A Mãe Preta e o Quarto Centeário

Mãe Preta

Por Quirino da Silva

Agora que se aproximam os festejos do quarto centenário da fundação da cidade, agora que nos preparamos para tudo mostrar ao estrangeiro, acerca das nossas atividades, enfim, tudo que no período de quatro séculos fizemos, ao estrangeiro que por aqui passar, aquele que antes chamávamos de viajante, e hoje, retorcidamente, se tornou turista. A esses, gostaríamos também, se possível, dizer-lhes do nosso reconhecimento a uma das magníficas figuras quem, a princípio, muito contra-gosto se ligaram à nossa história – desde o momento em que o colonizador sentiu a necessidade de para cá canalizar o braço negro, a fim de que o plantio tivesse mesmo incremento; para que o homem branco pudesse dar conta da árdua tarefa que se propôs, de aproveitar a terra – a terra: “em tal maneira é graciosa, que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo…” Como muito bem disse o senhor Pero Vaz Caminha, aquele que fez o registro civil do Brasil.

Trata-se simplesmente da mãe preta, a mãe de todos os filhos: aquela que, carinhosamente, foi mãe dos seus próprios filhos (quando tinha tempo) e mãe, muito mãe, dos filhos que não eram dela.

Mãe Preta, Lucílio de Albuquerque, 1912. Museu de Arte da Bahia, Salvador.

Sejamos brasileiros: não deixemos que os nossos sentimentos de raiz desapareçam neste instante em que pretendemos render homenagem àqueles que à força de inteligencia, de talento e trabalho, muito fizeram e fazem por este Estado.

Chegamos, é verdade, a um ponto bem elevado: chegamos até a nos ombrear com os povos mais civilizados. Há já muito que declaramos, em carta magna, prescindir do braço escravo negro; há muito, é bem verdade, que as naus portuguesas também não mais aproam nas praias africanas; há muito que, dos sombrios e infectos porões dos navios negreiros não saem a se perder na amplidão dos mares os queixumes, os silenciosos e doridos queixumes da queles que ajudaram a fazer à nossa riqueza.

Mãe Preta, Júlio Guerra, 1955. Largo do Paissandú, São Paulo.

Sejamos brasileiros: lembremo-mos que a mãe preta compartilhou sempre das nossas horas amargas, das nossas horas alegres. Homenageemos pois, a mãe preta, porque nela está simbolizada a bondade, a fidelidade, a amizade de uma raça que muito nos ajudou e ajuda.

Ergamos, se possível, um monumento à mãe preta.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de fevereiro de 1952.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Guaranis Viajados

Brasileiros na Europa é frango novo em galinheiro. Sai do jacá todo encalistrado. Sacode as penas. Olha para um lado, olha para o outro. Começa a admirar as belezas que nem um bobo. Dá uns passeios desconfiados. Comete cada cincada que só mesmo a tiro. Depois dá de se desembaraçar. Então é um perigo. Acaba querendo conquistar todas as galinhas.

É isso sem tirar nem pôr. O brasileiro, com raríssimas exceções, quando viaja pela Europa só pensa em gastar e farrear. Consulta um médico também. Em Lausanne está visto. Para disfarçar.

Seu itinerário não muda. Salta em Bordeaux ou Cherbourg e vai direitinho para Paris. Em Paris já sabe: compra uma bengala, calça, umas luvas e é pândega até acabar o cobre. Um giro pela Suíça é também do programa. Vontade de ser esfolado. Esquecido da lindeza de sua terra, embasbaca-se diante dos lagos enfeitadinhos e das montanhas tão engraçadinhas meu Deus como se nunca tivesse visto maravilhas iguais. Às vezes arrisca uma fugida até a Itália. Ver os museus célebre. Ver a “Madona” de Rafael. Ver o Papa e as catacumbas. Viagem de instrução e piedade dirigida pela agência Cook. Tira uma fotografia entre as pombas da praça de São Marcos e volta com uma reprodução colorida da “Ceia” de da Vinci. E várias medalinhas de santos.

Paris de novo. Últimos dias de Europa. Compra as encomendas dos parentes e amigos. E cai na farra pela última vez. Despede-se do El Garron e do Perroquet. Rasga dinheiro. Banca o trouxa. Sobe à Torre Eiffel. Visita o Museu Grévin. Senta-se pela derradeira vez no terraço do Café da Paz. Arranha mais uma briguinha. Embebeda-se mal acompanhado. E desce no Brasil com gravatas novas mas as mesmas idéias de antes. Só que em vez de meu caro passa a dizer “mon vieux” e a beijar as mãos das senhoras casadas e das outras. Só. No resto é o mesmo.

