Succumbiu ao martyrio lento a que o submetteu o prefeito Pires do Rio ‒ Desappareceu, assim, um vegetal contemporaneo do velho São Paulo
Já não existe mais o velho carvalho do largo do Palacio. O machado da Prefeitura Municipal, empenhada cada vez mais em aformosear a cidade, remodelando tudo sob o criterio lunar do sr. Pires do Rio, deu afinal cabo da arvore vetusta, que ali no historico planalto nos falava de um outro S. Paulo, bem diferente do S. Paulo de hoje.
O bello e venerando vegetal, que era conhecido por “carvalho da Republica”, dava ao tranquillo recanto da cidade em que Anchieta ergueu o collegio dos Jesuitas, um ar mais tranquillo ainda, arredondando sobre o asphalto um circulo de sombra acolhedor e refrigerante…
Mas a administração do municipio, que admitte por ahi verdadeiros monstrengos urbanos, achou que o antigo carvalho era inconveniente e indesejavel ás leis do transito, pois que se levantava quasi ao centro da extincta via publica, que se chamou Travessa da Fundição…
Mas antes de destruir a arvore do largo do Palacio, o sr. Pires do Rio resolveu submettel-a a um lento martyrio. Isolou-a, com surdos rancores. Matratou-a, com podas irracionaes. Circumdou o tronco numa áreazinha de terra secca, além da qual era só asphalto e parallelepipedo…
Agora, o jardineiro que cuida das plantas rachiticas da esplanada governamental, recebeu ordem de dar o golpe de misericordia no pobre carvalho.
Lá está elle, pois, com os ramos decepados; o tronco escalavrado, na base, rente com o sólo; as raizes á mostra pela excavação recente que lá fizeram. Nada mais resta da arvore imponente, que representava uma verdadeira tradição paulistana. O que lá está, neste momento, desafiando a curiosidade dos transeuntes, é uma triste reminiscencia vegetal. Sem cópa, parece sem cabeça. E continúa de pé. Imaginem o que seria um homem sem cabeça, tentando dizer qualquer cousa aos que passam…
“CARVALHO DA REPUBLICA”
Sempre ouvimos dizer que a velha arvore era o “carvalho da Republica”. Da Republica por que? Teria se dado ali, sob a sua fronde amiga, algum acontecimento de vulto que se relacionasse com a Republica brasileira? Ou seria uma designação sugerida apenas pela proximidade nem sempre recommendavel do palacio do governo?
Para pôr tudo isto a limpo resolvemos ouvir qualquer pessôa conhecedora de S. Paulo de outros tempos e estudiosa de nossas cousas. Lembramo-nos do dr. Aureliano leite, advogado e jornalista nesta capital. Telephonamos-lhe, perguntando-lhe o motivo do nome popular “carvalho da Republica”, dado ao vegetal do largo do Palacio.
‒ Aquella arvore deve ser mais antiga que a Republica ‒ respondeu-nos o dr. Aureliano Leite. Lembra-me que em 1900 ella já era adulta, e o carvalho em 10 annos ‒ que era o quanto contava então a Republica, ‒ não attinge áquellas proporções. Eu, quando garoto, catei ao pé della muita bolóta, que ella então já produzia sem usura… Mas isto é pouco. Vou colher mais alguma informação a este respeito e o que houver lhe transmittirei com muita satisfação.
O HISTORICO DA VELHA ARVORE
De facto, dahi a momentos o dr. Aureliano Leite nos convidava a uma visita á sua residencia, onde nos relataria o que tinha colhido com referencia ao extinto carvalho. Recebeu-nos com deferencia e nos disse:
‒ Para completar o que eu sabia a proposito da arvore do largo do Palacio me communiquei com o dr. Affonso de Freitas, que é, sem contestação, das maiores autoridades em historia paulistana. Trocando impressões, reavivando factos, chegámos á conclusão de que o nome de “carvalho da Republica”, dado ao mais bello especime vegetal do planalto em que assenta o palacio do governo de S. Paulo é uma criação fantasiosa. Elle foi mandado plantar pelo conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, quando presidente da provincia. Era contemporaneo da fonte que alie existe ou existia e do remodelamento do palacio e dos jardins da cidade.
Por esse tempo, apreciavam-se as plantas exoticas e só a esse criterio obedeceu o plantio de carvalhos, plátanos, etc., em S. Paulo, em detrimento de nossas arvores, como a quaresmeira, o ipê, o pau Brasil, e outras arvores, hoje grandemente aproveitadas.
O “assassinio” do velho carvalho ‒ proseguiu o dr. Aureliano Leite ‒ não resta duvida que foi uma injustiça e um acto de inconsciencia. Ele vinha de 86. Veiu de Portugal, mas se “naturalizou” paulista. Assistiu á evolução da nossa capital na sua fase decisiva. Numa cidade como esta, cuja transformação de aldeia provinciana para o centro cosmopolita que é hoje, foi processada fulminantemente, se devia conservar com maiores razões tudo o que diga do S. Paulo que desappareceu.
Creio que não vae nisto nem um pouco de sentimentalismo, mas uma noção muito pratica da necessidade de se conhecer o que fomos para maior certeza do que seremos… Ha raridades que devem entrar para o nosso patrimonio historico, a augmentar o cabedal dos nossos conhecimentos. A destruição da velha igreja dos jesuitas, por exemplo, que deu lugar á actual secretaria do Interior, não foi obra nem de intelligencia nem de patriotismo. Apesar de todos os argumentos em contrario, estou convicto de que haveria sempre modos de conserval-a como reliquia do passado piratiningano.
OUTROS VEGETAIS ANTIGOS DO LARGO DO PALACIO
Continuando na sua exposição observou o dr. Aureliano Leite: ‒ O carvalho que desappareceu não era o unico vegetal historico do largo do palacio. Nos fundos deste existia, e ainda restam tres exemplares, ‒ um renque de casuarinas mandadas plantar pelo então presidente da provincia, dr. Nabuco de Araujo, em 1853.
Já houve quem attribuisse o plantio da mais velha dellas ao padre José de Anchieta!
“CARVALHO DA MONARCHIA”
‒ Voltando ao carvalho ‒ disse o dr. Aureliano ‒ elle poderia ter sido chamado “Carvalho da Monarchia”, porque della foi contemporaneo e contemporaneo de S. Paulo velho.
De qualquer modo, sua abatida foi impiedosa.
Foram estas declarações do dr. Aureliano Leite, que se mostrou muito interessado pelo assumpto que nos approximou de sua pessoa.
Agora, sabendo da existencia das casuarinas de Nabuco de Araujo, o dr. Pires do Rio, por uma questão de coherencia, deve mandar abatel-as tambem.
Diário Nacional, 2 de janeiro de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
*A grafia original foi mantida em sua integralidade.