O Caso das Máscaras de Chumbo

No dia 20 de agosto de 1966, no Morro do Vintém, região próxima a Niterói, os corpos de dois homens em estado de decomposição foram encontrados. As circunstâncias bizarras que permeiam os últimos dias de vida de Miguel José Viana e Manuel Pereira da Cruz, bem como o local onde seus corpos foram encontrados e as investigações acerca de sua morte, eternizaram o Caso das Máscaras de Chumbo como um dos maiores mistérios da história do Brasil no século XX.

A seguir, apresento-lhes um texto composto por uma coletânea de reportagens e fotografias que abordaram o caso à época dos acontecimentos.

Miguel e Manuel

A asma tomou conta do corpo do menino Miguel José Viana quando ele ainda cursava o primário. A doença, que lhe proibia qualquer esforço físico, fê-lo arredio, distante dos colegas quando fora da sala de aulas. Sempre que tentava juntar-se aos outros meninos, nas brincadeiras do recreio, o esforço lhe provocava uma nova crise asmática. Seu divertimento era a leitura das revistas de histórias em quadrinhos, cujos heróis começaram a povoar a sua infância, isto até os doze anos. Quando ainda não havia completado os catorze, o pai surpreendeu em seu quarto, numa das gavetas da pequena escrivaninha, vários envelopes selados: é que o filho de há muito passara a receber lições por correspondência de uma “escola de eletrônica” de São Paulo. Lições que eram pagas com o produto das revistas que, depois de lidas, o menino Miguel ia vender, por metade do preço, na calçada da igreja principal de Campos. Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Antes dos dezesseis anos, Miguel já atendia a chamados para consertar rádios, instalar alto-falantes, além de outros serviços menos importantes.

Foi anos depois, quando estagiava numa empresa de aparelhos elétricos e eletrônicos, no Rio, que Miguel conheceu Manuel Pereira da Cruz. A amizade foi rápida — e seria duradoura. Com o transcorrer dos anos, ambos se tornaram profissionais conceituados, em Campos, e sua importância cresceu quando a cidade começou a retransmitir os programas de televisão das emissoras do Rio. Ampliava-se, assim, o campo de atividades dos dois técnicos. Quando se casaram, as respectivas mulheres se tornaram também amigas íntimas. Era como se a família de um fosse o prolongamento da família do outro.

Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana

Harmonia absoluta, entendimento completo. Apenas uma ou outra divergência, quando Miguel mostrava-se inclinado a converter-se ao espiritismo, de que seu pai era crente fervoroso e obstinado. Além de “seu” Amaro, seu pai, Miguel passou a sofrer, nos últimos anos, a influência de um outro kardecista, Hélcio Correia Gomes, que dentro em pouco se fazia íntimo dos dois. A ascendência do espírita Hélcio sobre seu marido começou a preocupar não apenas D. Elza, mas também D. Neli, mulher de Manuel Pereira da Cruz. Reclamavam ambas, particularmente, contra o fato de Hélcio entrar a qualquer hora na casa dos amigos, mesmo quando estes ali não se encontravam.

Muitas vezes, Miguel, Manuel e Hélcio demoravam-se conversando horas seguidas, e já então, como D. Elza certa vez surpreendera, a conversa não era mais apenas sobre problemas de eletrônica, mas sobre assuntos espíritas. Por várias vezes, nessas conversas, fôra feita referência, por Hélcio e Miguel, ao “planeta de muitos sóis”; e noutra ocasião, Miguel disse ao pai:

Estou certo de que a Terra não é o único planeta habitado. Muitos outros planetas também o são. Atualmente venho fazendo estudos a respeito e estou cada vez mais convicto de que as possibilidades de o homem chegar a um outro mundo habitado são muito maiores e mais fáceis do que se imagina.

Miguel José Viana

As longas conversas dos três — que sentiam a hostilidade de D. Elza e D. Neli — já não se realizavam na casa de Miguel ou Manuel, mas no jipe dos dois técnicos, estacionado em frente à residência de Miguel. E a confabulação noturna muitas vezes varava a noite, até o nascer do sol. Instintivamente, D. Elza e D. Neli começaram a perceber que o plano ou projeto, o que quer que fosse que Miguel, Manuel e Hélcio traziam na cabeça, estava prestes a se consumar.

A explosão de Atafona

Em 13 de junho de 1966, uma forte explosão, na residência de Manuel, aumentou ainda mais a inquietação das duas mulheres. A formidável explosão, acompanhada de intensa luminosidade, registrada na praia de Atafona foi ouvida num raio de dez quilômetros. E tal foi o seu impacto que chegou a sacudir o prédio da Prefeitura de São João da Barra, cinco quilômetros além.

Sabe-se, mais, que, poucos dias antes da explosão em Atafona, a bela Isabel, irmã de Miguel José Viana, deste ouviu a mesma frase que ouviria dois meses depois, poucos dias antes dos acontecimentos no Morro do Vintém. A frase é esta:

Muito em breve vou cumprir uma missão muito importante. Mas é segredo que não posso revelar a ninguém.

Miguel José Viana

Sim, alguma coisa estava prestes a acontecer. Alguma coisa da maior seriedade. É o que mostravam a fisionomia grave de Miguel e Manuel, a presença já agora arredia de Hélcio e, também, as misteriosas experiências que horas seguidas, dias seguidos prendiam Miguel e Manuel no pequeno laboratório improvisado na casa do primeiro. Enquanto isso, faziam-se mais assíduas as visitas de Manuel Pereira ao Centro Espírita Bom Jesus, em Campos. E na sua estante, os livros sobre eletrônica já se misturavam às obras de Allan Kardec e Chico Xavier.

Foi na sexta-feira, 12 de agosto, que Fernando José, vizinho e velho amigo de Miguel e Manuel, surpreendeu-os, na oficina instalada na casa do último, martelando um cano de chumbo. Curioso, perguntou de que se tratava. A princípio, os dois técnicos guardaram silêncio. Mas, ante a insistência do vizinho, lhe dão uma resposta um tanto nebulosa:

Estamos criando qualquer coisa que evitará o fim do mundo, em 1968, quando do grande ciclone que arrasará grande parte do nosso planeta.