Ou então são os prêmios de viagem, os meninos e meninas do Pensionato Artístico. Quase todos dão em droga. Saem daqui levando na bagagem os ensinamentos de um Rodolfo Bernadelli ou de um Francisco Murino europeus. É o que se chama insistir no péssimo, se aperfeiçoar no horrível. Voltam ainda piores do que foram.
No entanto a Agência Americana durante a permanência deles na Europa telegrafa de três em três meses anunciando aos povos triunfos formidáveis diante de não sei quem e não sei quem mais e do representante diplomático do Brasil. Coisa falsa, ridícula e de um patriotismo contraproducente.

Não quero dizer com isso que entre a meninada que o governo tem pago para estudar arte na Europa não se contem duas ou três afirmações preciosas. Contam-se sim. Mas só pianísticas. Em matéria de pintura por exemplo tem sido um desastre. Os esperançosos prêmios de viagem saem daqui para se estragarem lá fora irremediavelmente. Da maioria até nunca mais se ouve falar.

E tudo isso por quê? Porque a Europa não está em condições de aperfeiçoar neste ou naquele ramo de arte quem quer que seja? Que esperança. Não é por isso. O motivo é outro. O Brasil sempre andou atrasado em coisas de arte cinquenta anos no mínimo. A orientação dos mestres da terra portanto é a mais obsoleta e errada possível. Resultado: seus alunos desembarcam na Europa com uma educação estética até risível, encontram lá em pleno desenvolvimento princípios e fórmulas de que nunca tinham ouvido falar ou que aprenderam a combater, ficam tontos, pobres diabos desiludidos, e então só de raiva, por um espirito de reação muito engraçado dão para copiar paisagens cinzentas com carneirinhos e riachinhos.

O que a Europa oferece de lindamente moderno, os ensinamentos de hoje literário e artístico, a noção exata das necessidades do instante contemporâneo, tudo isso passa despercebido ou causa indignação aos ingênuos brasis. Viram as costas a todas as realizações do espírito novo que está integrando o mundo no momento em que vivemos. Desprezam ou não compreendem o magnífico das manifestações insólitas de que fala André Lhote. Insólitas e também necessárias porque matam a Arte e a Beleza com maiúsculas. Nada disso. Só têm olhos extasiados para o presente-passado, para as projeções absurdas deste naquele, para a mercadoria multicentenária pela idade e pelo espírito dos museus oficiais.

Não é só. Ainda por cima vítimas de uma fatalidade atroz ficam desconhecendo quase que completamente a parte melhor do passado artístico europeu. Vão à Roma e não vão à Assis. Visitam o Louvre e não visitam o Mauritshuis. E assim por diante. Infelizes.

Há também os políticos, os homens de responsabilidade pública e administrativa, os tais das viagens de recreio e repouso. São talvez os mais cômicos. Voltam sempre admirando Mussolini e dando opiniões sobre a decadência do parlamentarismo em França.

Esses não frequëntam os teatros. São cavalheiros graves. Preferem terminados os espetáculos ir cear com as coristas em restaurantes discretos. Todas as tardes vão tomar café e falar das coisas pátrias (câmbio, política, negócios) no consulado ou embaixada. Geralmente passam a usar polainas. E ganham modos distintos.

Chegam ao Brasil julgando com superioridade os problemas (os magnos problemas) da pátria (da nossa grande pátria cuja grandeza aquilatamos melhor quando dela distantes.
Chegam e visitam logo os jornais. Para esses publicarem a seguinte notícia: “Deu-nos ontem o grato prazer de sua visita o Sr. Coronal José Paiva, chefe da conceituada firma desta praça J. Paiva & Filhos e uma das mais proeminentes figuras da política do Estado.
S. Excia, que acaba de realizar uma longa e proveitosa excursão pelos principais países do velho mundo, acha-se bem disposto e entreteve conosco interessante e animada palestra acerca de sua viagem.

O ilustre patrício trouxe agradável impressão de tudo quanto pôde observar nos meios políticos e administrativos da Europa, principalmente no que se refere ao atual movimento fascista, tendo mesmo palavras de caloroso elogio à ação altamente patriótica de Mussolini, a quem classificou de estadista genial. Sumamente penhorados pela honrosa visita, renovamos ao preclaro republicano os nosso mais sinceros votos de boas vindas”.
É assim. E assim é que está certo. Por Deus do céu.

