Urge Salvar o Caiçara (1960)

ESTÁ MORRENDO À MINGUA SEM VIVERES NO LITORAL

Faltam alimentos e as crianças estão sem leite em pó ‒ Imperiosa a campanha para ajudar a população do litoral paulista ‒ Angustiante apelo ‒ A situação reinante em Ilha Bela e S. Sebastião.  

Através de sucessivas reportagens, ilustradas, vivas, pôde o povo de São Paulo conhecer de perto e ao nú, os cruciantes problemas, com que se debate o caiçara dessa região. Insulado, falto de recursos, subnutrido, está a exigir a atenção e os cuidados dos poderes publicos e dos particulares […].  

Sobretudo agora, necessita imperiosamente, mais do que nunca. Para nova cruzada, tão angustiante, quanto a que se apresenta, aos olhos de todos os brasileiros, dos flagelados do nordeste, esses irmãos que nasceram para o sofrimento.  

Noticiaram os jornais que, há um mês, se acham paralisadas as duas unicas barcas que fazem o suprimento da região, a “São Manuel” e a Sud America”, em virtude da greve deflagrada entre os arrumadores do Porto de Santos, motivada pelo pedido de reajustamento das tarifas não atendido, ainda, pelo Governo.  

Pode-se calcular os sofrimentos e as privações daquela gente, com os armazens desprovidos de viveres, as crianças sem leite em pó… e isto, tão perto de São Paulo. Impõe-se providencia imediata e energica, objetivando evitar-se que morram à mingua, sem alimento e sem viveres.  

Trechos de carta de Nilsa do Valle Costa, presidente da Assistencia do Pequeno Caiçara de São Sebastião”, dirigida a Edmundo Monteiro, diretor-geral dos “Diarios e Emissoras Associados.  

Carta publicada no Diário da Noite em 26 de abril de 1960.  

A ortografia da época foi mantida.

Vai desaparecendo umas das últimas profissões medievais (1950)

-“Abaixo a máquina”, resmunga o sapateiro
– Quase já não se vêem “remendões” na cidade – Preferem-se agora os consertos-relâmpago

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Nenhum sensacionalismo na notícia, apenas uma nota de melancolia: estão desaparecendo os sapateiros. Nenhum projeto-de-lei que proibisse os artesãos de trabalhar, nenhuma medida de caráter policial ou estático. Apenas o progresso e a substituição do artesão pelo assalariado da indústria.

DESAPARECEM OS SAPATEIROS

É com êsse tom desinteressado das primeiras palavras desta nota que um intelectual examina o desaparecimento dos sapateiros da capital paulista. E continua agora em tom mais afirmativo: evidentemente não é compatível com o sistema social e a evolução da máquina o artesão. Nos ramos em que o homem não é nem patrão nem empregado, pois êle próprio produz, raros são os casos em que se preservarão. Os médicos constituem um exemplo, assim mesmo, possivelmente, no futuro, terão sua profissão socializada. Das profissões medievais a de sapateiro é uma das que mais subsistiu e só agora vai desaparecendo de vez.

O QUE FAZEM OS SAPATEIROS

Do artesanato praticamente proibido pelas dificuldades de locais de trabalho e pela concorrência do serviço mecanizado que é realizado em preços mais acessíveis, o sapateiros passou a ser telefonista, ascensorista, porteiro de fábricas, ou se ocupa em qualquer outro trabalho mecânico que nada tem a ver com seu ofício. Evidentemente em muitos casos trabalha em fábricas de calçados ou em casas chamadas “Relâmpago” de conserto de sapatos.

“RELAMPAGO”

Em São Paulo quando se introduziu o bonde elétrico foi preciso até oferecer prêmios para que os transeuntes se interessassem pelo novo sistema de transporte. Quando se pretendeu tomar do sapateiro o trabalho de consertar sapatos foi preciso também uma idéia e um meio para consegui-lo. “Relampago” foi a idéia. Consertar os sapatos em poucos minutos, na presença do freguês à espera foi o meio. Outro atrativo também foi introduzido: preços mais baratos. Dessa forma foram as casas mecanizadas destruindo a possibilidade dos artesãos suportarem a concorrência. Hoje, em todo o centro da cidade, raramente são encontrados.