E nada mais disseram. Naquela noite mesma, quando D. Neli foi à oficina, encontrou Miguel e Manuel provando diante de um espelho alguma coisa que se assemelhava a máscaras de chumbo.

Ida a São Paulo

A partir de então, os acontecimentos se precipitam. Na terça-feira, dia 16, Manuel acorda D. Neli, metade da noite, e lhe informa da viagem que fará a São Paulo, no dia seguinte, em companhia de Miguel. E lhe pede que conte o dinheiro — dois milhões e trezentos mil cruzeiros — e o acomode num pequeno saco de plástico, destinado à compra em São Paulo de um Volkswagen.

Precisamos, eu e Miguel, de um carro para melhor atender aos fregueses. Vamos comprá-lo em São Paulo.

No dia seguinte, 17, os dois seguem para a rodoviária, no centro de Campos, onde tomarão o ônibus das 9 horas. Lá já se encontra Hélcio Gomes, que chegara minutos antes. Nem Miguel nem Manuel levam qualquer bagagem, fato que deixou intrigada D. Neli. E é sem bagagem que ambos chegam a Niterói, na tarde daquele mesmo dia.

O roteiro de Miguel e Manuel em Niterói, no dia 17, já foi o seguinte:

Às 15 horas, ambos estiveram na Casa Brasília, um armarinho da Rua Coronel Gomes Machado, onde adquiriram duas capas impermeáveis, para chuva, e pelas quais pagaram Cr$ 18.000. Às 15h30m, entram na loja de ferragens de Ernane Carvalho Filho, conhecido de Manuel, e ao qual informam da viagem a S. Paulo — não mais para comprar o “fusca”, mas material para aparelhos de televisão, que não é encontrado no Rio. Quando Ernane tenta prolongar a conversa com os dois técnicos, Manuel despede-se, rápido:

Até outra vez, meu caro. Estamos com pressa.

Manuel Pereira da Cruz

Às 16h30m, os dois entram no Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, e são atendidos por Lourdes, a bela adolescente filha do dono da casa, a quem pedem uma garrafa de água mineral, bem gelada. Nenhum dos dois bebe da garrafa, ali no bar, levando-a consigo e prometendo devolver depois o casco. “Os dois pareciam muito nervosos”, dirá mais tarde aos policiais a jovem Lourdes.

São exatamente 16h35min quando Miguel e Manuel deixam o Bar de Relvas, na Rua Marquês do Paraná, em Niterói. Não seriam mais vistos, a não ser três dias depois, quando seus corpos foram encontrados bem no alto do Morro do Vintém, conforme a denúncia anônima que o Comissário Oscar recebeu pelo telefone na tarde chuvosa do dia 20 de agosto.

Corpos encontrados

Era uma tarde de sábado, 20 de agosto. Na pequena sala dos detetives do 2.° Distrito Policial, em Niterói, o cigarro esquecido no canto da boca, os pés estendidos sobre a escrivaninha, o Comissário Oscar, velho e experimentado policial, Durante todo o dia, o plantão se arrastara monótono, e assim prometia continuar noite adentro, quando, de repente, o telefone tocou. Sem pressa, o comissário recolheu os pés, jogou a ponta de cigarro no chão, amassando-a com o pé, e atendeu:

— Segundo Distrito.
— Da delegacia, não é? Pois tenho uma informação a dar. Dois homens foram assassinados no Morro do Vintém, bem lá no alto. Um deles é um famoso jogador de futebol.
— Mas, onde exatamente? Qual jogador? Alô? Quem está falando? Alô!…

Como resposta, o comissário ouviu o ruído característico do telefone que acabara de ser desligado. Durante meia hora, aguardou inutilmente que o aparelho voltasse a tilintar. Como o aparelho não voltou a tocar, decidiu ir até o local indicado pelo informante anônimo. Aos policiais que o acompanhavam disse apenas que se tratava de uma diligência de rotina no alto do Morro do Vintém. Mas galgar o morro era proeza que o comissário viu logo ser-lhe impossível. A subida é íngreme. A solução era apelar para o corpo de bombeiros.

Morro do Vintém, Niterói.
Morro do Vintém, Niterói.

Quando os bombeiros alcançaram o cume do morro — “bem lá no alto”, após uma caminhada de mais de uma hora, conforme a indicação telefônica (e também de um policial que fora informado por garotos que empinavam pipa na região e avistaram os rapazes) — encontraram, de fato, os corpos de dois homens que os primeiros indícios (começo de putrefação) mostravam terem sido mortos havia já várias horas. Os mortos estavam bem vestidos, trajando ternos, sapatos de sola de borracha, gravatas, e sobre ligeiramente cobertos pelo mato, e nenhum deles apresentava qualquer sinal de violência. Sobre eles, também estavam as duas capas impermeáveis, adquiridas dias antes na Casa Brasília. A princípio, evidenciou-se que não se tratava de um latrocínio, pois os mortos traziam consigo, intactos, além de razoável soma em dinheiro, os seus pertences: óculos, alianças de ouro e relógios de pulso. No entanto, o dinheiro encontrado não chegava a 10% da quantia com que os dois rapazes deixaram Campos. E o maior mistério, um detalhe insólito: junto aos corpos, ao lado de uma garrafa de água mineral Magnesiana, e um pacote com duas pequenas toalhas., achavam-se duas máscaras de chumbo grotescamente modeladas.

Os corpos no momento em que a perícia chegou ao local

Também foi encontrado no local um lenço comum, branco, com as iniciais A.M.S. bordadas. Um outro problema, descobrir seu dono. Fósforos, cigarros, escova de dente e um jornal do dia, também foram encontrados no local.

Recolhidas nos bolsos interiores de suas vestes, as carteiras deram a identidade dos mortos: Miguel José Viana, de 34 anos; e Manuel Pereira da Cruz, de 32 anos.

