Guaranis Viajados

Brasileiros na Europa é frango novo em galinheiro. Sai do jacá todo encalistrado. Sacode as penas. Olha para um lado, olha para o outro. Começa a admirar as belezas que nem um bobo. Dá uns passeios desconfiados. Comete cada cincada que só mesmo a tiro. Depois dá de se desembaraçar. Então é um perigo. Acaba querendo conquistar todas as galinhas.

É isso sem tirar nem pôr. O brasileiro, com raríssimas exceções, quando viaja pela Europa só pensa em gastar e farrear. Consulta um médico também. Em Lausanne está visto. Para disfarçar.

Seu itinerário não muda. Salta em Bordeaux ou Cherbourg e vai direitinho para Paris. Em Paris já sabe: compra uma bengala, calça, umas luvas e é pândega até acabar o cobre. Um giro pela Suíça é também do programa. Vontade de ser esfolado. Esquecido da lindeza de sua terra, embasbaca-se diante dos lagos enfeitadinhos e das montanhas tão engraçadinhas meu Deus como se nunca tivesse visto maravilhas iguais. Às vezes arrisca uma fugida até a Itália. Ver os museus célebre. Ver a “Madona” de Rafael. Ver o Papa e as catacumbas. Viagem de instrução e piedade dirigida pela agência Cook. Tira uma fotografia entre as pombas da praça de São Marcos e volta com uma reprodução colorida da “Ceia” de da Vinci. E várias medalinhas de santos.

Paris de novo. Últimos dias de Europa. Compra as encomendas dos parentes e amigos. E cai na farra pela última vez. Despede-se do El Garron e do Perroquet. Rasga dinheiro. Banca o trouxa. Sobe à Torre Eiffel. Visita o Museu Grévin. Senta-se pela derradeira vez no terraço do Café da Paz. Arranha mais uma briguinha. Embebeda-se mal acompanhado. E desce no Brasil com gravatas novas mas as mesmas idéias de antes. Só que em vez de meu caro passa a dizer “mon vieux” e a beijar as mãos das senhoras casadas e das outras. Só. No resto é o mesmo.

Ou então são os prêmios de viagem, os meninos e meninas do Pensionato Artístico. Quase todos dão em droga. Saem daqui levando na bagagem os ensinamentos de um Rodolfo Bernadelli ou de um Francisco Murino europeus. É o que se chama insistir no péssimo, se aperfeiçoar no horrível. Voltam ainda piores do que foram.
No entanto a Agência Americana durante a permanência deles na Europa telegrafa de três em três meses anunciando aos povos triunfos formidáveis diante de não sei quem e não sei quem mais e do representante diplomático do Brasil. Coisa falsa, ridícula e de um patriotismo contraproducente.

Não quero dizer com isso que entre a meninada que o governo tem pago para estudar arte na Europa não se contem duas ou três afirmações preciosas. Contam-se sim. Mas só pianísticas. Em matéria de pintura por exemplo tem sido um desastre. Os esperançosos prêmios de viagem saem daqui para se estragarem lá fora irremediavelmente. Da maioria até nunca mais se ouve falar.

E tudo isso por quê? Porque a Europa não está em condições de aperfeiçoar neste ou naquele ramo de arte quem quer que seja? Que esperança. Não é por isso. O motivo é outro. O Brasil sempre andou atrasado em coisas de arte cinquenta anos no mínimo. A orientação dos mestres da terra portanto é a mais obsoleta e errada possível. Resultado: seus alunos desembarcam na Europa com uma educação estética até risível, encontram lá em pleno desenvolvimento princípios e fórmulas de que nunca tinham ouvido falar ou que aprenderam a combater, ficam tontos, pobres diabos desiludidos, e então só de raiva, por um espirito de reação muito engraçado dão para copiar paisagens cinzentas com carneirinhos e riachinhos.

O que a Europa oferece de lindamente moderno, os ensinamentos de hoje literário e artístico, a noção exata das necessidades do instante contemporâneo, tudo isso passa despercebido ou causa indignação aos ingênuos brasis. Viram as costas a todas as realizações do espírito novo que está integrando o mundo no momento em que vivemos. Desprezam ou não compreendem o magnífico das manifestações insólitas de que fala André Lhote. Insólitas e também necessárias porque matam a Arte e a Beleza com maiúsculas. Nada disso. Só têm olhos extasiados para o presente-passado, para as projeções absurdas deste naquele, para a mercadoria multicentenária pela idade e pelo espírito dos museus oficiais.