Pois é isso mesmo. O brasileiro dá um pulo até a Europa e volta botucudo como foi. Reforma o guarda-roupa mas não reforma as idéias. Seu espírito fivela* de crítica e observação faz com que ele se assombre justamente diante daquilo que a Europa tem de horrível e insuportável: o peso de suas tradições milenárias. Nativo da América, moça, livre de preconceitos e de atavísmos, enche-se de veneração incrível por esse passado asfixiante e apodrecido. Ao invés de vaiar gozando a sua superioridade aplaude tamanha inferioridade invejando-a.

É até engraçado. Enquanto o europeu de hoje trata de aliviar as costas do fardo imenso de suas heranças ancestrais, numa ânsia de rejuvenescimento quase desesperada, abrindo janelas para as correntes de ar puro que vêm dos países virgens, o brasileiro com exceções que não contam faz exatamente o contrário: toma de empréstimo tradições com as quais nada tem a ver e volta-se para um passado que lhe é de todo em todo estranho. Caboclo que sempre andou de pé no chão deseja o martírio ridículo de uns sapatos de verniz que absolutamente não foram feitos para ele. Seu lugar é na vanguarda e o teimoso insiste em se colocar na ribeira. Como numa quadrilha caipira o europeu e o brasileiro estão mudando de lugar.

Coisa que entristece a gente. Quando chegará o 7 de setembro da nossa independência espiritual? Independência dentro do minuto universal está claro.

Meus adoráveis patrícios que viajam por isso mesmo deviam se deixar contaminar na Europa pela febre do inédito e do presente que está lá reformando homens e coisas, aprendendo a se integrar no século, a pensar e agir como homens de vinte séculos depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só assim poderão avaliar com justeza essa felicidade que é não possuir tradições. E valerem-se disso.

Mas qual. Não há remédio mesmo. Enquanto houver brasileiros na terra as velharias européias terão admiradores. Ainda há de chegar o dia em que os países de lá conservarão os seus museus de arte e os seus monumentos de história unicamente para serem agradáveis ao Brasil.

Sim. Porque o europeu já está farto de tanto passado inútil e atravancador. Mas desde que existe gente que gosta e paga bem esse gosto é estupidez destruir o objeto de tanto entusiasmo palerma.

Sempre foi função dos trouxas dar de comer aos sabidos. Nem é para outro fim que vêm ao mundo. E o brasileiro é o povo mais trouxa que existe. Campeão universal. Fora de concurso. Membro do júri.

Antônio de Alcântara Machado

*fivela – gíria, em desuso. O sentido é de simplório, caipira, trouxa.

**A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Garotas e Drinks (1946)

– Garção, dê-me um uísquei, uísquei com soda. Não, não, dê-me mesmo sem soda. Olhe, pensei melhor, dê-me com soda. Não, não, dê-me sem soda. Escute aqui, ponha bastante soda nesse negócio. Olhe, garção, não ponha soda nesse uísquei. Nem ponha uísquei. Ah, aquêle bandido!

– Garção, faça-me um coquetel de uísquei, gin, gengibirra, vig, vat 69, coloque uma gôta de moscatel, um pouco de champanha rosada e uma gotinha de parati. Não, não bote cerveja por favor, senão eu me embriago.

Mais um drinque com as garôtas. Algumas gotas de essência etílica no fundo de uma taça e começam a vir à tona todos os ocultos vestígios psíquicos de que, mais do que o homem, a mulher descende do macaco.

– Você viu a Lúcia? Tomou 18 coquetéis na festa da Nadir.
– Também, minha filha, não é de se espantar. Ela já tinha bebido 15 em cada da Amélia.

– Onde você vai com êsse guarda-chuva aberto, querida?
– Não sei, menina, não sei. Só sei que o coquetel em casa da Alzira estava ótimo.

– Chiquinha, Chiquinha, você nem pode sonhar como estava gentil o Marcelo ontem. A princípio se portou comigo com certa indiferença. Mas depois que eu bebi o décimo terceiro coquetel senti que êle cedia a tudo que eu queria.

Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1946.
Desenhos e legendas de Alceu.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

S. Paulo, 1905

[…] Não lhes poderia falar de outra coisa, vindo de S. Paulo, depois de oito annos de ausencia, sinão dessa cidade maravilhosa. Ha vinte annos, eu passei algumas semanas em S. Paulo: era então uma cidade, por assim dizer, academica.