Bombeiros verificando os corpos

Além das máscaras, foram encontrados com os cadáveres do Morro do Vintém algumas estranhas anotações, inclusive equações que à primeira vista, ao entendimento leigo, pareciam símbolos cabalísticos. Uma dessas anotações dizia:

Às 16h30m — estar no local determinado.
Às 18h30m — ingerir cápsulas. Após efeito, proteger metade do rosto com máscaras.
Aguardar sinal marcado.

Noutro pedaço de papel, vinha escrito:

Domingo, uma cápsula após a refeição.
Segunda-feira, uma cápsula ao amanhecer, em jejum.
Terça-feira, uma cápsula após a refeição.
Quarta-feira, uma cápsula ao deitar.

As anotações misteriosas

Um terceiro papel trazia escrito este lembrete: “Comprar tubo de linha de 500 metros.” Encontrou-se, ainda, ao lado do corpo de Miguel, uma grande folha de papel prata-azul, idêntico aos usados nas embalagens de chocolate; e também tabelas comparativas de valores de equações eletrônicas. Uma delas era esta:

(Tal equação foi, mais tarde, identificada por um matemático como a expressão básica da Lei de Ohm, representando a energia movida por uma resistência).

Uma segunda fórmula, encontrada no mesmo local, vinha assim expressa:

É obvio que se trata de uma agenda com instruções para os rapazes. O “ingerir cápsula” chegou a confundir os entendidos, que acreditavam ter Miguel e Manuel tomado algum remédio, que poderia ter causado suas mortes, tendo para isso levado a garrafa de água mineral. Mais um mistério para ser resolvido: a letra em que foi escrita esta pequena agenda não pertence nem a um nem a outro dos dote rapazes mortos. Teria sido um terceiro personagem o autor deste bilhete?

As máscaras estavam lá. Típicas para proteção dos olhos contra luz intensa. Talvez calor exagerado ou mesmo radiação. As capas impermeáveis, absolutamente desnecessárias naquele dia. Todos os requisitos para um bom caso policial.

As Máscaras de Chumbo

Reconstituindo-se os passos dos dois, verificou-se que eles deixaram Campos às 9h da manhã, chegaram à rodoviária de Niterói às 14h30min, compararam as capas às 14h45min e a água mineral às 15h15min. Cinco minutos depois, iniciavam a subida do morro, para estar lá em cima às 16h30min. Se não pararam no caminho, seguindo sempre em frente, eles chegaram na clareira da morte sem um minuto de atraso, uma vez que a subida, para quem já conhece o lugar, leva exatamente 1h10min. Tudo cronometrado como numa experiência de eletrônica.

Corpos sendo retirados do Morro do Vintém

Seguindo esta hipótese, a morte dos dois deve ter ocorrido por volta das 18h30min, do dia 17. O bilhete mandava ingerir as cápsulas a essa hora. E, após o efeito, proteger o rosto com as máscaras de chumbo – e aguardar o sinal marcado. As máscaras , que poderiam ter sido levadas no bolso do paletó, estavam caídas ao lado direito dos corpos. Logo, ou o efeito matou os dois, ou eles morreram na hora do sinal, porque as máscaras já se encontravam em suas mãos, fora dos bolsos.

Máscaras, anotações e recibos

A investigação

Inicialmente, a polícia acreditou que a vinda deles a Niterói se devesse a um encontro com um terceiro personagem. No entanto, faltou base nas investigações. Um latrocínio explicaria alguns detalhes, mas deixaria muitos outros sem explicação. Dois milhões e pouco estavam envolvidos no caso e haviam desaparecido. Bilhetes, máscaras e fórmulas secretas teriam sido deixados no local para confundir a Polícia.

Investigações no local em que os corpos foram encontrados

Mas, como os cadáveres não apresentavam sinais de agressão e a “causa mortis” ainda era desconhecida, foi afastada esta possibilidade, voltando-se então para homicídio. O suposto encontro com um terceiro personagem, a viagem interrompida para São Paulo, a pressa com que Manuel e Miguel subiram ao morro, como se estivessem em cima da hora, reforçam esta possibilidade. Mas como teriam sido mortos? Uma experiência, no ramo da eletrônica, mal sucedida? Seriam eles induzidos a tomar alguma substância que lhes foi letal? O certo é que os cadáveres apresentavam uma cor rosada e não se constatou carbonização, o que certamente teria acontecido se tivessem levado uma descarga elétrica violenta.

Quatro outras hipóteses foram levantadas, dentro de um quadro de homicídio. Uma delas era o contrabando. Os dois teriam sido liquidados por elementos de uma ou de outra organização. Aquele morro é sabidamente um reduto de contrabandistas, e os dois sempre mostraram interesse em peças estrangeiras, difíceis de ser encontradas.

Logo após a descoberta dos corpos, Dr. Venâncio Bittencourt, delegado-titular do 2º Distrito afirmou:

Todo crime praticado por homens fatalmente será elucidado por outros homens. Além do mais, nem se sabe ainda se foi mesmo crime. Pode ter sido um pacto de morte. Logo veremos.

Dr. Venâncio Bittencourt
Dr. José Venâncio Bittencourt

Encolhido num canto da sala, o cigarro esquecido no canto da boca, o Comissário Oscar escutava. Mas a sua equipe já estava em ação.

Crime? Suicídio? Ninguém sabia ao certo. A segunda hipótese levantada era a de espionagem. Segundo o correspondente de uma agência estrangeira, para quem a coisa não tinha mistérios: trata-se do “assassinato de dois espiões que pretendiam instalar nas proximidades do Rio transmissores de alta potência”. A possibilidade de espionagem não foi abandonada, mas os fatos provaram que os rapazes não possuíam meios de estar ligados a organizações internacionais. Os adeptos de James Bond sofreram com isso um revés, mas insistem afirmando que um bom espião é aquele cujas atitudes são perfeitamente normais e não levantam suspeitas.

Uma terceira hipótese afirmava que os rapazes eram homossexuais e teriam sido mortos por conta de sua relação. Entretanto, logo de início esta hipótese foi descartada porque, segundo matéria publicada no Jornal do Brasil, em 24 de agosto de 1966, foi levantada por um investigador do tempo das ceroulas, que desconhecia a existência do slip, zazá e brigite, considerada concepção moderna de cuecas nos anos 1960.