“MALDITA MÁQUINA”

Quando o reporter se põe à procura de um sapateiro para, em tôrno de sua vida, redigir uma nota não tem em mente o significado do ofício, sua utilidade, seus preços. Não. Procura apenas a figura bizarra do sapateiro, em geral um velho imigrado de distantes países. O corredor sombrio e incômodo onde êle trabalha, os fregueses que aparecem trazendo serviço, ou para reclamar a demora dos consertos, os “habitués” que aparecem para nada, são os aspectos que mais nos interessam. Mas se o dia é de sol nossa sorte não é das melhores, e o primeiro que encontramos, num bairro, nos recebe de mau humor:
– MALEDETO JORNALISTE!

E não nos foi possivel conversar com o homem. Já em outro ponto da cidade a recepção foi diferente. É um cidadão de cerca de trinta anos o sapateiro que encontramos. Magro e pálido.

Conversámos com o homem. Seu ódio impotente contra A MÁQUINA era de comover. O sapateiro abriu a boca contra a costuradeira, contra a polideira, contra tôdas as máquinas que afetam seu ofício. Explicou ao reporter que “elas fazem depressa, não há dúvida, mas o serviço não se aproveita, pois dura pouco, deforma o calçado, faz tragédias!”
Enquanto o sapateiro fala, o fotógrafo vai calmamente engrenando sua objetiva para o flash. Mas o homem não concorda com a idéia e não quer ser fotografado. Perguntamos a razão da atitude contra a fotografia. Não explicou bem, mas deu para entender que êle quer paz e a foto no jornal lhe parece um meio de criar caso com a polícia. Partimos sem maiores resultados.

OUTRO SAPATEIRO

Finalmente encontramos um sapateiro como desejavamos. É um dêsses tipos que sugerem fim de uma civilização e lembram os nosso dias líricos de infância no interior do Estado. Com êle esquecemo-nos de quanto é aborrecido e monótono ser reporter e conversamos longamente. O homem fala mal do govêrno, não o do Estado ou da República, do govêrno simplesmente. Fala mal dos funcionários públicos, dos tintureiros, dos bondes, da cidade paulista, fala mal de tudo.
Termina por nos convidar para almoçar. Mas já é tarde e preferimos deixar a reportagem para outra ocasião.

Diário da Noite, São Paulo, 14 de agosto de 1950

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
*A grafia original do texto foi preservada.

Legenda da imagem 1: Não há muito tempo, eram comuns os homens atrás da pequena mesa fazendo ou remendando sapatos. Hoje, os poucos que há, estão espalhados nos arrabaldes.

Legenda da imagem 2: Em lugar dos humildes artesãos as máquinas e grupos de assalariados realizam em minutos os trabalhos que antes demandavam horas. Para o trabalhador em geral nenhum benefício houve, pois hoje é mais difícil do que antigamente ter dinheiro para o conserto do sapato.

As Artes no Paraíso (1982)

Com arrojado projeto arquitetônico, um supercentro de espetáculos e informação dá a São Paulo novas alternativas de lazer

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Discretamente, a elegante silhueta de uma cobertura de concreto começou a emergir, nos últimos meses, no bairro do Paraíso, à margem da Avenida 23 de Maio, uma das mais movimentadas de São Paulo. Numa cidade marcada por arrogantes construções verticais, o prédio parece baixo e modesto — e, precisamente por isso, deve ter passado despercebido para milhares de apressados paulistanos que cruzam diariamente a vida que liga o centro ao Aeroporto de Congonhas. Daqui para a frente, contudo, o país decerto ouvirá falar muito do Centro Cultural São Paulo – CCSP, inaugurado na semana passada ao cabo de um frenético esforço comandado pelo prefeito Reynaldo de Barros e pelo secretário municipal da Cultura, Mário Chamie.
 

ASCÉTICO E ACOLHEDOR

[…] o prédio consegue ser ascético e acolhedor e pode abrigar, com conforto, 20 mil pessoas. Com 45.500 metros quadrados de área construída e quatro pavimentos, abriga um teatro de palco italiano (450 lugares), outro de arena (550 lugares), um cinema e um auditório (200 lugares cada), uma discoteca que reserva fones de ouvido e toca-discos para cada freqüentador, além de espaço para a coleção da Pinacoteca Municipal, uma biblioteca em braille, uma infanto-juvenil e outra de arte.
 