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Ladeira do Palácio, s.a., 1862 [?]. Fonte: Acervo Biblioteca Mario de Andrade
A Faculdade de Direito enchia-a toda. Havia o que se convencionou chamar um meio intellectual: sentia-se por toda a parte a tradição de Alvares de Azevedo, de Varella e dos outros grandes poetas, sentia-se ainda a influencia mais recente de Affonso Celso, de Assis Brasil, de Dias da Rocha; e eram ainda da vespera os Murat, Pompéa e outros cujos nomes os meus leitores encontrarão na lista dos membros da Academia. A politica interessava tambem intensamente. A propaganda republicana, que não valia aqui dois caracóes, tomara alli um grande incremento.

[…] Mas fóra desse terreno intellectual, S. Paulo pouco vali: materialmente, não era mais que uma modestissima cidade provinciana…

Lá voltei, muitos annos depois. O café tinha transformado tudo. Não era mais aquelle meio acanhado e singelo em que os estudantes predominavam. Bairros novos surgiam e á beira das ruas elevavam-se palacios opulentissimos: as fortunas feitas na lavoura refluiam para a cidade e a cidade deixava as suas vestes do tempo da mediania pelos trajes luxuosissimos da riqueza abundante. Mas si se via que os individuos esforçavam-se para construir residencias magnificas, não se podia com razão dizer que o aspecto propriamente da cidade, as suas ruas, as suas praças, os seus logradouros acompanhassem essa transformação. Tinha-se, é certo, inaugurado a Avenida Paulista; mas era a unica e ainda estava muito escassamente modificada.

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Rua João Alfredo, s.a., 1907. Fonte: Acervo Biblioteca Mario de Andrade

Acabo agora de vêl-a: e sahindo daquelle centro onde está o Grande Hotel, não reconheci S. Paulo e tinha todos os motivos para isso, a começar por este muito simples e muito poderoso de que nunca tinha visto aquella S. Paulo, que é inteiramente nova e foi feita nestes ultimos annos. Dois factores concorreram poderosamente para isso, sem contar, já se deixa vêr, o primeiro de todos, que é o genio audacioso e decidido dos paulistas, que são ainda hoje da mesma tempera dos bandeirantes que descobriram quasi todos estes Brasis: a Light Power e o dr. Antonio Prado. Aquella supprimiu as distancias ‒ ah! supprimiu-as, de modo que o carioca resignado aos nossos bondes ronceiros, não pôde ter a menor ideia: creou assim os bairros novos, extendeu a cidade, levou as edificações aos extremos; este é o typo do administrador municipal, preoccupado com o embellezamento da cidade, com o conforto da população, espirito aberto a todo o progresso, attento aos direitos do povo, obediente á lei.

S. Paulo é hoje, graças a isso uma cidade européa, uma pequena reducção de Paris. Eu tenho grande difficuldade em reter nomes de ruas das cidades que percorro a vol d’oiseau; mas sempre direito que tive essa sensação pelo menos duas vezes: numa avenida que me lembrou a dos Campos Elyseos e numa praça cuja illuminação me fez pensar na da Concordia.

E creio que, isso dizendo, synthetiso bem a impressão que trago de S. Paulo… ‒ PANGLOSS

O Paiz, São Paulo, 3 de Abril de 1905.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Contra a onda de crimes

São Paulo continua a registrar quotidianamente uma onda de crimes… O comentário a ser feito a cada um dos casos não interessa a esta coluna, pois a doença que se generaliza pela coletividade, nos indices de violência criminosa em tôda a escala, reclama remédios mais amplos do que uma simples indicação de motivos, dificilmente elimináveis da vida social paulista.

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Centro de São Paulo, B. J. Duarte, 1954

Desconhecemos, em tôda a sua profundidade, que é também fisiológica e moral, as raizes dessa onda delituosa que se espraia. Mas, sem dúvida, muitas razões afloram à superfície, na existência conturbada desta cidade, onde se amontoa o povo nos tugúrios da vida promíscua, comprimido pela febre diuturna de uma competição desbordante dos quadros normais, para chegar a um resultado mínimo e precário.

Efetivamente, as razões psicológicas, derivadas de uma vida cruel, são em sua maior parte as causas mediatas dos crimes que agora se revelam, em acontecimentos espantosamente brutais, na contradição ao conceito superficial de que somos um povo de boa indole.