A quarta hipótese, e que agradava mais aos policiais, era a de que se tratava de uma experiência científica. Fórmulas secretas, máscaras de chumbo (chumbo-lençol, maleável), grande conhecimento de eletrônica e ausência total de problemas financeiros, levavam à polícia apostar suas fichas nesta hipótese.

No dia seguinte a notícia da morte dos dois técnicos, residentes na cidade e ali bastante conhecidos, tomou conta de Campos. Nas esquinas, nos bares (diante da “batida” feita com a esplêndida cachaça local), nas portas das lojas, os campistas falam sobre o assunto, discutem-no, sugerem hipóteses e os grupos se dividem: uns afirmam tratar-se de assassinato; outros, de suicídio. E nalguns pontos da cidade a discussão já se acalora, enquanto as emissoras transmitiam de instante a instante pormenores do caso e os quatro jornais locais esgotam suas edições.

Mas, na residência dos mortos, duas mulheres, D. Elza, viúva de Miguel José Viana, e D. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz, mantinham-se silenciosas. Assim um repórter as encontrou, caladas, fechadas no luto recente, os olhos circundados por olheiras a denunciarem seguidas noites insones. Em torno sete crianças, o ar espantado diante dos estranhos que nos últimos dias sitiavam suas casas, vez por outra perguntavam, em tom choroso, quando papai iria voltar.

D. Neli, viúva de Manuel, na companhia dos filhos Maxwell e Rosangela

Na casa de D. Neli o repórter procurava obstinadamente arrancar qualquer coisa de “seu” Pereira, pai de Manuel, um dos mortos. Conseguiu, finalmente, quando “seu” Pereira o levou pelo braço até um dos aposentos da casa e lhe mostrou fragmentos de um material que dizia ser explosivo.

Dias atrás, meu filho Manuel encontrava-se aqui em casa na companhia de Miguel e Hélcio, amigo dos dois, quando ouvimos uma explosão. Uma coisa horrível. Parecia que o mundo ia acabar.

Seu Pereira
Seu Pereira
O irmão de Manuel em seu laboratório.

Na casa de D. Elza, viúva de Miguel, “seu” Amaro, espírita convicto, também procura vafurtar-se a qualquer comentário. O repórter insistia, a conversa arrastava-se, vaga, cortada de cuidadosas reticências. Mas, às tantas, Isabel, filha de “seu” Amaro, interveio no diálogo que parecia cada vez mais impossível. Num desabafo, a voz rouca, ela disse:

Eu sei, eu sei o que aconteceu. Muitas vezes Miguel me falou a respeito de uma experiência muito importante que iria fazer. Nos últimos dias, como ele se mostrasse calado, a fisionomia preocupada, compreendi logo que chegara o momento. Depois, foi aquela viagem súbita, na companhia de Manuel? Porque? Não sei ainda bem o que aconteceu, mas sei que tudo está ligado às coisas aparentemente sem sentido de que ele costumava me falar”.

Isabel, filha de “seu” Amaro
O irmão, a mãe, as irmãs e o pai de Miguel.

A autópsia a que foram submetidos os mortos do Morro do Vintém não revelou qualquer anormalidade, concluindo que a causa da morte foi parada cardíaca sem razão aparente. Nenhuma violência, tampouco qualquer indício de que a morte fora provocada por envenenamento. A causa mortis continuava, assim, sendo um denso mistério — mais um nessa sucessão de mistérios que é o estranho caso das máscaras de chumbo.

Até então, apenas um suspeito havia sido detido pela polícia. Exatamente Hélcio Correia Gomes, um dos figurantes do misterioso trio de Campos, e que acompanhou Miguel e Manuel à rodoviária de Campos quando os dois seguiram para a sua última viagem. Interrogado horas seguidas, Hélcio repete sempre a mesma história:

Sempre fui amigo dos dois. D. Elza pode testemunhar a respeito. Miguel, seu marido, era íntimo meu. Quanto a Manuel, sabíamos que atravessava um mau momento — não financeira, mas moralmente falando — e procurávamos trazê-lo de volta ao bom caminho. Como kardecista crente, procurei colocá-lo em contato com os bons espíritos, e foi com essa intenção que o levei a algumas sessões no Centro. É só. Quando me despedi deles, na rodoviária, estava certo de que iriam mesmo a São Paulo. A partir daquele dia, nada mais sei.

A mulher de Manuel, Neli Pereira da Cruz, fez sérias acusações a Hélcio Gomes, informando que há tempos houve um desentendimento entre ele e o seu marido. E ouviu perfeitamente quando Hélcio ameaçou matar Manuel, somente não o agredindo dada a sua interferência.

Durante as investigações, Hélcio chegou a ser preso e conduzido para interrogatório, no entanto, foi solto por força de um habeas-corpus impetrado por um advogado misterioso, chamado Luis Carlos da Silva, que segundo o próprio Hélcio, era um desconhecido.

Hélcio Pereira Gomes

Posteriormente, o acusado apresentou álibi ao comprovar que, na tarde em que morreram Miguel e Manuel, Hélcio encontrava-se a 400 quilômetros de distância, comprando peças para o seu Volkswagen, no balcão da firma Veículos e Acessórios S. A., da Rua Conselheiro Tomás Coelho, 87, em Campos, informação comprovada pela nota fiscal 21.303, apresentada por ele.

Gomes, no momento em que era detido

Um outro depoimento, a respeito do comportamento de Miguel, desta vez fornecido por Arialdo Santos Viana, seu cunhado, marido de sua irmã Elza, afirmava que o técnico em eletrônica era um homem muito estranho e que, nos últimos 10 anos, somente conseguiu conversar com ele umas duas ou três vezes.

E acrescentou:

Ele era tão esquisito que quando ia à casa de mamãe apanhar minha irmã, ficava do lado de fora, olhando para o céu. E quando era convidado a entrar, recusava, sem falar, balançando apenas com a cabeça.

