Uma história de horror

O que eu vou contar parecerá a muitos um conto phantastico, tirado de reminiscencias das leituras de Poe, Hoffman ou L’Isle Adam. Eu proprio, na tarde daquelle domingo, perguntei varias vezes a mim mesmo si sonhara, e só me convenci da verdade dois dias depois, quando a tragedia, presenciada em seu prologo terrivel já se consumara, ainda mais barbaramente do que suppunha.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Nessa época, eu cursava o terceiro anno de medicina e trabalhava no serviço do professor X em uma das enfermarias da Santa Casa. Aos domingos, era commum demorar-me depois da visita, e aproveitava a manhã livre de aulas para alguma pequena intervenção cirurgica onde treinasse a minha actividade profissional. Por isso, quando chegou á enfermaria o academico Z, naturalmente que me encontrou na sala, onde só havia, além dos doentes, um dos assistentes do professor.

Z, era nessa occasião, tambem interno do Intituto Pasteur, e por essa razão não estranhamos o motivo de sua chegada. Em seu serviço se apresentara um homem, com os sympthomas já manifestos da hydrophobia, e elle o acompanhara á Santa Casa para internal-o no “quadro forte”. Pediu o nosso auxilio, assegurando que, embroa francamente hydrophobo, o doente se continha. E nós tres descemos até á “sala do banco”, onde começa, verdadeiramente, a parte tragica de meu conto.

Lá, entre dois guardas, deparou-se-nos um homem ainda moço, trinta e cinco annos no maximo, alto, forte, e com uma expressão de doçura nos olhos que nunca mais esquecerei: talvez pelo contraste com o esgazeado que de minuto a minuto traduzia a sua agitação.

Descendo as escadas, soubemos da sua historia. Para salvar um cãozinho de morte cerca, arrancara-o de sob as rodas de um trem. O animal, sentindo-se preso á sua mão, mordera-o.

Haviam passado tres mezes quando, naquella manhã clara de domingo, os primeiros accessos de dispnéa e a crise consequente o assaltaram. O conhecimento de um caso de hydrophobia esclareceu-lhe o mal. E, elle, dentro do circulo do horror dessa revelação, não querendo ser nocivo além de desgraçado, sahira de casa, despedindo-se da mulher e de cinco filhinhos, dera-lhes todo o dinheiro que tinha ‒ uma migalha ‒ e procurara o Instituto, para que lhe amenizassem a morte, já que sabia não poderem jugular o seu mal.

Naquelle instante de lucidez em que o encontramos, esse homem singular, tão cruelmente ferido pelo destino, ainda agarrou as nossas mãos, em uma supplica:
‒ Si não me podem salvar, matem-me para não soffrer! E si quizerem, doutores, podem esperimentar em mim qualquer remedio. Talvez assim, possam depois evitar a outro a desgraça que vai me acontecer.

Eu e meus dois collegas mal podiamos guardar a frieza profissional deante daquelle quadro. Eu, mais moço, e menos affeito, ainda, aos espectaculos de dor, confesso que senti os olhos humidos de lagrimas. Foi por isso, talvez, que alvitrei ministrarmos um alivio. E, com tanto calor defendi essa misericordia, que o nosso assistente se resolveu a pedir uma ampoula de morphina.

Mas, nós não tinhamos pensado nas difficuldades de fazer o bem… Ordens severas, rígidas disposições administrativas, impediram nossa tentativa. Transportal-o até a nossa enfermaria, onde nosso poder era mais amplo, seria perigoso, dada a imminencia da crise.

Tentamos persuadil-o de que entrasse no “quarto forte”.
Nenhum de nós, comtudo, embora familizarizados com o velho hospital, conheciamos aquella dependencia. Ficava ella, então, e creio não ter mudado aos fundos do corredor que dá para a 1ª enfermaria, de molestias de olhos, no pavimento terreo. De quarto só tinha o nome. Era um cubiculo formado pelo angulo de duas paredes, a que outras duas quadraram. Nunca dessas ultimas, havia uma porta pequena, onde se abria, por fóra, um por fóra, um postigo. Ao fundo, uma janella, fechada, com pesados trincos, e o chão de ladrilhos, eis o que era.

Como era natural, o homem recusou entrar. Aquella jaula aterrorizou-o. Eu olhava tudo, pasmo de que se tratassem homens daquella maneira. Depois parecia-me sem a menor segurança a prisão, com as duas paredes construidas até a altura de dois metros apenas, e faceis, por consequencia de serem galgadas, maximé, por um louco ou um hydrophobo.

A situação complicava-se. Ao vis da “sala do banco” para o “quarto forte”, tivera elle de atravessar uma das vastas gallerias internas, abertas de espaço a espaço por portas em ogiva. Como é sabido, a luz e o ar incommodam, horrivelmente, o atacado de hydrophobia.

A inflammação terrivel da garganta, e a crescente necessidade de respirar causam-lhe, então padecimentos insupportaveis.
Eu vira aquelle homem, a cada porta que passava, e sob o clarão do sol e a corrente de ar, agarrar-se ás paredes em busca de sombra, subir por ellas ensanguentando as unhas na escalada impossivel.

Depois, já nos cercava um grupo de curiosos. Serventes brutaes e boçaes, rindo aparvalhados daquellas scenas, fugiam si o pobre delles se approximava. E elle, que ainda comprehendia, chorava e gritava que não fugissem que ainda estava bom, que não queria fazer mal a ninguem!

