz tragédias!”
Enquanto o sapateiro fala, o fotógrafo vai calmamente engrenando sua objetiva para o flash. Mas o homem não concorda com a idéia e não quer ser fotografado. Perguntamos a razão da atitude contra a fotografia. Não explicou bem, mas deu para entender que êle quer paz e a foto no jornal lhe parece um meio de criar caso com a polícia. Partimos sem maiores resultados.
OUTRO SAPATEIRO
Finalmente encontramos um sapateiro como desejavamos. É um dêsses tipos que sugerem fim de uma civilização e lembram os nosso dias líricos de infância no interior do Estado. Com êle esquecemo-nos de quanto é aborrecido e monótono ser reporter e conversamos longamente. O homem fala mal do govêrno, não o do Estado ou da República, do govêrno simplesmente. Fala mal dos funcionários públicos, dos tintureiros, dos bondes, da cidade paulista, fala mal de tudo.
Termina por nos convidar para almoçar. Mas já é tarde e preferimos deixar a reportagem para outra ocasião.
Diário da Noite, São Paulo, 14 de agosto de 1950
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
*A grafia original do texto foi preservada.
Legenda da imagem 1: Não há muito tempo, eram comuns os homens atrás da pequena mesa fazendo ou remendando sapatos. Hoje, os poucos que há, estão espalhados nos arrabaldes.
Legenda da imagem 2: Em lugar dos humildes artesãos as máquinas e grupos de assalariados realizam em minutos os trabalhos que antes demandavam horas. Para o trabalhador em geral nenhum benefício houve, pois hoje é mais difícil do que antigamente ter dinheiro para o conserto do sapato.