Arialdo Santos Viana

]Mais de dez dias após Manuel e Miguel terem sido encontrados mortos, a polícia não sabia se os mesmos haviam sido assassinados ou se se suicidaram. Ignorava-se, também, o destino dos milhões que um deles levou consigo, quando ambos deixaram Campos, no dia 17 de agosto. Se foi crime — quem os matou? E com que arma? Se, suicídio de que maneira se suicidaram? Que misteriosa droga teriam ingerido?

Extraterrestres?

Em plena era espacial, em que os foguetes eram notícia, não faltaram aqueles que afirmavam ter sido Miguel e Manuel mortos por um raio de alta potência de origem extraterrena. A profissão dos dois, técnicos de TV, estaria de alguma forma relacionada à experiência que levariam a efeito para captar sinais e mensagens de outros planetas. Os fãs de Flash Gordon vibraram com as declarações de D. Gracinda Barbosa Coutinho de Souza e seus filhos, moradores nas redondezas, que afirmaram ter visto um objeto de forma arredondada, cor laranja, envolto por uma faixa vermelho-brilhante, mais ou menos às 19 horas do dia 17, sobrevoando o morro onde foram encontrados os cadáveres. O disco-voador teria permanecido sobre o local alguns minutos, exatamente na hora tida como da morte dos rapazes.

A família que avistou o suposto disco-voador

A Sra. Gracinda de Souza, esposa de um funcionário da Bolsa de Valores, em Niterói, procurou a polícia para relatar uma estranha ocorrência, de que ela e sua filha, uma menina de 7 anos, dizem ter sido testemunhas:

Foi no dia 17, ao cair da tarde, quando eu e Denise (sua filha) percebemos um objeto estranho sobrevoando o Morro do Vintém. Era uma “coisa” redonda, com uma marca vermelha ao lado.

O objeto, segundo a testemunha, realizava subidas e descidas (por vezes rápidas, por vezes lentas), encontrava-se no espaço, um pouco acima do Morro do Vintém, e ali permaneceu, durante uns três ou quatro minutos, num movimento vertical, sempre emitindo raios azulados.

O disco conforme que o viu

A Sra. Gracinda, casada com o Sr. Paulo Roberto Coutinho de Sousa, mãe de três filhos e cunhada do escrivão Tales, da Primeira Vara Criminal de Niterói, à época, era considerada uma mulher equilibrada, bem conceituada na região onde morava, e ninguém duvidaria das suas informações. Seus filhos confirmaram sua versão e um deles com a ajuda dos outros dois, fez até o desenho do objeto estranho para a polícia.

D. Gracinda e seus filhos

Telepatia?

O General Caio Miranda, professor e diretor de várias academias de ioga, chegou a afirmar, à época, que uma experiência de telepatia poderia ter causado a morte dos dois técnicos em eletrônica. Após eliminar as especulações sobre a levitação e a catalepsia, o General informou que nas experiências telepáticas de maior intensidade, as pessoas, não raro, usam um alcaloide, como o SLD-25 ou a mescalina, que aumenta a acuidade mental e a frequência vibratória do cérebro, “para alongar o alcance de sua onda”.

Considerou, porém que o SLD-25 somente pode ser ingerido em quantidade nunca superior a 25 miligramas, “como indica a sua própria nomenclatura”. “Passando daí – acrescentou – pode causar a morte, pela força de seu efeito.

Explicando o uso das máscaras, o General afirmou que ele se justificaria por uma medida de precaução “já que, numa prova de tão intensa onda vibratória, quereriam os rapazes premunir-se, como os radiologistas que usam avental de chumbo, contra os efeitos de vibrações capazes de atingi-los e fulminá-los”. Mais:

A ingestão de drogas revigora a hipótese de que foi uma experiência de telepatia.

General Caio Machado

Parapsicologia

Outra contribuição que fez referência à possibilidade de se tratar de uma experiência paranormal foi a manifestação do Padre Oscar Quevedo, da Faculdade Anchieta, de São Paulo, professor de parapsicologia, trazendo subsídios importantes sobre outro ângulo pelo qual se poderia ver o caso do Morro do Vintém.

A parapsicologia que estuda, a prática do ocultismo, fenômenos chamados psíquicos, aponta situação em que não é impossível advir a morte, quando da realização de uma experiência em busca de contatos. Dois tipos de experiência podem ser feitas no campo parapsicológico. O da psigama e o da hiperestesia. Em ambos, teoricamente – explica Padre Quevedo – existe a necessidade de que o físico esteja como que num estado de debilidade.

Padre Oscar Quevedo

No primeiro caso, de caráter eminentemente extra-sensorial, o experimentador procura, liberar a alma, na busca de captações espirituais. Já na segunda, os nervos, hiperexcitados, são o instrumento pelo qual o homem procura sentir aspectos sutis da realidade que o cerca.

O Padre Oscar Quevedo frisou que, para o êxito de qualquer uma dessas experiências, é indispensável muito exercício e perfeito estado físico. “É fora de dúvida – acentuou – que, tanto hiperexcitado como no transe psigama, o experimentador sofre o impacto da menor vibração: luz, som e até outras formas de movimento que a Física ainda não conseguiu definir. Isto provoca, independentemente da vontade do “dotado”, tal dispêndio de energia que não seria absurdo admitir que chegue a causar a morte”.

Marcianos

Um outro depoente afirmou que Manuel e Miguel se preparavam para estabelecer contatos com Marte, pois acreditavam existir lá uma civilização superior. Disse também, ter presenciado a descida de uma forma luminosa na Praia de Atafona e que desapareceu minutos depois com forte estampido.

Os experimentos

Coincidência, imaginação, verdade, ficção, nada podia ser desprezado, até que alguma coisa ficasse confirmada com provas. Que os rapazes eram dados a essas tentativas não havia dúvidas. Viviam tentando contato com outros mundos ou com forças sobrenaturais. Eram dados a práticas místicas. Faziam experiências estranhas, barulhentas e perigosas.