Primeiramente, esta não é mais uma cidade em que a vida possa ser vivida de maneira normal. Esta é uma cidade sem respiradores, sem elementos de recreio para crianças e adultos, sem valvulas para repouso do esfôrço quotidiano da vida do homem aqui segregado.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

É uma cidade atormentada por congestionamentos, por um infernal rumor, pela falta de transportes, pelas dificuldades de tôda a ordem, opostas à autonomia da pessoa humana.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Sofremos de uma compressão urbana que há vinte anos já o urbanista Anhaia Melo denunciava, ao reclamar uma política de parques de recreio para o paulistano, de parques infantis e para adultos, onde fosse possivel educar a criança e compensar ao maior de idade a perda de substância animica e vital que a competição determina, e que não encontra desafôgo em nenhuma solução psicológica, sentimental ou intelectual.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Um psicólogo que aqui vive descreveu a situação assim criada como uma “tensão potencial hostil entre os indivíduos”, e não é de hoje que o comportamento do paulistano se caracteriza pela cara amarrada, entre cotoveladas e empurrões.

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Cena de “A luta pelo transporte em São Paulo”, Jean Manzon, 1952.

Um dupla solução alimentar e residencial, coroada pelo recreio ativo de crianças e adultos, são os elementos que o poder público precisa colocar diante do problema aflitivo que se está criando em S. Paulo, com o índice de criminalidade e frequência delituosa a que atingimos, e que compõem um tristíssimo quadro, dentro de uma atmosfera temerosa, onde se tornam inúteis as armas de um policiamento obtuso e atrasado.

Diario da Noite, 8 de julho de 1949.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

¹O texto original foi transcrito em sua integralidade, mantendo-se a grafia da época, assim como quaisquer erros tipográficos.

Uma história de horror

O que eu vou contar parecerá a muitos um conto phantastico, tirado de reminiscencias das leituras de Poe, Hoffman ou L’Isle Adam. Eu proprio, na tarde daquelle domingo, perguntei varias vezes a mim mesmo si sonhara, e só me convenci da verdade dois dias depois, quando a tragedia, presenciada em seu prologo terrivel já se consumara, ainda mais barbaramente do que suppunha.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Nessa época, eu cursava o terceiro anno de medicina e trabalhava no serviço do professor X em uma das enfermarias da Santa Casa. Aos domingos, era commum demorar-me depois da visita, e aproveitava a manhã livre de aulas para alguma pequena intervenção cirurgica onde treinasse a minha actividade profissional. Por isso, quando chegou á enfermaria o academico Z, naturalmente que me encontrou na sala, onde só havia, além dos doentes, um dos assistentes do professor.

Z, era nessa occasião, tambem interno do Intituto Pasteur, e por essa razão não estranhamos o motivo de sua chegada. Em seu serviço se apresentara um homem, com os sympthomas já manifestos da hydrophobia, e elle o acompanhara á Santa Casa para internal-o no “quadro forte”. Pediu o nosso auxilio, assegurando que, embroa francamente hydrophobo, o doente se continha. E nós tres descemos até á “sala do banco”, onde começa, verdadeiramente, a parte tragica de meu conto.

Lá, entre dois guardas, deparou-se-nos um homem ainda moço, trinta e cinco annos no maximo, alto, forte, e com uma expressão de doçura nos olhos que nunca mais esquecerei: talvez pelo contraste com o esgazeado que de minuto a minuto traduzia a sua agitação.

Descendo as escadas, soubemos da sua historia. Para salvar um cãozinho de morte cerca, arrancara-o de sob as rodas de um trem. O animal, sentindo-se preso á sua mão, mordera-o.

Haviam passado tres mezes quando, naquella manhã clara de domingo, os primeiros accessos de dispnéa e a crise consequente o assaltaram. O conhecimento de um caso de hydrophobia esclareceu-lhe o mal. E, elle, dentro do circulo do horror dessa revelação, não querendo ser nocivo além de desgraçado, sahira de casa, despedindo-se da mulher e de cinco filhinhos, dera-lhes todo o dinheiro que tinha ‒ uma migalha ‒ e procurara o Instituto, para que lhe amenizassem a morte, já que sabia não poderem jugular o seu mal.

Naquelle instante de lucidez em que o encontramos, esse homem singular, tão cruelmente ferido pelo destino, ainda agarrou as nossas mãos, em uma supplica:
‒ Si não me podem salvar, matem-me para não soffrer! E si quizerem, doutores, podem esperimentar em mim qualquer remedio. Talvez assim, possam depois evitar a outro a desgraça que vai me acontecer.

Eu e meus dois collegas mal podiamos guardar a frieza profissional deante daquelle quadro. Eu, mais moço, e menos affeito, ainda, aos espectaculos de dor, confesso que senti os olhos humidos de lagrimas. Foi por isso, talvez, que alvitrei ministrarmos um alivio. E, com tanto calor defendi essa misericordia, que o nosso assistente se resolveu a pedir uma ampoula de morphina.