Uma rua interna, com iluminação natural, atravessa o edifício de lado a lado, dando a visão de todas as suas funções existentes. A sinalização é quase desnecessária. O visitante identifica a biblioteca da mesma forma que, num mercado, chega à seção de frutas sem precisar de setas indicando a localização das laranjas. Mas a mercadoria oferecida neste novo centro é mais complexa, ainda que menos perecível, pois são as várias opções da informação cultural.
 
O novo centro da Prefeitura ostenta uma vantagem: plantado ao lado da Estação Vergueiro do metrô, por onde passam 600.000 pessoas diariamente, ele agora enriquece um bairro que não oferecia atrativos no campo da cultura ou do lazer. Agora, o Paraíso poderá ser o palco de transformações semelhantes às provocadas pelo Lincoln Center de Nova York, ou mesmo pelo Barbican de Londres, que injetaram sangue novo em áreas relativamente decadentes.
 
Trechos de matéria publicada em 19 de maio de 1985
 
¹O texto original foi transcrito mantendo-se a grafia da época.
 
Legenda das fotos:
 
1. Centro Cultural São Paulo: uma gigantesca cobertura de concreto e vidro, ocultando quadro pavimentos que podem abrigar confortavelmente, em seu conjunto, mais de 20.000 pessoas.
2. Na parte central: árvores antigas que são vistas de todos os níveis.
3. Passarelas suspensas ligam, em curvas suaves, os diferentes pisos.
4. Biblioteca: atendimento rápido usando o computador.
5. Discoteca: sem lançar mão das cabinas tradicionais
6. O teatro de arena: boa acústica e 550 confortáveis poltronas
7. Pilar central: marca inconfundível

O Corso da Avenida Paulista (1928)

Todos criticam, todos falam do corso, mas vão… Compreendo essas contradições. O que eu não posso compreender, porém, é que, estando a Avenida Paulista no estado miserável em que se acha, crivada de buracos e depressões, ainda há quem se aventure a rodar por aquelle asphalto remendado, como a roupa de um pobretão. Principalmente, nesses dias de chuva, em que a gente se arrisca a levar uma ducha lamacenta, extra-programma…

Avenida Paulista em 1928. Cartão postal.
Avenida Paulista em 1928. Cartão postal.

Para neutralizar a censura dos outros, o chic aos domingos, agora, é fingir que não se está fazendo o corso… Os automoveis “chispam”, sáem da fila, apostam corrida. Quando se é obrigado a diminuir a marcha, então, afim de tornar áquelle fingimento mais evidente, nem se olha… Todos duros, impertigados, tesos, pensando em cousas longinquas. Quem quizer adquirir uma noção exacta do que seja o celebre “amuo” paulista o melhor que tem a fazer é ir ao corso. A impressão que elle dá é a de que todos estão treinando para acompanhar um enterro, em que só falta o defunto, mas em que, para compensar, quasi todos parecem mumias.

O que se nota de uns tempos a essa parte, na Avenida, é a existencia de vendedores de balões de gomma elastica. São uns meninões de buço, de catadura syria, muito morenos, terrivelmente mal vestidos. Parecem pobres que usam o artificio de venderem bolas coloridas para disfarçarem a profissão.

No meu modo de vêr essas criaturas deveriam usar um uniforme brando, á maneira dos vendedores de sorvete. O avental dar-lhes-ia um aspecto menos “pobre”, menos compromettedor da atmosphera aristocratica do corso. Por outro lado, tornaria os vendedores mais sympathicos. Não ha nada como a limpeza para attrahir compradores. Assim como estão, elles offerecem um contraste desagradavel para os olhos dos que vão á Avenida gozar de graça um prazer esthetico.

Já que a organização capitalista da sociedade não pode impedir a miseria, a pobreza e a sujeira, escondamos, pelos menos aos domingos, que são dias de festa, essas tristes e desolantes couzas.

SUB-URBANO (Pseudônimo de Guilherme de Almeida)

Diário Nacional, 12 de dezembro de 1928

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*A grafia original foi preservada em sua integralidade, respeitando as regras gramaticais vigentes à época da publicação.