Quando Miguel e Manuel, na companhia de Hélcio, provocaram o fenômeno que resultou na tremenda explosão na praia de Atafona, várias casas das redondezas ficaram ligeiramente danificadas. E durante algum tempo não se falava noutra coisa no lugar. Neste mesmo contexto, surgiu uma versão de que um disco voador teria caído na praia.

Essa história e outras de igual calibre constam de vários depoimentos de pessoas intimamente ligadas aos dois experimentistas. Isso, portanto, está mais do que provado. Testemunhal e materialmente, porque as sobras dos fenômenos eram eventualmente recolhidas por pessoas e foram confiscadas pela polícia. Pedaços de canos galvanizados, fios, pólvora, espoletas etc. Sim, porque as experiências não passavam na realidade de detonação de bombas caseiras.

Bomba caseira, feita de tubo galvanizado

Todas essas passagens constam dos depoimentos tomados em cartório, de: d. Neli, viúva de Manuel Pereira da Cruz; Sebastião da Cruz, pai de Manuel; Aluísio Batista Azevedo, amigo de ambos; Elza Gomes Viana, viúva de Miguel José Viana; e muitos outros. Eles faziam segredo de tais práticas, e só um grupo reduzido sabia. Um círculo pequeno de amigos.

Pai de Manuel, Sebastião da Cruz

Todos espíritas, que realizavam sessões, reuniões e trabalhos, ora na casa de um, ora na casa de outro. Deles, Miguel, um dos mortos, e Hélcio eram os mais ativos e empolgados. Já Manuel vivia “entre a cruz e a caldeirinha”: acreditava desconfiando. Miguel insistia com o companheiro Manuel para convencê-lo. Uma vez convidou-o a assistir a uma “prova” no quintal de sua casa. Fogos correram pelo chão e culminaram num estrondo. Posteriormente o pai de Manuel, que a tudo assistira da janela, recolheu no local os restos da “prova”.

Um pedaço de cano galvanizado espatifado e fios, que mostrou ao filho, advertindo-o de que estava sendo estupidamente enganado. Mas a dúvida permaneceu, tanto que num dos depoimentos há uma referência a que Manuel, em dia próximo ao de sua morte, teria dito:

Vou assistir a uma experiência definitiva. Depois dela, eu digo se acredito ou não.

Eletrônica + Umbanda

Houve também um outro fato que contribuiu para que o Dr. Venâncio compreendesse que Hélcio Gomes tinha “culpa no cartório”. Curioso em questões de eletrônica, Hélcio era conhecido na cidade como umbandista, e muitos afirmam que ele tinha Miguel, crente convicto, em suas mãos. Inúmeras vezes havia “tratado” da asma do rapaz e, provavelmente, convencera-o, e ao amigo, a realizar algum trabalho misterioso, misturando eletrônica à “macumba“. No entanto, nada pôde ser provado contra o rapaz e é possível que esta teoria tenha sido fruto do preconceito com o qual as religiões de matriz africanas sofriam (e ainda sofrem).

A primeira máscara de chumbo

Houve ainda o surpreendente depoimento do Sr. José de Souza Arêas, morador à Rua Cônego Goulart, 120, na capital fluminense, que procurou o Comissário Oscar para lhe contar a seguinte história:

Em 1962, aqui mesmo em Niterói, aconteceu coisa parecida com a morte dos dois homens de Campos. Um técnico de televisão, apareceu morto no alto do Morro do Cruzeiro. E o senhor sabe o que foi que encontraram ao lado do seu corpo? Uma máscara de chumbo.

José de Souza Arêas

Segundo o depoimento do Sr. José, o homem se chamava Hermes, era pesquisador de eletrônica e trabalhava com um francês, cujo nome José afirmava não se recordar. Hermes, segundo o francês, declarou por ocasião da autópsia – prosseguia narrando José de Sousa Arêas –, fôra ao morro para fazer uma experiência no sentido de captar sinais de televisão sem ser necessário qualquer aparelho, e, como parte da experiência, ingerira um comprimido redondo, que tinha marcas semelhantes às que as cozinheiras fazem com garfo nos bordos de pastéis. Segundo ainda José, o francês declarara, na ocasião, que Hermes morrera porque não estava fisicamente preparado para a empreitada, que oferecia possibilidade de vida ou morte. Na época do fato, finalizou José, o delegado de Neves era Hélio Estrela, que fora afastado anos depois.

O Comissário Oscar Nunes, à época, enumerou o seguintes pontos de coincidência entre o primeiro caso e o dos dois campistas:

1 – a ser verdadeira a informação de José, de que o francês dissera ter Hermes morrido por falta de saúde para suportar a experiência, com Miguel e Manuel pode ter ocorrido o mesmo, de vez que o primeiro era asmático e o segundo sofria de crônica dor no ventre;

2 – só mesmo para uma experiência poderiam ter subido o Morro do Vintém, com máscaras de chumbo para proteger os olhos;

3 – de acordo com informação do subdelegado de Santa Maria, 18º Distrito de Campos, Sr. Henry Caldeira, Manuel já estivera fazendo pesquisas sobre televisão em morros das cidades de Colatina, Alegre e Mimoso, no Espírito Santo, sendo entusiastas de experiências, tanto que recusou o convido do amigo Orlando Cunha para montarem uma fábrica de televisão, alegando que não tinha tempo.

À época das investigações, alguns técnicos em eletrônica do Estado do Rio foram chamados para o que os investigadores fluminenses diziam ser “um bate-papo sobre a matéria da especialidade deles”.
Na opinião de um deles, ambos os rapazes foram mortos por um raio, não o da radiofrequência, que mata sem deixar vestígios, mas a faísca elétrica da atmosfera. E lembra que, na quarta-feira, 17, chovia em Niterói. Os corpos teriam sofrido ligeiras queimaduras, que não foram constatadas pelos médicos legistas porque se desfizeram com a decomposição.

Dúvidas

Se Miguel e Manuel planejavam viajar à São Paulo para realizar a compra de um Volkswagen, por que não levaram consigo nem mesmo uma maleta de roupas, uma vez que empreenderiam longa viagem.