Mas, nós não tinhamos pensado nas difficuldades de fazer o bem… Ordens severas, rígidas disposições administrativas, impediram nossa tentativa. Transportal-o até a nossa enfermaria, onde nosso poder era mais amplo, seria perigoso, dada a imminencia da crise.

Tentamos persuadil-o de que entrasse no “quarto forte”.
Nenhum de nós, comtudo, embora familizarizados com o velho hospital, conheciamos aquella dependencia. Ficava ella, então, e creio não ter mudado aos fundos do corredor que dá para a 1ª enfermaria, de molestias de olhos, no pavimento terreo. De quarto só tinha o nome. Era um cubiculo formado pelo angulo de duas paredes, a que outras duas quadraram. Nunca dessas ultimas, havia uma porta pequena, onde se abria, por fóra, um por fóra, um postigo. Ao fundo, uma janella, fechada, com pesados trincos, e o chão de ladrilhos, eis o que era.

Como era natural, o homem recusou entrar. Aquella jaula aterrorizou-o. Eu olhava tudo, pasmo de que se tratassem homens daquella maneira. Depois parecia-me sem a menor segurança a prisão, com as duas paredes construidas até a altura de dois metros apenas, e faceis, por consequencia de serem galgadas, maximé, por um louco ou um hydrophobo.

A situação complicava-se. Ao vis da “sala do banco” para o “quarto forte”, tivera elle de atravessar uma das vastas gallerias internas, abertas de espaço a espaço por portas em ogiva. Como é sabido, a luz e o ar incommodam, horrivelmente, o atacado de hydrophobia.

A inflammação terrivel da garganta, e a crescente necessidade de respirar causam-lhe, então padecimentos insupportaveis.
Eu vira aquelle homem, a cada porta que passava, e sob o clarão do sol e a corrente de ar, agarrar-se ás paredes em busca de sombra, subir por ellas ensanguentando as unhas na escalada impossivel.

Depois, já nos cercava um grupo de curiosos. Serventes brutaes e boçaes, rindo aparvalhados daquellas scenas, fugiam si o pobre delles se approximava. E elle, que ainda comprehendia, chorava e gritava que não fugissem que ainda estava bom, que não queria fazer mal a ninguem!

Nós estavamos parados em frente ao “quarto forte”, e eu deixei que elle repousasse a cabeça allucinada em meu hombro. Foi quando se chegou a irmã de caridade daquella ala da Santa Casa. Era já velha, magra, e seu sotaque francez tornara mais irritante a sua fala desgraciosa. Com pasmo de todos, a serva de Deus intimou-nos a enjaular o misero antes que uma crise o assaltasse. E sem que ouzassemos responder, a sua ordem foi comprida por dois serventes reforçados, que atiraram o homem para dentro do “quarto” e fecharam logo a porta.

Casa Maternal de Vila Clementino, autoria desconhecida, 1959c. (Foto sem ligação com o  texto)

Ainda ouvi os seus gritos. Mas, meus companheiros me levaram dali. Soube, mais, que o meu pedido para que lhe dessem comida e um lençol fôra desattendido. Podia se enforcar com o lençol, disseram, e a comida de nada adeantava porque o hydrophobo não come.

Como disse de inicio, eu mesmo pensei que tivesse sonhado. No dia immediato, porém, contei o occorrido ao meu professor de microbiologia. Elle manifestou desejos de saber como passara o homem. Creio até que tencionava tentar um tratamento, com dóses massiças de alcool, injectadas na espinha.

Na terça-feira, não sei porque, não fui á Santa Casa. Chegando a quarta-feira, logo cedo tomei informações.
O homem morrera. Naquelle domingo á tarde, conseguira saltar a parede baixa, e puzera em polvorosa toda a enfermaria. Fôra caçado a laço, e trancafiado de novo. Seu cadaver deveria estar sendo autopsiado.

Não parei ahi as minhas pesquizas. Indaguei o resultado da autopsia.
Ella positivara um caso de loucura. Aquelle homem não era um hydrophobo, mas um nevropatha que, enloquecido, se suppuzera atacado de hydrophobia. A lembrança de um caso, gravado em sua mente morbida, facilitara a reproducção do quadro symptomatico que um exame demorado talvez aclarasse. Isto não fôra possivel e elle morrera de loucura, ou de fome.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Ainda soube de mais um caso, do mesmo “quarto forte”. Uma menina, linda loira, de nove annos, que morrera hydrophoba, e que, no accesso, arranhara a cara de um medico piedoso, ao abrir este o postigo para observal-a.
O medico si tratara, em tempo, e evitara a molestia.