Nós estavamos parados em frente ao “quarto forte”, e eu deixei que elle repousasse a cabeça allucinada em meu hombro. Foi quando se chegou a irmã de caridade daquella ala da Santa Casa. Era já velha, magra, e seu sotaque francez tornara mais irritante a sua fala desgraciosa. Com pasmo de todos, a serva de Deus intimou-nos a enjaular o misero antes que uma crise o assaltasse. E sem que ouzassemos responder, a sua ordem foi comprida por dois serventes reforçados, que atiraram o homem para dentro do “quarto” e fecharam logo a porta.

Casa Maternal de Vila Clementino, autoria desconhecida, 1959c. (Foto sem ligação com o  texto)

Ainda ouvi os seus gritos. Mas, meus companheiros me levaram dali. Soube, mais, que o meu pedido para que lhe dessem comida e um lençol fôra desattendido. Podia se enforcar com o lençol, disseram, e a comida de nada adeantava porque o hydrophobo não come.

Como disse de inicio, eu mesmo pensei que tivesse sonhado. No dia immediato, porém, contei o occorrido ao meu professor de microbiologia. Elle manifestou desejos de saber como passara o homem. Creio até que tencionava tentar um tratamento, com dóses massiças de alcool, injectadas na espinha.

Na terça-feira, não sei porque, não fui á Santa Casa. Chegando a quarta-feira, logo cedo tomei informações.
O homem morrera. Naquelle domingo á tarde, conseguira saltar a parede baixa, e puzera em polvorosa toda a enfermaria. Fôra caçado a laço, e trancafiado de novo. Seu cadaver deveria estar sendo autopsiado.

Não parei ahi as minhas pesquizas. Indaguei o resultado da autopsia.
Ella positivara um caso de loucura. Aquelle homem não era um hydrophobo, mas um nevropatha que, enloquecido, se suppuzera atacado de hydrophobia. A lembrança de um caso, gravado em sua mente morbida, facilitara a reproducção do quadro symptomatico que um exame demorado talvez aclarasse. Isto não fôra possivel e elle morrera de loucura, ou de fome.

Santa Casa de Misericórdia, B. J. Duarte, 1938. Fonte: Acervos da Cidade

Ainda soube de mais um caso, do mesmo “quarto forte”. Uma menina, linda loira, de nove annos, que morrera hydrophoba, e que, no accesso, arranhara a cara de um medico piedoso, ao abrir este o postigo para observal-a.
O medico si tratara, em tempo, e evitara a molestia.

Mas, nunca mais pude esquecer aquelle louco, a quem devo a impressão mais dolorosa de meu contacto com a medicina.

Helio Silva

Correio Paulistano, São Paulo, 7 de abril de 1929.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

 

A “Casa de Deus” em SP

O casarão da avenida Brigadeiro Luis Antônio lembra um castelo, pela forma do primeiro cômodo, circular como uma torre. Construído no século passado*, atualmente está se desmanchando, resultado de várias décadas de abandono. Agora o patrimônio histórico do Estado quer tombá-lo, pois foi residência do médico e poeta Martins Fontes. Foi este casarão abandonado que o cineasta Sérgio Bianchi escolheu para cenário do seu primeiro longa-metragem: “casa de Deus”, cujas filmagens recomeçaram ontem, depois de quatro meses de interrupção.

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Castelinho da Brigadeiro. Edição de Diego Vargas sobre fotografia de Tereza Epitácio, 2000. Fonte: Condephaat

Escadas de mármore, gradis e portões de ferro batido, a casa deve ter sido um monumento ao fausto de uma época. Agora seus ferros estão enferrujados. Os vitrais trabalhados semi-destruídos, o assoalho de madeira de lei manchado e gasto. A sala da frente é redonda, e seu pé-direito tem a altura de dois andares, terminando em uma abóbada.

Nas paredes, desenhos coloridos, pintados no reboco e emoldurados com aplicações de gesso dourado, lembram veludos e iluminação a gás, hoje substituídos por móveis velhos, depositados ali para não atrapalhar outro lugar, sem nada para iluminá-los.

Nos fundos, três árvores grandes dão sombra a um pedaço de terra que já foi jardim, com um tanque vazio com a prova da ilustre ocupação. No fundo do tanque de cinquenta centrimetros de altura está um poema escrito no cimento e assinado por Martins Fontes, poeta falecido em 1937 que, como médico, foi delegado de Saude. Por este vinculo com uma figura histórica, uns poucos trabalhadores iniciam a restauração, ainda com resultados invisiveis. O processo de tombamento ainda não está terminado e os atuais proprietários sabem pouco do seu andamento.

Mas foi o aspecto de suntuosidade em decomposição que despertou o interesse de Sérgio Bianchi para seu filme. Depois de dois curtas-metragens: “Onibus” e “A Segunda Besta” exibido recentemente no MASP, ele começou a filmar “Casa de Deus”, em outubro, com roteiro seu. No final de novembro, com mais da metade pronta, foi obrigado a parar por falta de recursos. Depois de quase um mês de viagens constantes ao Rio, conseguiu com a Embrafilme parte do capital necessário para continuar o projeto.

“Casa de Deus” tem no elenco Sergio Mamberti, Maria Alice Vergueiro, Rodrigo Santiago, Falizia, Patricio Bisso, Isa Copelman. Fotografado por Pedro Farkas, conta a historia de 22 pessoas, vivendo em 1969/1970, num casarão no qual se isolam do sistema.

Folha de São Paulo, 2 de maio de 1978.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

*O casarão foi construído entre 1907 e 1911, e não no século passado conforme informa o texto.