Outro ponto que intriga a policia é ter sido encontrado, perto do local onde os dois técnicos morreram, um papel no qual estava escrito o nome de “Nico Polícia”, policial que tem centro espírita na Rua Maricá, próximo ao Morro do Vintém.

O Morro em que os rapazes foram encontrados possuía, pelo menos, três pontos de acesso: dois por Santa Rosa (Ruas Gastão Gonçalves e Andrade Pinto) e um por Cubango.

Alguns garotos chegaram a alertar a Polícia acerca da presença dos dois homens no morro. Acostumados a andar pelo mato à procura de caça ou para apanhar pipas, na quinta-feira, vieram correndo, mato afora, na caça de uma preá – e informaram ao patrulheiro Antônio Guerra de Castro, da presença de dois homens “que dormiam no mato”. O policial, entendeu que eram dois marginais que se escondiam. E não foi lá imediatamente por dois motivos: porque estava só, e porque achou que ao chegar ao local não mais os encontraria.

No sábado, os mesmos garotos passaram pela clareira – e viram os dois ainda dormindo. Ao descer informaram mais uma vez: “Os dois continuam dormindo”. Antônio Guerra começou a achar que os homens dormiam demais. E para ver de perto, foi buscar reforço no seu companheiro e vizinho, Camerino Guimarães. E lá estavam os dois, dormindo o sono da morte.

O laboratório

Um laboratório de 3 x 4 metros era onde Miguel aplicava seu tempo em consertos de aparelhos de TV e estudos de eletrônica. Possuía bastante material para sua especialidade, lotando prateleiras. Nenhum elemento elucidativo da sua morte, entretanto, ali foi encontrado. Através de Nélson Silva, radiotécnico, ficou-se sabendo que ele entregara a Miguel 200 mil cruzeiros para compra de válvulas.

Nélson Silva

A família de Miguel José Viana negou terem sido escritos por ele os bilhetes recolhidos no Morro do Vintém, pois, não era compatível com sua caligrafia. Também não reconheceram como pertencendo a um dos dois o lenço com as iniciais AMS, encontrado no morro.

Uma pasta de couro marrom não foi aberta, por imposição da família de Miguel, alegando que era material de trabalho externo. Os dois técnicos em eletrônica foram sepultados no dia 23 de agosto de 1966, às 10h30min, fazendo-se presença o então prefeito Carlos Peçanha.

Mistério no ar

Boatos, versões extraterrenas e sobrenaturais são sempre a tônica de casos de difícil solução. Geralmente tratam de fatos apoiados em depoimentos, nunca em provas reais. É uma faixa de perigoso trato, onde qualquer resvalo pode conduzir ao ridículo. Entretanto, nunca podem ser desprezadas, pois constituem invariavelmente uma possibilidade viável. Neste já famoso caso das Máscaras de Chumbo, essas hipóteses vingam na não determinação da causa mortis. E o problema toma dimensões que já ultrapassam os limites do Estado do Rio. Trata-se de um enigma que desafia a técnica policial brasileira.

Se foi crime, teria que haver um terceiro personagem na história. Inicialmente todas as suspeitas recaíam sobre Hélcio Gomes, porém nada ficou que pudesse lhe lançar a mais leve culpa. Nem mesmo a possibilidade de latrocínio, na qual o terceiro homem poderia ser alguém absolutamente desconhecido. Suicídio, nem se pode cogitar, por falta total de base. Sobra ainda a versão de acidente. Um bilhete fala em “ingerir cápsulas”. Eles teriam tomado alguma droga letal com a finalidade de buscar transcendência. Mas o diabo é que isso não aparece nos exames toxicológicos. O que eram as tais cápsulas? Quem as forneceu? Quem as manipulou? Perguntas que, se respondidas, poderiam trazer muita luz ao caso.

Dr. Venâncio

O delegado Venâncio e seus comandados esgotaram os meios, sem nada conseguir. A conclusão a que todos chegam é que somente a determinação da causa da morte pode trazer a solução definitiva. Até mesmo os Serviços Secretos do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal foram envolvidas nas investigações, porém sem resultados frutíferos.

Novas investigações

À época, o secretário de Segurança, dr. Homero Homem, o comissário Luisinho, oficial de gabinete, o delegado Sérgio Rodrigues e o delegado Idovã formaram uma linha de ataque ao problema. Novas diligências foram feitas nas cidades de Campos e Macaé. Outro levantamento de local, mais minucioso e cuidadoso. Reinquirição de todas as testemunhas já ouvidas. Depoimentos de novas testemunhas. Enfim, uma arrancada para a elucidação total e satisfação da sociedade. Prova alguma, porém, surgiu que pudesse atribuir a responsabilidade a alguém pelas mortes de Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana. Cada vez mais se concretizava a ideia de que a chave do mistério residia na identificação da causa mortis. Convictas disso, as autoridades, em agosto de 1967, exumaram os dois corpos. Os drs. Sebastião Faillace e Adalberto Otto colheram mais material para exame. Com a colaboração de mais dois médicos legistas da Guanabara, fizeram um belíssimo trabalho de medicina legal.

Momento da exumação dos corpos

Infelizmente, a presença de formol nos corpos exumados prejudicou sensivelmente o trabalho dos legistas. O embalsamamento pôs por terra grande parte da chance, porque certas substâncias tóxicas não puderam ser testadas.

Num balanço das medidas tomadas, temos os seguintes resultados:
Exames de Local, da época e de dois anos após: nada que determinasse morte violenta ou não.
Laudo de Necropsia da época: nada que pudesse determinar a morte.
Exame Toxicológico do Local: nada que pudesse causar a morte.
Exame Toxicológico na época e na exumação em 1967: nada responsável pela morte.
Exame Grafotécnico: os bilhetes foram escritos por Miguel.

Restava ainda o último cartucho. A última chance, pela determinação da causa da morte. Uma sugestão feita pelo dr. Sérgio Rodrigues e prontamente aceita pelo secretário de Segurança. A remessa de material para o Instituto de Energia Atômica, no Estado de São Paulo. Lá existia um aparelho denominado Análise de Ativação por Nêutrons, cuja ação radioativa, através de exames próprias, poderia identificar substâncias tóxicas nas vísceras. O material foi remetido, mas o parecer dos cientistas foi inconclusivo.