Mas, nunca mais pude esquecer aquelle louco, a quem devo a impressão mais dolorosa de meu contacto com a medicina.

Helio Silva

Correio Paulistano, São Paulo, 7 de abril de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

 

Enchente de 1919: Relato

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Efeitos da enchente [rua não identificada]. Fonte: A Vida Moderna, 12 fev. 1919.
“Logo no início de janeiro de 1919, os temporais vieram com uma violência implacável. As enchentes foram torrenciais. Ao redor da área de confluência dos rios Tamanduateí e Tietê, densamente povoada, as consequências do dilúvio foram calamitosas. O cronista ‘P.’ se decidiu a fazer a crônica da tragédia.

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A Rua Tapajós, transformada em “grande canal”. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Fui ontem com alguns amigos, ver a enchente do Tietê, sobre a qual corriam pavorosas versões na cidade, chegando-se até a dizer que a Ponte Grande viera abaixo… Fomos, como toda gente por mera curiosidade. Há tempo não se registrava uma enchente assim!

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Um aspecto da Avenida da Cantareira. Fonte: Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

O tipo de gente que acorreu para ver o mar de água barrenta, que como por um nefando prodígio se formara num instante ao sopé da cidade, era da mais variada, como se podia notar pelos seus recursos de acesso. Parte fora de carro, parte de bondes e outros a pé. Todos se apertavam e se acotovelavam no alto da Ponte Grande, que afinal e felizmente não ruíra, para alcançar o maior panorama possível. Dali, ‘P.’ continua a narrar suas impressões.

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De volta para a casa, depois do trabalho. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Cansados os olhos da água monótona, a correr violentamente sob a ponte e a se espalhar até muito longe, a gente se arranca, afinal, a esse espetáculo.

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O serviço de transportes na Rua Tapajós. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Assim os magotes de espectadores vão se revezando na balaustrada da Ponte Grande, como na galeria de um grande teatro ao ar livre, num entre-e-sai fervilhante. Mas a missão de ‘P.’ é de outra natureza, e ele se demora pelos arredores.

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Nas imediações da Ponte Grande, milhares de pessoas desabrigadas. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Eu não me dou por satisfeito. Quero ver ainda umas ruas vizinhas à Ponte Grande e à Ponte Pequena, onde habitam famílias das mais pobres e humildes da cidade. Mal dou alguns passos porém e sou abordado por um italiano que não sei por que me reconheceu. E sem que lhe perguntasse nada, o pobre homem conta-me a sua desgraça: a casa inteira invadida pelas águas, todos os trastes perdidos – até 120 mil-réis que guardara tão bem guardado! Para cúmulo, ainda a mulher está doente, desde que lhe nasceu o quinto filho, e todos estão desabrigados sem saber para onde ir, nem o que comer… – Che disgrazia, signore! Che disgrazia… E, ao saber que muitas famílias foram colhidas pela mesma desventura, e que em algumas houve mesmo mortes – só então me arrependo da despreocupação e da indiferença com que há instantes olhava a enchente, e só então me revolto contra as troças divertidas que os curiosos faziam na Ponte Grande e até contra os lindos versos de Alberto de Oliveira que um de nós murmurava tranquilamente, sem um pensamento para os desgraçados…

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Um aspecto na Ponte Pequena, por onde se pode avaliar o volume das águas. Fonte: A Cigarra, 15 fev. 1915.

Também a autoridade pública ignorava por completo a sorte dos flagelados. À parte uma ou outra iniciativa dos bombeiros para salvar alguns indivíduos ou famílias totalmente ilhadas, ou tentar resgatar vítimas de desabamentos, nada mais havia. Nenhum plano de prevenção das enchentes ou para minimizar suas consequências, nenhum socorro ou acolhimento provisório dos desabrigados, nem rações de alimentos, nem roupas, nem banhos, nem vacinas, nada, simplesmente indiferença. Como se o sinistro houvesse acontecido em outro lugar do globo, ou num outro tempo remoto, envolvendo gente completamente estranha e distante […].”.

Uma excelente matéria a respeito das enchentes de 1919 pode ser conferida no site Sampa Histórica, do nosso colega Felipe Alexandre Herculano.

Fontes:

Texto
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.29-30.

A crônica citada por Sevcenko e assinada pelo cronista “P.” pode ser conferida em:
A Enchente. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 fev. 1919. Coisas da cidade, p.5.