Não é só. Ainda por cima vítimas de uma fatalidade atroz ficam desconhecendo quase que completamente a parte melhor do passado artístico europeu. Vão à Roma e não vão à Assis. Visitam o Louvre e não visitam o Mauritshuis. E assim por diante. Infelizes.

Há também os políticos, os homens de responsabilidade pública e administrativa, os tais das viagens de recreio e repouso. São talvez os mais cômicos. Voltam sempre admirando Mussolini e dando opiniões sobre a decadência do parlamentarismo em França.

Esses não frequëntam os teatros. São cavalheiros graves. Preferem terminados os espetáculos ir cear com as coristas em restaurantes discretos. Todas as tardes vão tomar café e falar das coisas pátrias (câmbio, política, negócios) no consulado ou embaixada. Geralmente passam a usar polainas. E ganham modos distintos.

Chegam ao Brasil julgando com superioridade os problemas (os magnos problemas) da pátria (da nossa grande pátria cuja grandeza aquilatamos melhor quando dela distantes.
Chegam e visitam logo os jornais. Para esses publicarem a seguinte notícia: “Deu-nos ontem o grato prazer de sua visita o Sr. Coronal José Paiva, chefe da conceituada firma desta praça J. Paiva & Filhos e uma das mais proeminentes figuras da política do Estado.
S. Excia, que acaba de realizar uma longa e proveitosa excursão pelos principais países do velho mundo, acha-se bem disposto e entreteve conosco interessante e animada palestra acerca de sua viagem.

O ilustre patrício trouxe agradável impressão de tudo quanto pôde observar nos meios políticos e administrativos da Europa, principalmente no que se refere ao atual movimento fascista, tendo mesmo palavras de caloroso elogio à ação altamente patriótica de Mussolini, a quem classificou de estadista genial. Sumamente penhorados pela honrosa visita, renovamos ao preclaro republicano os nosso mais sinceros votos de boas vindas”.
É assim. E assim é que está certo. Por Deus do céu.

Pois é isso mesmo. O brasileiro dá um pulo até a Europa e volta botucudo como foi. Reforma o guarda-roupa mas não reforma as idéias. Seu espírito fivela* de crítica e observação faz com que ele se assombre justamente diante daquilo que a Europa tem de horrível e insuportável: o peso de suas tradições milenárias. Nativo da América, moça, livre de preconceitos e de atavísmos, enche-se de veneração incrível por esse passado asfixiante e apodrecido. Ao invés de vaiar gozando a sua superioridade aplaude tamanha inferioridade invejando-a.

É até engraçado. Enquanto o europeu de hoje trata de aliviar as costas do fardo imenso de suas heranças ancestrais, numa ânsia de rejuvenescimento quase desesperada, abrindo janelas para as correntes de ar puro que vêm dos países virgens, o brasileiro com exceções que não contam faz exatamente o contrário: toma de empréstimo tradições com as quais nada tem a ver e volta-se para um passado que lhe é de todo em todo estranho. Caboclo que sempre andou de pé no chão deseja o martírio ridículo de uns sapatos de verniz que absolutamente não foram feitos para ele. Seu lugar é na vanguarda e o teimoso insiste em se colocar na ribeira. Como numa quadrilha caipira o europeu e o brasileiro estão mudando de lugar.

Coisa que entristece a gente. Quando chegará o 7 de setembro da nossa independência espiritual? Independência dentro do minuto universal está claro.

Meus adoráveis patrícios que viajam por isso mesmo deviam se deixar contaminar na Europa pela febre do inédito e do presente que está lá reformando homens e coisas, aprendendo a se integrar no século, a pensar e agir como homens de vinte séculos depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só assim poderão avaliar com justeza essa felicidade que é não possuir tradições. E valerem-se disso.

Mas qual. Não há remédio mesmo. Enquanto houver brasileiros na terra as velharias européias terão admiradores. Ainda há de chegar o dia em que os países de lá conservarão os seus museus de arte e os seus monumentos de história unicamente para serem agradáveis ao Brasil.

Sim. Porque o europeu já está farto de tanto passado inútil e atravancador. Mas desde que existe gente que gosta e paga bem esse gosto é estupidez destruir o objeto de tanto entusiasmo palerma.

Sempre foi função dos trouxas dar de comer aos sabidos. Nem é para outro fim que vêm ao mundo. E o brasileiro é o povo mais trouxa que existe. Campeão universal. Fora de concurso. Membro do júri.

Antônio de Alcântara Machado

*fivela – gíria, em desuso. O sentido é de simplório, caipira, trouxa.

**A grafia original foi mantida em sua integralidade preservando as regras ortográficas vigentes à época.

Um comentário em “Guaranis Viajados

Deixe um comentário