Reabertura do caso: a loura

Dois anos e meio depois do ocorrido, uma nova denúncia gerou a reabertura do caso das Máscaras de Chumbo.

Segundo a denúncia de uma “mulher loura”, moradora de Campos, cujo nome foi omitido, um homem de nacionalidade lituana, também radiotécnico teria sido o responsável pela morte dos dois rapazes em 1966. Ainda segundo a denúncia, o suspeito trabalhava em Niterói e frequentava centros espíritas com os radiotécnicos. Apesar da reabertura do caso, nada se pôde concluir a partir da denúncia da “loura”.

Confissão!?

Ainda em 1969, uma nova pista sacudiu a polícia carioca quando Hamilton Dezani, presidiário cumprindo pena por latrocínio em São Paulo contou a um juiz que três homens teriam assassinado os dois técnicos, em 1966, e que os radiotécnicos foram obrigados, sob a mira de armas, a beber veneno, fato que lhe havia sido contado por um dos matadores. Ao fazer tal declaração, Dezani pediu ao juiz que desse garantias de vida para sua família, que estaria sendo ameaçada por um dos homens que ele acusa da autoria do crime.

Segundo Dezani, ele teria acompanhado três homens, conhecidos apenas como Wilson “Alemão”, Acácio de tal e “Espanhol”, todos “puxadores” de automóveis, integrantes de uma quadrilha que age na Guanabara, Rio e São Paulo, a um centro espírita no Cubango. No citado centro, de propriedade de uma mãe-de-santo chamada Helena, encontraram Manuel Pereira da Cruz e Miguel José Viana, tendo sido tratados negócios relacionados com compra e venda de automóveis.

Do centro espírita embarcaram num automóvel e partiram para um local ermo e não muito distante, onde os dois radiotécnicos foram obrigados a saltar, tendo ficado apenas ele, segundo afirma, no interior do carro.

Passados vários minutos voltaram apenas os três, Wilson “Alemão”, Acácio e “Espanhol, o qual, interrogado sobre os dois que faltavam, declarou: “Nós os fizemos beber veneno”. E partiram dali para a Guanabara, onde se separaram.

No entanto, o caso sofreu nova reviravolta quando Hamilton Dezani, ao chegar ao Rio de Janeiro, modificou o depoimento anterior, que prestara em São Paulo, levantando suspeitas de que na verdade tudo se tratava de uma versão fictícia elaborada pelo preso para que pudesse fugir durante sua transferência a Niterói.

Banzai?

Em junho de 1969, o delegado de Homicídios, João Antônio da Silva, afirmou que a polícia fluminense estava em posse de uma nova pista que ajudaria a solucionar o caso das Máscaras de Chumbo. A chave do mistério estaria na palavra japonesa “banzai”, muito utilizada em experiências mediúnicas e no baixo espiritismo, segundo o delegado.

Esta é provavelmente uma das pistas mais “sem noção” apresentadas na história do caso e, obviamente não agregou nada ao caso.

AMS

Ainda em 1969, a polícia chegou a anunciar um novo suspeito: o professor Ramayana Alexandre Santos da Selva Neto, cujo nome verdadeiro era Alexandre Monteiro da Selva Neto: AMS.

Mais uma pista sem qualquer fundamento e possibilidade de comprovação.

Todas as versões serão possíveis, até as sobrenaturais e extraterrenas. Uma pergunta sem resposta. Que tipo de morte esteve no Morro do Vintém, na noitinha de 20 de agosto de 1966? Deste planeta; de outros espaços; de outra dimensão? Que morte que levou duas almas, sem justificar? Que não deixou nada que a identificasse, porque velo mascarada? Com duas Máscaras de Chumbo…

23 anos depois

Em matéria do jornal O Globo, publicada em 1989, o caso é relembrado e novas entrevistas são publicadas.

Para Aurélio Zaluar, jornalista e estudioso de objetos voadores não-identificados, a morte de Miguel e Manuel estava ligada ao fenômeno dos discos voadores:

É certo que os dois eram estudiosos e queriam muito manter contato com outros planetas, através, por exemplo, da aceleração da frequência das ondas cerebrais. É assim como ligar um rádio e captar uma estação. Até admito a hipótese do latrocínio, mas não acredito nela.

Aurélio Zaluar

Para a família de um dos dois técnicos o mistério continuava. Nos 23 anos que separaram o caso da entrevista, Elza Gomes Viana, de 55 anos, viúva de Miguel, criou os quatro filhos que, coincidentemente, seguiram a mesma profissão do pai.

– Sofri muito nas mãos da Polícia e dos repórteres. Parecia que eu e Neli – viúva do Manuel – tínhamos a chave do mistério. Todo dia aparecia um repórter na minha casa. Fui a vários programas do Flávio Cavalcanti, do Homem do Sapato Branco e até um detetive da Interpol me interrogou. Para se ter uma ideia da loucura, hoje, 23 anos depois, ainda me procuram para saber do caso.

D. Neli, à época do falecimento de seu marido

Para o Detetive Saulo Soares de Souza – que trabalhou no caso entre 1966 e 1969 – os técnicos morreram em consequência da ingestão de curare (uma droga de origem indígena utilizada com reservas pela homeopatia), durante uma experiência espiritualista. Apesar de utilizado no tratamento de contrações e espasmos, como na Doença ou na Dança de São Vito, o curare, se absorvido em altas doses, pode paralisar o sistema nervoso central, causar atelectasia pulmonar e matar.

O texto acima foi elaborado com base nas reportagens de Carlos Marques (Manchete), Sônia Beatriz (Cruzeiro), Jorge Audi (Cruzeiro) e nas matérias publicadas pelos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e O Fluminense.

Fotografias por: Nelson Santos e Fernando Seixas

Todos os créditos são devidamente atribuídos aos seus autores originais.

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