Imagens

As enchentes em S. Paulo, A Cigarra, São Paulo, 15 fev. 1915, p.19.
Effeitos da enchente, A Vida Moderna, São Paulo, 12 fev. 1919, p.24.

 

S. Paulo é uma cidade onde não acontece nada…

ALGO MÁS

Ha muitos annos, esteve em S. Paulo certo especialista em composição typgraphica, o qual veiu contratado para trabalhar a serviço de uma grande casa editora. Nem bem chegou, portanto, começou a ganhar dinheiro. Aqui viveu feliz um, dois, tres mezes. Depois, começou a entristecer. Os amigos e conhecidos, chegavam-se a elle e perguntavam, apreensivos:
– Mas, que é que você tem, homem? Falta-lhe alguma cousa?
O typographo não respondia. Mudo como um peixe. Tudo, aliás, em sua vida estava em ordem; o lar, a saude, a situação financeira… Nada existia que justificasse aquelle abatimento espiritural.
Em certa occasião, porém, afim de se vêr livre de tantas e tão incommodas perguntas, o typographo abriu-se:
– Vou-me embora para a Allemanha. S. Paulo é uma cidade onde não acontece nada…

Estava explicado, afinal, o mysterio daquella tristeza intima. Tratava-se de um homem, cujo temperamento não se acostumava com uma vida morna, insipida, sem vibrações.
Teria razão o typographo? S. Paulo será, de facto, uma cidade, onde nada acontece?
Depende. Depende sobretudo do temperamento de cada qual. Porque, afinal, onde quer que se encontre o homem, ha “cousas acontecendo”. E cousas “interessantes”: tragedias, crimes, desastres, escandalos, etc. Mas, ás vezes, isso não basta. É preciso “algo más”. Foi o que se deu, provavelmente, com o typgrapho allemão. – C.

Diário Nacional, 10 de novembro de 2018.
Fontes:
Hemeroteca Digital Brasileira
Arquivo Histórico Municipal de São Paulo

Frio na Pauliceia

A columna mercurial desce.

Temperatura mínima do dia: 11… 9… 7… 5…

Pelles, lans de Rodier, “sweaters”, “pull-overs”, luvas grossas.

Nem um único chapéo de palha em toda a cidade. Nas ruas, os narizes fumegam; nos bars, os “grogs” fumegam; nos telhados, nenhuma chaminé fumega. Oh! as chaminés denunciaderas do “coi-de-feu” bem intimo, com poltronas lascivas de coiros bons, “tea-wagons” enverniados e silenciosos, “magazines” coloridos e interessantes! Nada disso: S. Paulo não se aquece. Segue o exemplo do seu padroeiro: entrega-se christãmente ao martyrio.

O paulista, vaidoso, olhando as ruas cinzentas de asphaltos, cimentos e ardozias, os plátanos pallados pelas tesouras omnipotentes da Prefeitura, a gente apressada, calafetada, toda de escuro; esse bom paulista, ingenuo e viajado, esfrega as mãos trabalhadoras vestidas de luvas mornas e diz  cadencialmente, gostosamente, escancarando muito as vogaes:
– Sim senhores! Como S. Paulo está adeantado! Até parece a Europa…

Parece. Parece, porque não é. E não é, porque esse mesmo paulista, ingenuo e viajado, não tem a noção requintada do conforto. Elle é o pobre homem que, no seu automovel aberto, no seu “living-room” gelado, no seu club glacial, nos seus theatros frigidíssimos, é obrigado a se conservar embrulhado nas suas chevlótes, no seu “cache-cól”, nos seus guantes, nas suas polainas, engulindo aspirinas perigosas ou Cognacs suspeitos. Entretanto, mais barato que duas pequenas visitas de um médico e uma grande conta de pharmacia, custa um bom calorzinho familiar… E, para esse calorzinho, já não digo que se installe uma “chauffage centrale”, nem mesmo uma lareira de lenha ou carvão, nem mesmo uma “salamandre” provinciana, nem mesmo um “poéle” bohemio de “atelier”:  basta um radiadorzinho electrico. Não é cousa assim tão cara, que diabo! E mesmo que o fosse: ás vezes, como agora, por exemplo, quando a columna mercurial desce, o café sobe…

Urbano (pseudônimo de Guilherme de Almeida)

Diário Nacional, 21 de abril de 1927.

A grafia original foi mantida.

Texto disponível em: Hemeroteca Digital Brasileira
Imagem: Acervo IMS